Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-americano (Parte 24)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

5 de agosto de 2015, 8h00

Spacca
1. Um país de muitos advogados, poucos juízes e promotores eleitos pelo povo
O título que abre a primeira seção desta coluna é uma espécie de quadro das três principais profissões jurídicas estadunidenses: grande número de advogados, poucos juízes em comparação ao número de habitantes e promotores estaduais escolhidos por voto popular.

Nada mais díspar da realidade profissional dos países da tradição romano-germânica, como se pôde observar nas colunas sobre Alemanha, Portugal, Itália e França, ou mesmo se comparado o modelo norte-americano com o brasileiro.

O advogado é a figura de maior interesse e com maior número de atribuições no sistema jurídico norte-americano. Há um compartilhamento do poder judicial com o povo nos julgamentos cíveis e criminais por meio do tribunal do júri. Existe enorme margem para negociação entre defesa e acusação, o que se nota por institutos como a plea bargaining. A arbitragem, a mediação, a existência de procedimentos administrativos nas agências reguladoras, com independência relativa ao Poder Judiciário, são também características peculiares do modelo norte-americano e que imprimem suas marcas no perfil e na atribuição das profissões jurídicas dos Estados Unidos.

2. Os atores principais: os advogados
Tomando-se por base uma população de 318.857.056, existiam 1.266.158 advogados nos Estados Unidos no ano de 2014. Para cada 10.000 habitantes, em 2014, encontravam-se 39,7 advogados nos estados norte-americanos, incluindo-se Porto Rico e o Distrito de Colúmbia nesse conceito. O Arkansas é o estado com o menor número proporcional de advogados (5.970), o que equivale a 20,1 advogados por 10.000 habitantes. O Distrito de Colúmbia tem 51.928 advogados, com uma relação de 788,1 advogados por 10.000 habitantes. É o campeão nacional no número proporcional desses profissionais. Nova York ocupa um distante segundo lugar na relação entre população e advogados: 86 por cada 10.000 habitantes. Em termos absolutos, é o estado com mais advogados no país: 169.756 profissionais.[1]

Comparativamente, conforme dados da Ordem dos Advogados do Brasil, em julho de 2015, há 879.672 advogados regularmente inscritos no País.[2] São Paulo, em números absolutos, é o estado da federação com maior número de advogados: 263.897. A unidade federada com menor quantidade de advogados, também em termos absolutos, é o Estado de Roraima, com 1.247 profissionais inscritos na OAB. O Brasil tem aproximadamente 386.486 advogados a menos que os Estados Unidos. A aproximação – e não a exatidão – deve-se ao fato de que se está a comparar dados de 2014 (EUA) com dados de 2015 (Brasil).

O advogado nos Estados Unidos, quando atua perante tribunais é referido como attorney at law, embora exista o advogado consultivo externo (outside counsel) e o consultivo interno (in-house counsel); o advogado que atua na elaboração de atos extrajudiciais ou na assessoria pré-contenciosa (office practice attorney); o advogado contencioso (litigators), que funciona em juízo, arbitragem ou em transações, além de outras espécies.

O direito de exercer a advocacia é dependente da aprovação do egresso de uma law school no bar examination, que é vulgarmente traduzido por exame de ordem, embora sua natureza e suas características sejam bem diversos do equivalente brasileiro. Cada bar association estadual tem regras próprias para admitir novos advogados a seus quadros. Pré-condição mínima para se apresentar ao exame é possuir um título de juris doctor. Sem o juris doctor, é possível ao titular de um juridical science doctor prestar o bar examination, o que se torna muito conveniente para estrangeiros.

São poucas as universidades americanas que oferecem cursos de preparação para o exame de ordem. Existem cursinhos preparatórios (bar review) para o bar examination ou os próprios alunos se organizam para estudar em grupo em ordem a prestar esse exame.

O conteúdo do bar examination é variável de estado para estado. Há alguns exames de caráter interestadual e que permitem a portabilidade de pontos. O bar examination do estado de New York, na versão de 2011, compôs-se de questões dissertativas complexas, envolvendo casos práticos que deveriam ser resolvidos pelos candidatos em matérias como Contratos, Propriedade, Direito Societário, Processo Civil, Responsabilidade Civil, Questões Deontológicas, Direito Penal, Direito de Família e Direito das Sucessões.[3]   

3. Poucos e respeitáveis: os juízes
A figura do juiz nos Estados Unidos é cercada de muita reverência e de respeito. No período colonial e nos primórdios da independência norte-americana, o juiz assumiu funções administrativas e políticas que se mostraram fundamentais para a estabilidade dos condados onde exerciam suas funções. Na construção do direito, os cases sempre tiveram preeminência, o que se tornou irreversível no final do século XIX, quando o método do caso de Langdell começou a ganhar espaço e iniciar sua trajetória de preeminência no ensino jurídico estadunidense. Nos séculos XIX e XX, grandes magistrados da Suprema Corte inscreveram seus nomes na história jurídica do país e também se tornaram célebres no resto do mundo, mercê da crescente influência dos Estados Unidos no cenário internacional. Um estudante de direito no Brasil, em algum momento de sua graduação ou de sua pós-graduação, terá contato com os nomes ou as decisões de: a) John Marshall (chief justice de 1801 a 1835), relator do histórico caso Marbury v. Madison (1803); b) Earl Warren (chief justice de 1953 a 1969), político californiano que se converteu em magistrado da Suprema Corte e foi relator da decisão que pôs fim à segregação racial nas escolas públicas (Brown v. Board of Education – 1954); c) Louis Brandeis (associate justice de 1916 a 1939), primeiro judeu nomeado para a Suprema Corte, notabilizou-se por seus votos vencidos em questões ligadas à liberdade de expressão e ao direito à privacidade; d) Oliver Wendell Holmes (associate justice de 1902 a 1932), que iniciou sua vida como herói na Guerra de Secessão americana e posteriormente se tornou uma dos mais influentes pensadores do direito nos Estados Unidos.  É um dos juízes mais citados nas decisões da Suprema Corte até os dias de hoje; e) Joseph Story (associate justice de 1812 a 1845), é conhecido como o fundador do Direito Internacional nos Estados Unidos e também por sua atuação no caso United States v. Amistad (1841), que viria servir de base para o filme Amistad, de Steven Spielberg; f) Benjamin Nathan Cardozo (associate justice de 1932 a 1938), descendente de judeus sefarditas de origem portuguesa, integrou a fação liberal da Suprema Corte e ajudou o presidente Roosevelt a implementar o New Deal em sua batalha judicial em prol das medidas sociais contidas na legislação aprovada pelo congresso americano e levada ao escrutínio da Suprema Corte.

Os nove juízes da Suprema Corte são de livre escolha do presidente dos Estados Unidos. É comum a indicação de pessoas ligadas ao ideário político do presente, mas isso nem sempre ocorre e, mesmo quando há essa vinculação, existem situações nas quais o nomeado assume posições liberais ou conservadoras em contradição com suas antigas credenciais. Essa mudança ocorreu recentemente em julgamentos importantes como o Obamacare e o casamento igualitário. O associate justice Anthony McLeod Kennedy, indicado pelo presidente Ronald Reagan (Partido Republicano), é um exemplo bastante atual dessa desvinculação ideológica, ao votar em favor do casamento igualitário (caso Obergefell v. Hodges).

A Constituição não prevê requisitos formais para a nomeação. No entanto, o escrutínio do Senado norte-americano é rigoroso e geralmente se demora por meses, não se limitando a examinar questões de ordem jurídica, mas posições ideológicas, morais e a vida pregressa do candidato. Inexiste também um limite de aposentadoria compulsória. Há um dito jocoso com o seguinte conteúdo: “Os juízes da Suprema Corte não se aposentam e raramente morrem”. O declínio mental ou de saúde, no entanto, é um fator que provoca a renúncia de alguns desses magistrados.

Nos Estados Unidos não há órgãos equivalentes a nossos tribunais superiores, mas a jurisdição divide-se também em federal e estadual. No âmbito federal, existem as cortes federais distritais, correspondentes a nosso conceito de órgão de primeiro grau, e as cortes federais regionais (United States Circuit Courts of Appeal). Na jurisdição federal encontram-se ainda os Tribunais Federais de Falências e os Tribunais de Comércio Internacional.

Os magistrados federais são indicados pelo presidente dos Estados Unidos e dependem, assim como os juízes da Suprema Corte, de aprovação do Senado. Os juízes federais distritais recebem U$ 201.100 por ano. Os juízes federais dos circuitos de apelação recebem U$ 213.300 anuais. Os juízes da Suprema Corte têm uma remuneração anual de U$ 246.800, enquanto o presidente do tribunal (chief justice) ganha U$ 258.100[4]. É lícito que recebam, por aulas ou conferências, U$ 21.000 anuais, no máximo.

No âmbito estadual, os magistrados dependem do regime jurídico de cada unidade federativa. Há diferentes tipos de investidura dos juízes estaduais, que se dá por nomeação pelo governador, com as seguintes variantes em complementação ao ato do chefe do Poder Executivo: a) nomeação direta; b) eleição popular; c) indicação por um comitê de busca independente; d) sabatina pelo Poder Legislativo.

Segundo Dario Moura Vicente, “a ambos os níveis o número total de juízes é relativamente baixo: em 2009, encontravam-se em funções 1.227 juízes federais e cerca de 12.000 juízes estaduais”.[5]

4.O povo contra o crime: o U.S attorney e o state attorney
Quando foram presos os altos dirigentes da FIFA na Suíça, de entre eles o ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol, a imagem de Loretta Lynch ocupou espaços generosos na mídia internacional. O cargo da senhora Lynch denomina-se United States Attorney General e ela é a titular do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Não há parâmetros de comparação entre esse e um cargo equivalente no sistema jurídico brasileiro. O United States Attorney General é membro do gabinete de ministros, embora não receba o título respectivo (secretary) e, de modo particular, sua nomeação depende de aprovação pelo Senado estadunidense.

Vinculado ao Departamento de Justiça estão os Offices of the United States Attorneys, integrados por 93 United States Attorneys, que exercem suas funções nos respectivos distritos. Sua atuação dá-se no âmbito da prevenção a crimes violentos, fraudes financeiras, direitos fundamentais, direitos indígenas, segurança nacional, política antidrogas, proteção à infância, sistema de proteção às vítimas, crimes cibernéticos e proteção com o bullying. Existe também a figura do Assistant United States Attorneys, que se organizam em quatro divisões: a) criminal; b) civil; c) de recursos; d) de contencioso financeiro. Nos níveis iniciais da carreira de assistente dos procuradores dos Estados Unidos têm remunerações anuais mínimas de U$ 45.447 e máximas de U$ 77.311. No nível mais alto da carreira (mais de nove anos de experiência), pode-se chegar a rendas anuais mínimas de U$ 78.928 e máximas de U$ 134.117 (dados de 2015).[6]

Em cada estado-membro há um state attorney-general, de caráter simétrico ao U.S. Attorney General. Na maioria dos estados, o procurador-geral é eleito por voto popular, embora haja excepcionalmente modelos de eleição pelas assembleias locais ou pela Suprema Corte Estadual.

No estado da Califórnia, o Attorney-General é o titular do Departamento de Justiça estadual e sua competência em matéria cível e criminal perante os juízos de primeiro e segundo graus, além de oferecer assessoria jurídica aos órgãos e agências da Califórnia.[7]    

O sistema norte-americano combina elementos presentes nas constituições brasileiras anteriores a 1988: a) vinculação do procurador-geral ao Departamento de Justiça, confundindo-se a titularidade da pasta com a chefia dos procuradores vogais. No Brasil, por muitas décadas, o procurador-geral da República era um subordinado do ministro da Justiça; b) escolha por indicação presidencial ou por eleição popular, na maioria dos Estados; c) remunerações assimétricas em face das que são pagas pelo Poder Judiciário; d) atuação estreita com os órgãos policiais.

*** 

Na próxima coluna, encerrar-se-á a série sobre o modelo norte-americano.


[1] Disponível em: https://lawschooltuitionbubble.wordpress.com/original-research-updated/lawyers-per-capita-by-state/. Acesso em 10-7-2015.
[2] Disponível em: http://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados. Acesso em 11-7-2015.
[3] Disponível em: http://www.nybarexam.org/ExamQuestions/JULY2011QA.pdf. Acesso em 11-7-2015.
[4] Dados de 2015, conforme tabela demonstrando a evolução remuneratória desde 1968: http://www.uscourts.gov/judges-judgeships/judicial-compensation. Acesso em 11-7-2015.
[5] MOURA VICENTE, Dario. Direito Comparado. Coimbra: Almedina, 2014. v.1. p. 310.
[6] Informações extraídas de: http://www.justice.gov/usao. Acesso em 11-7-2015.
[7] Informações extraídas de: https://oag.ca.gov/careers/exams. Acesso em 11-7-2015.

Autores

  • Brave

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!