Contas à Vista

Querer pagar menos imposto
virou crime no Brasil

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

11 de agosto de 2015, 8h00

Spacca
Homenageio os colegas advogados neste 11 de agosto registrando que o Estado brasileiro anda valorizando bastante nossa profissão. Tenho a impressão de que a população brasileira nunca precisou tanto de advogados como nos dias que correm. Não bastassem os alertas que ecoam na imprensa contra abusos praticados pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público (tema recorrente da coluna semanal de Lenio Streck nesta ConJur), vê-se agora o retorno à criminalização de condutas na área tributária, a partir de iniciativa do Poder Executivo. Pensei que esse capítulo já tivesse ficado para trás no grande livro em que escrevemos a história deste país, mas não é bem assim.

A partir de agora, no Brasil, quem deseja organizar seus negócios para pagar menos tributos, mesmo agindo de acordo com as leis, deverá pedir autorização formal para a Receita Federal para ver se ela concorda com o que está sendo feito. Se concordar, você não terá nenhuma penalidade. Se discordar de seu entendimento e achar que não há motivo que justifique você organizar seus negócios daquela forma, exceto pagar menos tributos, a cobrança será na proporção que o fisco entende como devida, mais juros de mora, sem qualquer multa. Todavia, se nada for comunicado à Receita Federal e ela entender que se trata de algo que teria que ser comunicado, "sua conduta será desde logo considerada dolosa, presumindo a ocorrência de fraude e sonegação fiscal, e toda a legislação criminal será utilizada contra sua conduta omissiva".

O parágrafo acima não é fruto de delírio, pois consta na Medida Provisória 685/15, publicada no dia 22 de julho e que deixou a comunidade empresarial e os advogados tributaristas estupefatos, pois se trata de uma medida de força e centralização poucas vezes vista neste país, que tem vasto histórico de medidas fiscais autoritárias. Da forma como está redigida, essa norma passa a controlar a livre iniciativa, individual e empresarial, que visa sempre organizar seus negócios de forma a reduzir seu custo e ampliar seus lucros, como acontece em qualquer país capitalista. Como um dos custos mais importantes é o tributário, a tentativa de sua redução passa a ser objeto de obrigatória e prévia tutela estatal, sob pena de ser considerada criminosa.

A MP 685 cria o Programa de Redução de Litígios Tributários (Prorelit), porém, a partir da metade da norma, muda a prosa e passa a tratar de combate ao planejamento tributário abusivo.

O artigo 7º obriga o contribuinte a declarar até 30 de setembro de cada ano o conjunto de operações realizadas no ano anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo, quando não possuírem “razões extratributárias relevantes”, ou a forma adotada para realização daquele negócio não for a “usual”, ou ainda tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em norma da Secretaria da Receita Federal, a ser editada. E mesmo aqueles negócios que ainda não tiverem sido realizados deverão se submeter ao controle prévio da Receita Federal, pelo artigo 8º.

Caso não seja efetuada a comunicação exigida, ou seja feita de forma incompleta (artigo 11), essa omissão será considerada "conduta dolosa do sujeito passivo, com intuito de sonegação ou fraude" — ou seja, o contribuinte se tornará um bandido, sujeito a penalidades administrativas e criminais, além de receber multa de 150% (artigo 12).

Várias inconstitucionalidades saltam aos olhos.

O artigo 12 da MP 685 tornou letra morta a presunção de inocência prevista pela Constituição Federal no artigo 5º, LVII[1]. A conduta criminosa passou a ser pressuposta. Não informar à Receita Federal alguma coisa que não se sabe bem ao certo se deve ou não ser informada pode gerar encarceramento. Isso acaba por tipificar como crime contra a ordem tributária uma conduta omissiva, realizada antes de qualquer lançamento tributário, o que contraria a lógica exposta pela Súmula Vinculante 24 do STF[2].

Por se tratar de medida obrigatória, e não opcional, torna-se burocrática e autoritária, e emperrará ainda mais as já difíceis atividades empresariais no Brasil, pois toda medida tomada para reduzir a carga tributária terá que ser previamente submetida ao Fisco para ser autorizada ou não (além do risco da caracterização da conduta omissiva como criminosa). A liberdade de iniciativa econômica passa a ser submetida a controles prévios e a penalidades draconianas que torna inconstitucional esse aspecto da Medida Provisória, pois viola um dos fundamentos da República brasileira, que é o valor social da livre iniciativa (artigo 1º, IV), também sustentáculo da ordem econômica (artigo 170, caput).

E mais, a Constituição Federal, que presumo ainda estar em vigor, veda a edição de Medida Provisória sobre Direito Penal, no artigo 62, parágrafo 1º, I, b.[3]

Tudo indica que a Receita Federal adotou esse caminho com os olhos voltados para o Beps (Base Erosion and Profit Shifting), espécie de plano de ação coordenado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), conforme exposto por Heleno Torres.

A Ação 12 do BEPS[4] estabelece que os Fiscos devem exigir que os contribuintes revelem seus esquemas de planejamento tributário agressivo. Porém, em momento algum, essa recomendação internacional menciona que sua não informação gera responsabilidade criminal, como foi feito pela MP 685. E nem indica o que seria um “planejamento tributário agressivo ou abusivo”, que o artigo 7º da MP 685 criou como uma norma de textura aberta, uma “norma-quadro”, pois só possui moldura de norma, uma vez que seu conteúdo (a tela) será preenchido por normas infralegais ou pela discricionariedade do aplicador da norma. Todo e qualquer comportamento tendente a reduzir a carga tributária pode ser encontrado no texto normativo — basta ver:

Artigo 7º: O conjunto de operações realizadas no ano-calendário anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo deverá ser declarado pelo sujeito passivo à Secretaria da Receita Federal do Brasil, até 30 de setembro de cada ano, quando:

I –     os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes;

II –    a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou

III –   tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil.

O que é uma “razão extratributária relevante”? E qual a “forma usual” de realização dos negócios jurídicos? E é juridicamente possível transferir para a Receita Federal do Brasil o estabelecimento das condutas que devem ser adotadas pelos contribuintes — sob pena de criminalização? Será que não mais vigora o princípio de que, sem prévia lei, é nulo o crime e nula a pena? Seguramente a Constituição Federal está sendo violada também no artigo 5º, XXXIV[5].

É imprescindível que antes de editar uma Medida Provisória seja analisada a constitucionalidade desses mecanismos de Direito Tributário internacional que o Brasil começa a adotar, sendo o sistema Beps um deles. O balão de ensaio foi ruim. Cria mais insegurança jurídica e aumenta o risco Brasil. Ou, pelo menos, adote-se a regra internacional sem jabutis ou jabuticabas, como essa de criminalização de condutas omissivas, que não consta na recomendação internacional.

Se a MP 685 previsse apenas um mecanismo facultativo, onde o contribuinte submetesse seus negócios à análise prévia do Fisco caso desejasse reduzir seu risco de agravamento de pena pecuniária, a proposta seria muito bem-vinda, mas, da forma como se encontra editada, que torna a conduta obrigatória e passível de criminalização, torna-a autoritária e inconstitucional. A proposta de um instrumento legal que permita ao contribuinte aumentar o grau de certeza e segurança jurídicas é uma ideia interessante, que reduzirá a litigiosidade e melhorará o ambiente de negócios no Brasil, bastante prejudicado nos dias que correm. Mas tornar esse mecanismo obrigatório, prévio e com criminalização de condutas, trata-se de um erro que deve ser corrigido.

Felizmente, a Câmara dos Deputados se move contra esse autoritarismo. O deputado federal Milton Monti (PR-SP) apresentou duas emendas ao projeto[6].

Uma Emenda Supressiva retira do texto a íntegra do artigo 12, o que é uma medida salutar em face da situação acima exposta nesta coluna.

E apresentou também uma Emenda Modificativa, que visa alterar o artigo 12 para retirar a presunção de criminalização da conduta, prevista na redação originária. O texto passaria a ser o seguinte:

Artigo 12º – O descumprimento do disposto no artigo 7 ou a ocorrência de alguma das situações previstas no artigo 11 acarretará a cobrança dos tributos devidos acrescidos de juros de mora e da multa prevista no parágrafo 1º do artigo 44 da Lei 9.430 de 27 de dezembro de 1996.

O jogo de forças político no Congresso é que determinará qual será a redação final da norma. Porém, como se trata de uma Medida Provisória, seus efeitos já estão em pleno vigor.

Fiquemos atentos ao desfecho desse processo legislativo, pois a próxima vítima pode ser o seu cliente. Ou você. Ou qualquer um de nós. Aplaudir o abuso cometido contra os outros é um erro fatal, pois os direitos e garantias individuais podem ser violados, e dificilmente se consegue reverter isso em médio prazo. Basta ver o que ocorreu no Brasil no mais recente período autoritário militar que vivemos. Não se coloca a pasta de dentes de volta no tubo — exceto rasgando o tubo…

Com abusos como esses, o Estado brasileiro acabará por ampliar o mercado advocatício e justificar o aumento da quantidade de vagas nas escolas de Direito no Brasil. Pena que isso ocorra com o vilipêndio da Constituição. E com baixa qualidade.

Feliz Dia do Advogado.

Post Scriptum: Hoje meu amigo Hugo Moura faria 60 anos. Estava ansioso para saber como seria essa nova etapa de sua vida. Não houve tempo. Parabéns a ele e à sua memória.

 


[1] Artigo 5º: LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
[2] Súmula Vinculante 24: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”
[3] Artigo 62. parágrafo 1º: É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I – relativa a: b) direito penal, processual penal e processual civil;
[4] “Action 12 – Require taxpayers to disclose their aggressive tax planning arrangements Develop recommendations regarding the design of mandatory disclosure rules for aggressive or abusive transactions, arrangements, or structures, taking into consideration the administrative costs for tax administrations and businesses and drawing on experiences of the increasing number of countries that have such rules. The work will use a modular design allowing for maximum consistency but allowing for country specific needs and risks. One focus will be international tax schemes, where the work will explore using a wide definition of “tax benefit” in order to capture such transactions. The work will be co-ordinated with the work on co-operative compliance. It will also involve designing and putting in place enhanced models of information sharing for international tax schemes between tax administrations.”
[5] Artigo 5º, “XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”
[6] www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1594437

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