Direitos Fundamentais

O caso das audiência de custódia mostra resistência ao Direito Internacional

Autor

7 de agosto de 2015, 12h26

O dia 30 de julho de 2015 marca a adesão oficial, mediante a implantação de um plano piloto para a Comarca da Capital do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul (por iniciativa da Presidência do Tribunal de Justiça e da Corregedoria-Geral de Justiça), à assim designada audiência de custódia, nome atribuído ao instituto da apresentação do preso à autoridade judiciária, tal como previsto tanto na Convenção Americana dos Direitos Humanos, quanto no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambos ratificados pelo Brasil há mais de 20 anos.

Embora a audiência de custódia, na forma regulamentada que ora tem sido gradualmente assumida pelo Poder Judiciário, induzido pelo Conselho Nacional de Justiça, seja algo recente, cumpre noticiar que magistrados gaúchos, já na década de 1990 (portanto na sequência da ratificação dos tratados acima referidos), buscaram organizar um sistema de apresentação imediata dos presos em flagrante ao plantão judiciário, o que deu azo a uma orientação da Corregedoria-Geral de Justiça do RS recomendando tal providência a todos os juízes criminais do RS. Ainda que a iniciativa tenha, como já se era de imaginar, esbarrado em resistências de toda ordem, inclusive no seio da própria magistratura, a referência que aqui se faz tem o intuito de render justa e merecida homenagem aos que (e não apenas no RS, é claro) desde cedo tomaram ciência e consciência do caráter imperativo da providência e da necessidade de harmonizar o nosso em parte vetusto processo penal com as diretrizes dos Direitos Fundamentais da Constituição de 1988 e do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Aliás, como bem sublinharam os festejados colunistas Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa (ConJur, Limite Penal, 10 de julho de 2015), pelo menos parte das objeções esgrimidas contra o instituto soam como “uma infantil resistência ao novo, ao diferente, do estilo “não sei, não conheço, mas não gosto”. Mas se é verdade que a resistência existe e em parte pode ser atribuída a motivos não necessariamente nobres ou mesmo a uma ignorância em relação ao conteúdo dos tratados de direitos humanos e o dever de sua aplicação no direito interno, também é certo que algumas reflexões de natureza crítica, designadamente quanto ao modo de implantação da audiência de custódia, não deixam de ser no mínimo razoáveis, inclusive pelo fato de revelarem preocupação com o respeito a outros direitos e garantias fundamentais ou mesmo requisitos constitucionais, como é o caso do contraditório, da legalidade ou pautadas pelo sistema de repartição de competências legislativas consagrado pela nossa Constituição, o que, dentre outros aspectos, foi — com habitual destreza — tematizado na culta e instigante coluna do grande Lenio Luiz Streck (ConJur, coluna Senso Incomum, 23 de julho de 2015).

De todo modo, em que pesem os respeitáveis argumentos em sentido contrário, parece-nos que se está mesmo — como não é incomum entre nós — promovendo, à feição de Shakespeare, “muito barulho por nada”, ou pelo menos, por muito pouco.

Dentre os motivos dos que resistem podem ser colacionados até mesmo argumentos desvestidos de um mínimo de juridicidade, não tendo faltado quem dissesse que não faria sentido cumprir convenção internacional uma vez transcorridos mais de vinte anos de sua ratificação, ou mesmo questionando a implantação gradual do instituto, mediante planos-piloto, por gerar uma discriminação em relação aos demais lugares onde não está sendo (ainda) oficialmente implantada. A prevalecerem tais argumentos, o descumprimento de comandos normativos poderia gerar então uma proibição de retrocesso às avessas, no sentido de vedar que se passasse a cumprir a constituição, os tratados internacionais e as leis pelo simples fato de que vinham sendo até então descumpridas! Além do mais, sempre o cumprimento parcial e gradual, atingindo numa primeira etapa determinado contingente de situações, estaria vedado em virtude de uma curiosa lógica do ou cumpre tudo ou não cumpre nada! Isso sem falar na bondade intrínseca da iniciativa do TJ-RS em buscar, mediante um plano piloto – elaborado a partir da busca do diálogo com o Governo, a Polícia, a Defensoria Pública, os Magistrados e o Ministério Público -, não apenas permitir a correção de eventuais inconsistências organizacionais e procedimentais, quanto conquistar a necessária adesão (de forma persuasiva e não coercitiva) dos demais segmentos envolvidos, mas também da Magistratura como um todo (convém registrar aqui que no RS a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul — Ajuris — se posicionou pública e enfaticamente em favor da medida).

Buscando assumir pelo menos um “verniz jurídico”, já se identificam decisões no sentido da inexistência, na ordem jurídica pátria, do instituto da audiência de custódia, mas que esbarram na elementar constatação ou da efetiva ignorância no que diz com o fato de que as duas convenções referidas, que expressamente preveem a obrigação de apresentação sem demora do preso, foram ratificadas pelo Brasil em 1992 (há apenas 23 anos!!) e desde então incorporadas ao direito interno mediante decreto legislativo e posterior regulamentação por decreto do Poder Executivo, ostentando — ao menos desde a guinada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto ao ponto — hierarquia supralegal, de modo a prevalecer sobre todo e qualquer ato normativo infraconstitucional. Ademais, ainda que a hierarquia seguisse sendo a de lei ordinária, os tratados aprovados pelo Congresso Nacional teriam efeito revogatório sobre normas anteriores em sentido contrário.

Outra linha argumentativa já encontrada em decisões judiciais assume ares mais rebuscados do ponto de vista jurídico, designadamente ao invocar a inconstitucionalidade de regulamentação da Audiência de Custódia por meio de Resolução do CNJ ou mesmo Provimento de Corregedorias dos Tribunais, em virtude de uma alegada indispensabilidade de Lei Federal a dispor sobre processo penal, o que também não poderia ser contornado por força da aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais tal como prevista no artigo 5º, parágrafo 1º, da CF.

Também aqui, salvo melhor juízo, não assiste razão aos que se opõe a AC. Não apenas os direitos fundamentais da CF (de cujo catálogo, forte no artigo 5º, parágrafo 2º, fazem parte os direitos enunciados nos tratados ratificados pelo Brasil), mas também os próprios direitos humanos dos tratados ora em questão são de aplicação imediata pelos Estados signatários, o que distingue tais convenções do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, cujos direitos são, por força de disposição do próprio Pacto, de progressiva realização.  Além do mais, não se há de confundir norma de competência com o regime material de aplicação de normas de direitos fundamentais, ainda que a aplicabilidade imediata não torne irrelevante a regulamentação infraconstitucional.

Soma-se a isso que as duas convenções que preveem a apresentação do preso foram convertidas, pelo Congresso Nacional, em legislação interna, ademais de regulamentadas, portanto, provenientes da autoridade legislativa competente também para a matéria.  O fato de se buscar agora regrar mediante leis em sentido material (atos não legislativos) aspectos da organização judiciária e questões acessórias de procedimento prático, como é o caso do funcionamento dos plantões judiciários para tal finalidade, diretrizes para as necessárias comunicações, transporte e apresentação dos presos, entre outros, não extrapola a esfera de competências do legislativo e mantém sintonia com o poder-dever (e não faculdade) dos Juízes no sentido de dar aplicação imediata às normas de direitos fundamentais. Aliás, o que a CF justamente busca assegurar com tal mandamento é que os direitos fundamentais, em especial (mas não só) os de cunho defensivo, não se transformem em meros reféns dos poderes constituídos, demonstrando, por outro lado, que o regime jurídico reforçado característico dos direitos fundamentais não pode ser reduzido a um mero juízo de constitucionalidade de normas infraconstitucionais, aspecto que aqui, contudo, não temos como desenvolver.

De qualquer sorte, o que se pretende aqui enfatizar, é mesmo a desnecessidade de uma regulamentação da matéria para o efeito de permitir que cada magistrado, mediante uma interpretação sistemática e harmônica (no sentido de uma concordância prática da qual nos fala Konrad Hesse) do disposto nos tratados internacionais incidentes na espécie, na CF e no próprio Código de Processo Penal, fazer cumprir o mandamento de apresentação sem demora do preso, consoante, aliás, o fizeram os Juízes plantonistas de Porto Alegre acima referidos, por cabe ao Magistrado aplicar todo o Direito, inclusive (e especialmente) os tratados incorporados pelo Congresso Nacional. Que a regulamentação mínima dos aspectos organizacionais e logísticos, bem como uma orientação isonômica aos atores envolvidos, tem o mérito de não apenas induzir a uma implantação geral do modelo e evitar (ou pelo menos minimizar) eventuais distinções arbitrárias e efeitos colaterais, de modo a prevenir sejam afetados outros direitos fundamentais, resulta quase elementar.

Outro argumento que chega a soar interessante e que merece ser levado a sério busca contrastar a apresentação do preso na AC com a realização do interrogatório ao final do processo, pois quando da apresentação, inclusive sem denúncia formalizada, poderá o preso adiantar matéria relevante para a sua defesa. Ora, é precisamente para tal efeito que se faz indispensável a presença de defensor, com o qual o preso poderá ter entrevista reservada. Além disso, como bem pontua Lenio Streck (na coluna citada), tanto não há ilicitude na apresentação em si, porquanto prevista como cogente por tratado internacional ratificado, quanto não está o Juiz impedido de presidir e julgar o processo, ainda que tenha realizado a AC e tido contato com eventual prova ilícita.

É claro que tal como genericamente referido nos tratados de direitos humanos que nos dizem respeito, a apresentação sem demora do preso objetiva tanto assegurar o preso em relação a eventuais abusos de autoridade, incluindo violência física ilegítima, quando da prisão, quanto o tempestivo exame da legalidade da restrição da liberdade. Ao delimitar rigorosamente as hipóteses de prisão provisória, sejam ou não resultantes de flagrante, ademais de determinar a imediata comunicação da prisão ao Poder Judiciário, tanto a CF quanto a legislação interna já atendiam (o que não impede o seu descumprimento) tais requisitos, de modo que a AC ora implantada nesse particular apenas aperfeiçoa o sistema, propiciando elementos para que o magistrado possa melhor decidir sobre a legalidade da prisão. Paralelamente, porém, a AC passa a colmatar lacuna no que diz com a prevenção da violência física ou moral, ou seja, da prática de determinado tipo de abuso de autoridade quando da segregação, o que por si só já justifica a sua adoção.

Nesse contexto, calha agregar que a despeito de algumas vozes nessa toada, a AC não tem por escopo facilitar a liberação de presos, mas atender aos objetivos acima nominados. Eventual abuso de autoridade demandará investigação e, se for o caso, responsabilização pela via própria, mas por si só não é causa para a liberação do preso se presentes as hipóteses legais autorizativas. O que se está a promover é estabelecer um sistema mais eficaz de garantias, inclusive o de uma decisão mais informada e segura sobre eventual homologação da prisão em flagrante e/ou decretação de prisão preventiva ou concessão de liberdade provisória, mediante fixação de medidas alternativas.

Tudo somado verifica-se que a AC, embora a necessidade de afinar algumas questões jurídicas e logísticas, além de atender, ainda que tardiamente, uma exigência do sistema internacional de direitos humanos, guarda sintonia com a nossa Constituição Federal e apenas aperfeiçoará o controle jurisdicional da legalidade das prisões, ademais de contribuir para assegurar com maior eficácia a integridade física do preso. Para tanto, o que mais se precisa, é de uma pitada de boa vontade e de um saudável diálogo institucional entre os atores envolvidos no processo.

Autores

  • é professor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUCRS. Juiz de Direito no RS e Professor da Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!