Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-americano (Parte 25)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

12 de agosto de 2015, 8h00

Spacca
1. A docência universitária: o professor de Direito nos Estados Unidos
O inglês reserva duas palavras para designar o professor: teacher e professor. Professor é um termo restrito aos docentes universitários, usado para denominar o que se chama no Brasil de professor titular. Para os estágios inferiores, encontram-se outras expressões, como assistant professor e associate professor. A palavra teacher é usada para docentes não universitários. Na Alemanha, existe idêntica separação onomástica: Professor, para o docente universitário, e Lehrer, para os docentes de nível fundamental e médio.

Não é possível apresentar um regime de carreira e de remuneração de caráter universal nos Estados Unidos. Há enormes diferenciações em razão do Estado, da universidade, do tempo de serviço e da posição na carreira. No Direito, há uma situação particular: o doutorado não é obrigatório em muitas instituições, pois o prestígio profissional fora da academia é determinante para a contratação do professor. Existe também uma forte cultura de “compra de passe” de professores renomados entre as universidades. Não é sem causa que se encontram hoje nos Estados Unidos alguns catedráticos europeus internacionalmente conhecidos.

2. A tenure e a docência universitária
Diferentemente do Brasil, onde existe um regime de estabilidade no serviço público para os cargos iniciais na docência pública e que dificilmente resulta em posterior afastamento do servidor estável, nos Estados Unidos a palavra mágica para os professores universitários é a tenure

O professor com tenure goza de estabilidade no cargo e não pode ser demitido sem uma justa causa. Alcança-se a tenure após uma combinação variável, conforme a instituição, de alguns fatores como: a) tempo de serviço; b) qualidade da produção intelectual; c) publicações em revistas indexadas; d) publicação de livros; e) obtenção de bolsas de pesquisa e estágios no exterior. A manifestação do colegiado da unidade e a indicação do deão ou do reitor também se apresentam como requisitos importantes para o ingresso no regime de tenure.

Não faltam, porém, críticas à tenure. A obtenção da tenure levaria a uma queda qualitativa na produção dos docentes, ao passo em que os professores sem tenure mostrar-se-iam mais dedicados e interessados nas atividades de ensino e pesquisa.

3. O perfil do professor de Direito nos Estados Unidos
Em 2011, a American Bar Foundation, um órgão da American Bar Association, publicou os resultados de uma pesquisa sobre o perfil do professor de Direito nos Estados Unidos antes e depois da obtenção da tenure. As dimensões desta coluna não permitem a exposição de todos os dados, mas é possível apresentar algumas informações de interesse sobre o docente jurídico norte-americano. Todos os dados expostos nos itens seguintes foram extraídos da pesquisa, e não se fará referência a páginas específicas[1]:  

a) aproximadamente, 39% dos professores de Direito com tenure lecionam nas 50 melhores escolas do país;
b) a origem social dos professores com tenure é, em termos relativos, mais privilegiada. Há uma prevalência de professores brancos e do sexo masculino. No entanto, houve uma significativa diversificação demográfica nos cursos de Direito nos últimos 20 anos;
c) as mulheres ocupam 28% das vagas de professores com tenure;
d) a média salarial anual dos professores com tenure, no intervalo entre 1996 e 2005, variou de US$ 100 mil a US$ 124.990. Não havia discrepâncias entre os valores pagos por universidades públicas e suas homólogas privadas.

4. Os níveis na carreira docente
O cume da carreira docente é alcançado pelo professor, em regime de tenure. Abaixo dele estão o associate professor, com equivalência relativa ao professor associado das universidades estaduais paulistas, e o assistant professor, algo próximo ao professor doutor nas universidades estaduais paulistas, ou ao professor adjunto nas universidades federais. É sempre bom ressalvar a maior flexibilidade norte-americana com a questão do doutorado. Em algumas universidades, como Harvard, conserva-se a nomenclatura europeia de lecturer para os professores doutores e professores associados.

Os níveis remuneratórios são diferenciados. Cada universidade possui mecanismos de premiação a docentes mais produtivos e negocia a contratação de professores famosos com vantagens indiretas, ao exemplo de facilidades em moradia, transporte e equipamentos.

O tempo de permanência em cada nível é variável. Estima-se que os assistentes tenham de passar de três a sete anos para pleitear a passagem para o nível de associado. Os professores associados são geralmente oriundos do corpo de assistentes. Exige-se a publicação de ao menos um livro (o que seria equivalente a uma tese de livre-docência para os padrões brasileiros), uma produção relevante em periódicos e uma passagem como pesquisador em instituição estrangeira. 

O nível de professor titular geralmente é alcançado por professores associados que mantiveram uma boa produção acadêmica, com livros e artigos, além do exercício de funções administrativas na instituição. A idade dos professores titulares é mais elevada. Em alguns lugares, apenas com 50 anos é que alguém se torna elegível para o posto.

Em algumas universidades, existe o professor titular de uma cátedra em homenagem a um jurista famoso ou a um mecenas que fez substanciosa doação à universidade.

No Direito, existe a possibilidade de se atingir esses postos graças a um caminho mais curto, como a contratação de renomados advogados, ex-procuradores-gerais ou magistrados para a docência, ainda que para funções intermediárias, como lectures ou professores convidados.

5. A profissionalização do docente jurídico nos Estados Unidos
A profissionalização da docência é objeto de diferentes tratamentos nos modelos de ensino jurídico já estudados nesta série de colunas. Há países que adotam o regime de monoprofissionalismo (França e Alemanha) e outros que admitem professores em dedicação exclusiva e com atividades paralelas à docência, como a advocacia (Itália e Portugal). Inglaterra e País de Gales possuem uma realidade mais complexa, embora haja a tendência a uma separação de regimes para os professores titulares. Não há, por conseguinte, elementos para se afirmar que exista uma correlação empiricamente demonstrável entre qualidade do ensino e monoprofissionalismo.  Esse debate também passa por questões muita vez ignoradas como: a) a diferenciação entre professores catedráticos e não catedráticos, que traz enorme impacto na remuneração final e na existência de precarização das funções; b) o número de professores catedráticos e; c) a representação social do professor.

Nos Estados Unidos, a profissionalização da docência jurídica é um tema sobre o qual se aumentou o debate nas últimas duas décadas. Se o monoprofissionalismo é essencial à docência universitária em diversos campos, no Direito essa característica não se mostra universal. Tal circunstância é compreensível em um modelo flexível de seleção dos docentes e que prestigia o sucesso financeiro como fator determinante para a valoração social de um indivíduo.

A título de ilustração, veja-se o corpo docente da Havard Law School. Em sua composição atual e limitada aos 127 professores titulares, encontram-se docentes com funções paralelas à docência, ao exemplo de administradores de fundações, membros de conselhos de administração de empresas ou de fundos de pensão, consultores de agências governamentais e outros com vasta experiência anterior em grandes firmas de advocacia[2]. Nessa condição, podem-se citar: a) Robert C. Clark, titular da cátedra “Austin Wakeman Scott”, membro do conselho diretor da Time Warner e trustee do gigantesco fundo educacional TIAA); b) Alan Dershowitz, titular da cátedra “Felix Frankfurter”, comentarista político, advogado militante na área dos direitos civis e também reconhecido criminalista. Alguns de seus casos já foram transformados em filmes, como sua defesa no processo criminal contra Claus von Bülow, filmado em 1990, com o título O Reverso da Fortuna. Jeremy Irons e Glenn Close foram os atores principais, e o papel de Dershowitz coube ao ator Ron Silver. O. J. Simpson também foi cliente de Dershowitz; c) Charles Fried foi advogado-geral dos Estados Unidos (Solicitor Gereral) e associate justice da Suprema Corte de Massachusetts; d)  Jack Landman Goldsmith, titular da cátedra “Henry L. Shattuck”, antes de ingressar em Harvard foi assessor especial do Departamento de Defesa e assistente do procurador-geral dos Estados Unidos; e) Cass S. Sunstein, titular da cátedra “Robert Walmsley”, entre 2009 e 2012, foi gestor do White House Office of Information and Regulatory Affairs e contribui ativamente com comissões do Congresso dos Estados Unidos em diversas questões jurídicas.  

Em paralelo, há também dezenas de professores de Harvard que trabalham exclusivamente na escola de Direito, como Duncan Kennedy, atualmente catedrático emérito;  Kathryn E. Spier, titular da cátedra “Domenico de Sole”, e Mark Tushnet, titular da cátedra “William Nelson Cromwell”.

6. Conclusões
A mais longa das séries de colunas sobre o ensino jurídico no Direito Comparado encerra-se nesta semana. Foram seis colunas em sequência sobre os Estados Unidos, o que se justifica pela complexidade e pela dimensão da realidade norte-americana. Como em todos os países já estudados, as implicações do Direito com a política, o poder e a sociedade fizeram-se sentir com grande ênfase na sede do Império Romano de nosso tempo.

O professor de Direito não é a figura central nos Estados Unidos, tal como se dá na Alemanha ou em Portugal. Os advogados são a mola propulsora do sistema jurídico, o que se percebe pelo número expressivo de 1.266.158 profissionais acreditados no país em 2014. Os juízes são poucos, e os promotores, eleitos pelo povo, salvo no âmbito federal.

O estudante de Direito não é propriamente um graduando, mas alguém que já concluiu estudos de graduação em áreas absolutamente diversas, como artes, literatura, administração ou matemática. Em três anos de um curso com perfil profissionalizante, o aluno tem um primeiro ano com disciplinas obrigatórias, a maior parte delas definida no final do século XIX, e os dois anos seguintes com disciplinas optativas de escolha preordenada e totalmente livres, além de julgamentos simulados, apresentação de peças processuais e pesquisa em repositórios jurisprudenciais.

O método de ensino mais utilizado ainda é do século XIX e foi introduzido por um professor de Harvard, Christopher Columbus Langdell, que não pertencia ao mainstream acadêmico de seu tempo. O case method exige leituras intensas dos alunos e faz uso de técnicas socráticas de perguntas formuladas pelo professor. A competição dá a tônica à aprendizagem, e o controle individual do desempenho dos alunos não dá margem para táticas de proteção entre eles. Na atualidade, não faltam críticas ao método langdelliano.

O número de law schools pouco cresceu ao longo dos últimos 70 anos e permanece o sistema de credenciamento pela American Bar Association. Os professores anseiam pela estabilidade conferida pela tenure, e as remunerações dos docentes não são muito expressivas, se comparadas a outras carreiras jurídicas. Hoje, prevalece o modelo publish or perish. Os professores são incentivados a publicar com frequência em periódicos acadêmicos. No entanto, coexistem docentes monoprofissionais e professores com atividades no governo, na advocacia e nas empresas.

Nem melhor nem pior do que outros modelos, o norte-americano apresenta diversas nuances que precisam ser enaltecidas antes de se pretender importar elementos que o compõem. Uma law school que não gradua é diferente de uma faculdade de Direito, que recebe estudantes de 17, 18 anos para um primeiro contato com o ensino superior. Uma  law school com forte caráter profissionalizante é bem distinta de uma faculdade de Direito que oferece uma formação teórica intensa em seus primeiros três anos. Uma law school que submete seus estudantes aos rigores do case method, com ênfase nos precedentes, é muito diferente de uma faculdade de Direito que mal tem êxito em fazer seus alunos lerem textos básicos da disciplina e cujo Direito é vinculado à tradição romano-germânica.

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Agradeço aos leitores por terem acompanhado esta sequência sobre os Estados Unidos. Prosseguiremos agora com a experiência educacional jurídica em alguns países da América do Sul.

 


[1] THE AMERICAN BAR FOUNDATION (Ed.). After Tenure: Post-Tenure Law Professors in the United States. Chicago: The American Bar Foundation, 2011. 
[2] A relação completa de docentes de Harvard encontra-se aqui: http://hls.harvard.edu/faculty/index.html?s=15. Acesso em 11-7-2015.

Autores

  • é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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