Passado a Limpo

Parecer de 1923 foi contra soldo vitalício para Voluntário da Pátria

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

6 de agosto de 2015, 8h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Em 1923 o então Consultor-Geral da República respondeu a Aviso do Ministro da Guerra a propósito de requerimento de pagamento de soldo vitalício para um farmacêutico, que participara da Guerra do Paraguai, no grupo dos Voluntários da Pátria. Chama a atenção o fato de que o interessado participou da referida guerra, na década de 1860, e o pedido datava de cerca de 60 anos depois. Interessante também o fato de que o parecer menciona Octavio Kelly, à época juiz federal, e que mais tarde chegou ao Supremo Tribunal Federal, onde se aposentou em 1942. Octavio Kelly é pai de Prado Kelly, também notável jurista, e que também chegou ao STF. Rodrigo Octavio optou pelo indeferimento do pedido, porém, como regularmente fazia, apontou para o consulente que havia alternativas, sempre de alçada superior. Segue o parecer:

Gabinete do Consultor-Geral da República — Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1923.

Ex.mo Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Guerra. — Com o Aviso n° 20, de 21 de agosto próximo findo, submeteu V. Ex.a a meu estudo o processo relativo ao pedido de soldo vitalício de Voluntário da Pátria, feito pelo farmacêutico Ignácio Manoel de Almeida Chastinet.

Do processo consta que o requerente, então estudante de farmácia na Faculdade da Bahia, foi, no início da guerra, contratado para o serviço desse Ministério e seguiu para o Paraguai em 1865, tendo, a seu pedido, sido dispensado, e regressado em 1866. Da certidão junta aos papéis consta que percebeu soldo de setembro daquele ano até novembro de 1866.

Posteriormente, em 1868 voltou ao Paraguai, contratado então pelo Ministério da Marinha, havendo em 1869 entrado para o serviço efetivo do qual se exonerou em 1876. O pedido já por duas vezes foi indeferido pelos seguintes fundamentos: 1.°) por não haver o requerente servido todo o tempo da campanha, exonerando-se, a pedido, do seu contrato; 2.°) por haver posteriormente entrado para o serviço efetivo militar e ser esse um caso em que o art. 2.°, letra h, das Instruções aprovadas pelo Decreto-nº 6.768, de 1907, para execução da Lei n° 1.687 do mesmo ano, exclui o voluntário do favor.

O requerente pede, entretanto, reconsideração desses, despachos, instruindo agora seu pedido com certidão de uma sentença do íntegro Juiz Federal deste Distrito, Sr. Dr. Octávio Kelly, em caso quase similar. Sendo, a meu ver, de inteira justiça o que requer o referido voluntário, não me parece, entretanto, que caiba a V. Ex.a deferir o pedido.

A primeira das dúvidas levantadas não me parece que pudesse ser obstáculo ao deferimento. A lei não cogita do tempo de serviço dos voluntários em campanha e assim não parece legítimo que seja pelo Poder Executivo interpretada de modo restrito, só se reconhecendo direito aos que houvessem servido toda a campanha salvo impedimento justificado.

A outra dúvida, porém, se me afigura obstáculo à decisão favorável do pedido pelo Poder Executivo. As citadas Instruções de 1907 contêm o referido dispositivo que exclui dos benefícios da lei os que passarem para o Exército e Armada, aí constituindo a sua carreira militar, embora posteriormente às promoções obtidas pedissem de missão do serviço. Ora, se bem que tal dispositivo imponha uma restrição não criada pela lei, o que, importando em alteração da lei, escapa à competência meramente regulamentadora do Poder Executivo, contudo os órgãos da administração não podem deixar de respeitar e fazer respeitar esse dispositivo. Seria certamente tumultuário e anárquico se cada Ministro de Estado pudesse, no exercício de suas funções, deixar de aplicar este ou aquele dispositivo de regulamento por lhe parecer inconstitucional ou contrário às leis. Dos órgãos do Poder Público só têm essa competência o Poder Judiciário, intérprete da Constituição e guarda da pureza de seus princípios.

Não pode, pois, ser deferido o pedido do requerente em face da expressa disposição do art. 2º, letra h, das Instruções aprovadas pelo Decreto n° 6.768, de 1907. É evidente que o caso do requerente está subordinado a esse decreto. É certo que seu direito, como farmacêutico contratado, decorre apenas da Lei n° 2.281, de 28 de novembro de 1910. Tal lei, porém, não mais fez do que, justamente, incorporar o requerente entre aqueles a quem deu direito a Lei de 1907 regulada pelo Decreto n° 6.768, do mesmo ano. Nestas condições, deve o pedido ser indeferido, a menos que não queira V. Ex.a, em face da particularidade do caso, tomar um dos dois alvitres seguintes: a) mandar aguardar, para conhecer deste pedido, que o Supremo Tribunal Federal se manifeste sobre a sentença já proferida pelo Juiz Sr. Dr. Octávio Kelly, caso em que, reconhecida pelo Poder Judiciário a ilegalidade do dispositivo regulamentar, já não estará V. Ex.a obrigado a respeitá-lo; ou, b) propor ao Sr. Presidente da República a supressão por decreto do referido dispositivo, evidentemente modificativo da lei regulamentada.

Com este parecer devolvo o processo a V. Ex.a, a quem tenho a honra de reiterar os meus protestos de elevada estima e distinta consideração.

Rodrigo Octavio”

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!