Opinião

Cruzada contra corrupção não pode prejudicar direito de ampla defesa

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12 de agosto de 2015, 6h00

A temática da corrupção é segmento indissociável dos movimentos de conformação e desenvolvimento da burocracia estatal brasileira. Ao longo dos mais de 500 anos de nosso país[1], o direcionamento da esfera pública para fins privados foi diversas vezes constatado. Tais fatores levam à criação de uma mentalidade nacional — exagerada, diga-se de passagem — de que vivemos no Estado mais ímprobo do mundo.

A partir do período de redemocratização e da promulgação da Constituição da República de 1988, a malversação de recursos por agentes públicos torna-se uma das principais pautas de mobilização da sociedade civil, bem como passa a ser assunto cerne de diversos veículos de comunicação de massa. A maior visibilidade dos casos de corrupção e improbidade possui consequência nítida: ocorre crescente demanda por incremento de criminalização, seja pelo agravamento de penas/regimes cominados, seja pelo julgamento sumário dos suspeitos de desvios (relativização da presunção de inocência, diminuição de garantias constitucionais, custódia preventiva como regra, diminuição de instâncias recursais etc.).

As investigações e ações penais dos recentes escândalos ocorridos na Administração Pública, em especial da chamada operação "lava jato", trouxeram alguns novos ingredientes: i) publicidade absoluta de atos processuais e provas — vídeos de audiências, áudios de interceptações telefônicas e documentos; ii) flexibilização de formas e regras processuais; iii) protagonismo e engajamento de alguns delegados, promotores, procuradores e juízes.

Os aspectos ii e iii interessam mais a este ensaio. No tocante ao ponto iii, talvez o protagonismo destes atores tenha como fatores de impulsão o televisionamento de julgamentos e a aceleração de informações por intermédio das redes sociais. A inovação é a reação de alguns juízes e membros do Ministério Público ao clamor midiático-social. Esses atores — as exceções devem ser ressalvadas para evitar a injustiça inerente às generalizações — passam a sentir-se imbuídos da missão de salvação da moralidade da República por meio do processamento criminal de certos indivíduos, promovendo cruzadas contra a corrupção.

Evidentemente, se ocorre uma parcialização da apreciação dos elementos de convicção lançados no ambiente processual, o resultado jurídico de dita ação penal já é previsível antes mesmo de iniciar o contraditório. A atuação destes operadores-ativistas causa grande satisfação ao senso comum, garantindo a impressão de que a justiça está sendo realizada e de que agora as coisas irão mudar.

Todavia, além do impacto sobre os investigados/acusados, há outro efeito perverso desta atividade processual engajada, em termos de direitos fundamentais. O advogado de defesa, figura imprescindível no processo penal, passa a ser enxergado por setores da população não como aquele que defende o imputado, mas sim como uma reminiscência indesejável da ordem corrupta que se pretende varrer, como se fosse um defensor da improbidade em si, e não daquele sujeito em particular. Nesta ótica obtusa, quaisquer críticas às condutas da Polícia, Ministério Público e/ou Judiciário são interpretadas como se fossem condescendência com a corrupção.

Realizada esta contextualização, neste breve articulado será pontualmente abordado um sintomas da crise processual, extraído dos autos da operação  "lava jato": a redecretação de prisão preventiva de executivos da Odebrecht, e sua consideração como óbice ao exame de mérito dos habeas corpus impetrados pelas defesas.

Perda de objeto de Habeas Corpus e preclusão pro iudicato
Como mencionado, preocupam as tentativas de restringir a eficácia do habeas corpus no processo penal brasileiro. Na denominada operação "lava jato", há uma circunstância que causa espécie: em algumas oportunidades, os habeas corpus impetrados pelas defesas, que visavam à revogação das custódias preventivas, foram julgados sem julgamento de mérito, por uma pretensa perda do objeto. Diz-se pretensa, pois o objeto do writ, isto é, a restrição à liberdade de locomoção dos pacientes, não deixou de existir.

Por que então a decisão do Tribunal Regional Federal da 4a Região entendeu que as mencionadas ações impugnativas deveriam ser extintas sem julgamento de mérito? Pela peculiar circunstância de a decisão de prisão inquinada como ilegal ter sido revista pela autoridade coatora. Assinala-se que tal revisão não modificou o decreto para revogar a custódia, mas sim para “reforçar” seus fundamentos a partir de elementos trazidos pela autoridade policial e pelo Ministério Público, como se uma prisão preventiva pudesse ser decretada concomitante a outra, no mesmo expediente criminal.

Por tão inusitado, importante explicar ao leitor o encadeamento dos atos do processo: a partir de pedido do Ministério Público, o Juízo decreta a prisão preventiva de investigados; contra esta decisão, as defesas ingressam com habeas corpus junto ao TRF-4; após a impetração, o Ministério Público pede “nova custódia cautelar” a partir de elementos oriundos do inquérito e o Juízo “revisa” sua decisão anterior para decretar uma nova prisão sobre as pessoas que já estão segregadas; o TRF-4, ao julgar os habeas corpus, extingue-os sem julgamento de mérito, por entender que a decisão de prisão foi modificada, portanto novas impugnações deveriam ser intentadas contra a decisão “reforçada” de prisão.

Este idêntico iter processual foi conferido a cinco habeas corpus impetrados pelas defesas dos executivos da Odebrecht.

Não é demais recordar que o habeas corpus existe em nosso ordenamento desde o Código de Processo Criminal de 1832. Após alcançar dignidade constitucional em 1891, constou expressamente de todos os textos constitucionais subsequentes. O único momento de nossa história em que o direito à utilização ao habeas corpus foi vedado ocorreu no auge da repressão da Ditadura Militar, com o advento do Ato Institucional 52, em dezembro de 1968. Foi proibido o habeas corpus de 13 de dezembro de 1968 (AI-5) a 13 de outubro de 1978 (Emenda Constitucional 11).

Há dois problemas processuais ocorridos nos casos levados à apreciação do TRF da 4a Região.

O primeiro deles diz respeito à possibilidade de o magistrado de primeira instância revisar sua própria decisão para mantê-la. Isso não é apenas uma manobra questionável sob o ponto de vista lógico, como também sob o aspecto dos preceitos processuais penais. Se o juiz atende à provocação da parte cuja pretensão foi satisfeita em medida cautelar, não pode este mesmo juiz conceder novo decreto prisional a partir de pedido do mesmo sujeito processual sobre os mesmos investigados na mesma investigação. É um raciocínio circular, pois os fundamentos para a prisão não se alteraram, e a coação, que era única, tornou-se continuada.

Conforme percucientemente afirma Geraldo Prado, o momento processual da decisão foi superado, portanto não compete mais ao órgão jurisdicional manifestar-se sobre o cabimento da medida cautelar já deferida anteriormente e ainda em vigor, a não ser que seja para revogá-la, nos termos do artigo 316, CPP. Este conceito é chamado de preclusão consumativa pro iudicato, pois o cerne da pretensão já foi decidido. Como alerta Prado, o instituto presta-se a evitar a duplicidade despropositada da atividade processual.

No tocante ao entendimento da corte que entendeu perdido o objeto das impetrações, também cabe reparo. Deve ficar claro que não interessa aqui discutir sobre a legalidade ou não das prisões. O objeto é afirmar a necessidade de a segunda instância ter enfrentado as questões de mérito das ações impugnativas, pois: a) a “revisão para manutenção” da custódia preventiva viola a preclusão consumativa pro iudicato, portanto não seria óbice para o reconhecimento de ilegalidade da prisão; b) referidos writs cumpriam com todas as exigências formais para seu conhecimento e processamento, quais sejam, indicação de paciente, impetrante, autoridade coatora e coação/ordem ilegal; e c) não se pode considerar perdido o objeto quando a decisão questionada permanece surtindo efeitos, embora sob nova roupagem.

O acórdão do TRF da 4a Região ainda menciona, como um dos argumentos para justificar a perda do objeto, o artigo 219 do Regimento Interno, cuja redação dispõe: "Art. 219. Se, pendente o processo de habeas corpus, cessar a violência ou coação, julgar-se-á prejudicado o pedido, podendo, porém, o Tribunal declarar a ilegalidade do ato e tomar as providências cabíveis para punição do responsável. Do dispositivo transcrito, depreende-se que a perda do objeto é apenas observada quando cessada a violência ou coação, não consistindo tal norma em escusa suficiente para que julgue-se extinto habeas corpus sem provimento de mérito quando a decisão for “reforçada”.

Perceba-se que tal procedimento impõe uma via crucis ao imputado, na medida que o redecreto prisional obriga-o a ingressar com novo habeas corpus, como se a coação que está a sofrer não fosse suficiente a justificar o exame de mérito pelo colegiado. Não se quer crer que isto seja um expediente da primeira instância visando a cercear a atividade defensiva em segunda instância, dificultando o trabalho para impugnar a custódia imposta aos pacientes. A finalidade cautelar já estava atendida com a primeira decisão, duplicá-la destina-se mais a sua manutenção em instância superior do que a resguardar os interesses processuais em jogo.

O Supremo Tribunal Federal já rechaçou, em situação análoga, a necessidade de o paciente ingressar com novo habeas corpus, em hipótese que houve alteração da coação ilegal de ameaça potencial à liberdade para uma restrição efetiva (Habeas Corpus 95009-4, Relator ministro Eros Roberto Grau).

Em minha dissertação de mestrado3, afirmei que o caldo cultural do judiciário brasileiro, em matéria processual penal, possui um grande déficit de constitucionalização, pautado pela lógica fundante do sistema inquisitório. Disso resulta, de acordo com a hipótese que articulei, uma tensão dialética representada pelo binômio flexibilização-rigidez, isto é, por vezes o ato seria interpretado a partir de parâmetros excessivamente formalistas, por outras permitir-se-iam burlas dos ritos. De acordo com a pesquisa que fiz à época, este binômio invariavelmente impactaria na redução de direitos dos acusados.

O binômio parece ser bastante acurado para interpretação do fenômeno descrito: por um lado, há uma flexibilização da regra de preclusão consumativa pro iudicato, na medida em que o magistrado pode retornar indefinidamente à quaestio para reforçá-la e orná-la de maiores detalhes, embora não mude a essência da decisão constritiva; por outro lado, há uma rigidez bastante palpável quanto à negativa do exame de mérito das ações impugnativas dos investigados.

Indubitavelmente, esses habeas corpus cujo julgamento foi abreviado, irão compor as estatísticas positivas apresentadas pelos agentes ministeriais no bojo da operação em comento, como se isso constituísse atestado de notória consonância com os preceitos do processo penal brasileiro.

Considerações finais
O presente momento histórico causa muita preocupação aos juristas que dedicam-se ao estudo do direito penal e processual penal. Por mais que os esforços da Polícia e do Ministério Público venham a tirar de atividade indivíduos envolvidos com práticas criminosas, o afã para tornar nosso país um lugar melhor não pode ensejar uma supressão de liberdades públicas conquistadas por anos e anos de construção histórica.

Também não subsiste o argumento que as camadas mais privilegiadas, que, desde os últimos escândalos políticos, são vistas ocupando penitenciárias e carceragens, devem sofrer com rigor as mazelas do sistema penal, assim como os mais desfavorecidos já sofriam. Pobres e ricos devem ter iguais direitos à defesa e a um sistema carcerário humano e digno. Equiparar a indignidade não fará cessar as injustiças, tampouco resolverá o problema da desigualdade social — esta não consiste em finalidade do sistema penal.

Respeitar a garantia da ampla defesa, do contraditório e as prerrogativas do advogado é assegurar a própria cidadania. Qualquer movimento que propugne a restrição da defesa possui raízes autoritárias, não importa quão bem intencionado ele pareça. É precisamente esta a posição de Toron e Szafir [4]:

Em todos os casos a inviolabilidade assegurada ao advogado ergue-se como uma poderosa garantia em prol do cidadão de modo a permitir que o profissional legalmente incumbido de falar por si não se acovarde e nem possa sofrer qualquer tipo de represália que lhe retire a liberdade profissional. É, pois, à cidadania que, em última análise, interessa a proteção que se confere ao advogado.

Muitas vezes, no curso da operação "lava jato", os advogados atuantes tiveram suas prerrogativas profissionais tolhidas. Por mais impopulares que sejam estas defesas, os profissionais devem ter a liberdade de fazê-las com todos os meios que tiverem à sua disposição, e qualquer medida que vise a diminuí-las deve ser rechaçada.

O mesmo conselho vale para o Judiciário: não é porque o processo penal tornou-se um espetáculo midiático que os juízes (e desembargadores, ministros etc.) devem colocar sua toga a serviço das curtidas em redes sociais.

Por fim, em que pese alguns agentes à frente da operação pensarem que esta “trouxe esperança”, não será um caso criminal que acabará com anos e anos de patrimonialismo na burocracia estatal, ou com relações ímprobas entre agentes públicos e empresariado. Assim, não é por conta do aparente sucesso da "lava jato" que se deve concordar com o discurso doce do aumento de penas e relativização da prova ilícita, em casos de corrupção.

Os direitos fundamentais são conquistas perenes, obtidas por séculos de sangue e sofrimento. Se abdicarmos deles em nome do sucesso fugaz de uma operação policial, daremos razão à célebre frase de Benjamin Franklin: “Aqueles que abrem mão de sua liberdade essencial por um pouco de segurança temporária, não merecem nem liberdade nem segurança”.


1 Fenômeno precisamente trabalhado por Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda, José Murilo de Carvalho, Vicente Nunes Leal, entre outros.

2 Assim dispunha o art. 10 da abjeta norma:  “Art. 10 – Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.”

3 Nulidades e limitação do poder de punir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

4 TORON, Alberto Zacharias e SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas profissionais do advogado. Brasília, OAB Editora, 2006. p. 24

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