Composição de tribunal de contas não pode ser refém da política
6 de agosto de 2015, 10h47
Nada como uma crise política e econômica para nos despertar para a importância de fiscalizar a adequação dos escassos recursos públicos às crescentes necessidades sociais. O despertar tardio desafia a cultura enraizada que nos acostumou a pensar que recursos públicos são infinitos e não têm dono; logo, ninguém se interessaria pelo seu desperdício e desvio.
O controle externo da atividade financeira do Estado é essencial para a manutenção do equilíbrio e independência dos poderes. Além disso, constitui requisito importante para a configuração do Estado Democrático de Direito por cometer aos representantes do povo a última palavra a respeito da fiscalização orçamentária, financeira, contábil, operacional e patrimonial dos recursos públicos.
Ruy Barbosa talvez não tenha imaginado que a instituição que ajudou a criar há mais de um século estaria nas manchetes dos jornais e no gosto dos cidadãos. Na proposta de criação do Tribunal de Contas, eternizou sua motivação:
Dentre os muitos e admirados predicados de Ruy Barbosa, uma das mentes mais brilhantes de nossa história, não consta que teria sido também profeta. Mas a história do TCU começa oficialmente no ano de sua instituição, 1893, em razão do empenho de Serzedello Corrêa, Ministro da Fazenda do governo de Floriano Peixoto. Depois da criação, seguiu-se um prévia do que poderia ocorrer doravante: “Logo após sua instalação, porém, o Tribunal de Contas considerou ilegal a nomeação, feita pelo Presidente Floriano Peixoto, de um parente do ex-presidente Deodoro da Fonseca. Inconformado com a decisão do Tribunal, Floriano Peixoto mandou redigir decretos que retiravam do TCU a competência para impugnar despesas consideradas ilegais. O ministro da Fazenda Serzedello Correa, não concordando com a posição do Presidente demitiu-se do cargo”[2]. Dando um longo salto para os dias atuais, convém reconhecer que Constituição de 1988 outorgou especial dignidade ao Tribunal de Contas, conferindo-lhe atribuições e garantias que por pouco não o equipararam aos poderes do Estado. Para além de relevantes competências próprias, exercidas sem qualquer grau de subalternidade a quem quer que seja, talvez a mais relevante atribuição do Tribunal de Contas seja auxiliar o controle externo titularizado pelo Legislativo, emitindo parecer prévio técnico sobre as contas do Poder Executivo. Em síntese, como se sabe, a análise técnica das contas é realizada pelo Tribunal de Contas e o julgamento feito pelo Legislativo. O julgamento das contas é eminentemente político — não poderia ser diferente, por se tratar exatamente da avaliação do governo por intermédio de suas contas. Entretanto, a atuação do Tribunal de Contas é exclusivamente técnica. Envolve a avaliação do cumprimento das normas de contabilidade, o respeito às muitas regras do orçamento e das finanças públicas. A relevância dessa atribuição exige acurado rigor científico, elevado grau de conhecimento, experiência e formação (além de insuspeita) probidade para subsidiar o posterior julgamento das contas pelos representantes do povo. Por essa razão, o corpo técnico dos diversos Tribunais de Contas do país costuma ser altamente qualificado, sendo comumente requisitado para auxiliar inclusive o Ministério Público em determinadas situações. Em razão da relevância dessas atribuições, os requisitos para os integrantes das Cortes de Contas são extremamente rígidos: idoneidade moral e reputação ilibada; notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública; mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos mencionados anteriormente. Percebe-se que esses requisitos são mais inclementes do que os exigidos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que devem possuir somente notável saber jurídico e reputação ilibada. Talvez não exista qualquer reparo a ser feito no tocante aos atributos exigidos de ministros e conselheiros dos Tribunais de Contas, a Constituição talvez tenha até sido muito rígida. Só falta cumprir a Constituição. Todos os requisitos exigidos são passíveis de aferição objetiva. Em especial, a notoriedade impõe que os conhecimentos referidos devem ser manifestos, incontestes, não bastando simples diplomação, mas sim um reconhecimento patente e indiscutível por parte de todos, especialmente pelos que atuam em ramo pertinente à referida matéria. Em feito no qual se discutia a indicação de Conselheiro para o TCE-TO, o saudoso ministro Paulo Brossard anotou em seu voto que “deve haver um mínimo de pertinência entre as qualidades intelectuais dos nomeados e o ofício a desempenhar. Podem eles ser pessoas excelentes, mas nada indica que tenham a qualificação mínima para o desempenho dos cargos para os quais foram contemplados”[3]. A composição dos Tribunais de Contas, por seu turno, obedece a lógica própria: mescla entre indicações do Legislativo e Executivo. Ao contrário do que ocorre com os Tribunais Judiciários, nos quais o chamado “quinto constitucional” contempla um quinto de membros oriundos do Ministério Público e da OAB, nos Tribunais de Contas existe o quinto às avessas: nos Estados, dentre os sete integrantes apenas dois são oriundos de carreiras públicas providas inicialmente por concurso (Ministério Público de Contas e Auditores), sendo cinco livremente indicados. O resultado da soma da inobservância dos requisitos constitucionais com as regras da composição é a preponderância da influência política sobre o rigorismo técnico. Uma breve olhada na composição das Cortes comprova a predominância de ex-agentes políticos que, se tiverem os conhecimentos exigidos, dificilmente terão a neutralidade necessária. Reportagem recente do jornal Folha de S.Paulo divulgou que, nos últimos anos, apenas três governadores tiveram suas contas rejeitadas pelos Tribunais de Contas. De duas, uma: ou os Estados estão sendo administrados com excelência, ou o controle externo está fazendo o juízo político que, de acordo com a Constituição, cabe ao Legislativo. Não há razão para a predominância política na “magistratura intermediária”, pois as atribuições são eminentemente técnicas. É possível discutir bastante sobre qual seria a composição ideal (a PEC 329/2013, da Câmara Dos Deputados, traz proposta interessante) mas é difícil não reconhecer que o modelo atual é inadequado. A sociedade estará atenta ao placar da decisão do TCU. De qualquer forma, não façamos de Ruy Barbosa um profeta: para que os Tribunais de Contas não se convertam em instituições de ornato aparatoso e inútil, é hora de colocar na moda a mudança de sua composição. |
[1] A esse propósito, confira-se este excelente artigo de José Maurício Conti.
[2] Fonte: site oficial do Tribunal de Contas da União.
[3] RE 167.137/TO, Rel. Min. Paulo Brossard (DJ 25.11.1994, pp. 32312.
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