Opinião

MP 685 deve respeitar limites da atividade empresarial e ordenamento normativo

Autor

  • Guilherme Cardoso Leite

    é advogado sócio do escritório Machado Leite e Bueno Advogados mestre em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito Tributário pelo IBET.

4 de agosto de 2015, 6h54

A presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 685, publicada em 22 de julho de 2015, data do início da sua vigência, que tem por objetivos precípuos (i) instituir o Programa de Redução de Litígios Tributários (PRORELIT); (ii) estabelecer mecanismo de controle de planejamento tributário que acarrete supressão, redução ou diferimento de tributo; e (iii) permitir que o Poder Executivo federal realize a atualização monetária de taxas relacionadas ao poder de polícia e aos serviços públicos em sua esfera de competência. Entre estes três objetivos explicitados pela MP 685/2015, um chama especial atenção: a declaração de planejamento tributário.

Segundo consta da exposição de motivos da MP 685/2015, a figura da declaração de planejamento tributário estaria em sinergia com movimentos internacionais de transparência tributária e fiscal, em especial com as estratégias definidas no âmbito da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a contenção de indevida elisão fiscal por grandes empresas.1

A estrutura normativa da declaração de planejamento tributário adotada pela MP 685/2015 apresenta, ainda que implicitamente, uma forma de regulamentar o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), que estabelece cláusula legal antielisiva. Estabelece, pois, primeiramente, uma obrigação. O contribuinte deverá declarar à Receita Federal o “conjunto de operações (…) que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo2. Em síntese, a obrigação decorrente da norma impõe ao contribuinte a obrigação de informar a autoridade tributária qualquer aspecto relacionado a operações que, na prática, tenham aptidão para reduzir a carga tributária atrelada a determinado negócio jurídico.

Essa declaração pelo contribuinte, que deve ser encaminhada até o dia 30 de setembro de cada ano, apresenta-se obrigatória quando (i) os atos ou negócios jurídicos não possuírem razões “extratributárias” relevantes; (ii) a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; (iii) ou tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Receita Federal.

A declaração apresentada pelo contribuinte, conforme estrutura normativa da MP 685/2015, deverá ser analisada pela autoridade fazendária, que poderá (i) aprovar a operação informada; (ii) não reconhecer os efeitos tributários benéficos da operação e intimar o sujeito passivo para o recolhimento ou parcelamento do tributo devido; ou (iii) entender que a declaração apresentada é ineficaz, hipótese em que, de ofício, caracterizará o descumprimento da obrigação como omissão dolosa do sujeito passivo com o intuito de sonegação ou fraude tributária. Nos casos em que a operação declarada pelo contribuinte ainda não tiver sido realizada, ou seja, quando a declaração se referir a eventos futuros, ela será tratada como consulta à legislação tributária, nos termos do Decreto 70.235/1972, de modo a surtir efeitos vinculativos relativamente ao posicionamento da autoridade fazendária.

Quer parecer, a primeira vista, que a medida encetada na MP 685/2015 estaria consonante com as previsões atinentes à fiscalização tributária previstas no CTN, em especial com a norma do parágrafo único do seu artigo 199. Isso porque há expressa previsão de que “a Fazenda Pública da União, na forma estabelecida em tratados, acordos ou convênios, poderá permutar informações com Estados estrangeiros no interesse da arrecadação e da fiscalização de tributos”. E um dos fundamentos da MP 685/2015 é justamente o alinhamento internacional de intenções e de estratégias relativamente ao denominado Plano de Ação sobre Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros editado no âmbito da OCDE3.

Embora a República Federativa do Brasil não seja signatária da OCDE, a estratégia de resiliência frente a planejamentos tributários considerados agressivos é também discutida e encampada pelo denominado Grupo dos Vinte (G-20), do qual o Brasil faz parte. Daí se justificaria a internalização das medidas antielisivas que estariam a pautar discussões tendentes a uma cooperação internacional cujo foco não seja apenas a dupla tributação das empresas multinacionais com operação em diversas jurisdições.

A internalização das medidas antielisivas idealizadas pelo grupo de trabalho da OCDE/G-20 deve respeitar, por certo, os limites estabelecidos ao livre exercício da atividade empresarial no Brasil, que está assegurado no artigo 170 da Constituição Federal. Afinal, planejar os custos da atividade dentro dos limites legais é direito do empresário, especialmente em um ambiente de economia de mercado e de alta competitividade nacional e internacional.

A despeito da alegada sintonia internacional das medidas, a consequência estabelecida na MP 685/2015, notadamente no que se refere à imediata presunção de omissão dolosa do sujeito passivo com o intuito de sonegação ou fraude tributária, afigura-se exacerbada, fora de parâmetros mínimos de razoabilidade. E isso porque não se alinham às garantias da não autoincriminação e da presunção de inocência latu sensu considerada, previstas no artigo 5º, incisos LXIII e LVII, da Constituição Federal e no artigo 8º, parágrafo 2º, alínea g, do Pacto de San José da Costa Rica.

É evidente que o planejamento tributário formulado nos limites estabelecidos pela legislação em vigor, licitamente, portanto, não pode ser compreendido como um ato fraudulento. A fraude não é algo objetivo. Deve ser aferida subjetivamente, com a especial intenção de apurar eventual intuito fraudulento de uma determinada operação de planejamento tributário, com o escopo de sonegar tributos.

A presunção de omissão fraudulenta pelo sujeito passivo da obrigação tributária deve ser compreendida como relativa, iuris tantum. O próprio parágrafo único do artigo 116 do CTN estabelece que a desconsideração de atos ou negócios jurídicos dissimulados pressupõe a observância de procedimentos estabelecidos em lei ordinária. Embora a MP 685/2015 intente preencher a lacuna da regulamentação normativa, especialmente porque se qualifica como lei ordinária nos termos do art. 62 da Constituição Federal, ela acaba por “meter os pés pelas mãos” ao adotar a compreensão de que a presunção da omissão da declaração ou o entendimento pela sua ineficácia acarretaria presunção absoluta, iure et de iure, de sonegação ou fraude pelo sujeito passivo. Há, aqui, o risco inerente a toda generalização.

Quer parecer, nesta inicial reflexão acerca da MP 685/2015, que a estrutura que melhor conciliaria a intenção do novel instrumento da política estatal antielisiva é aquela que compreende a possibilidade de que, verificada alguma inconsistência nas informações fornecidas pelo contribuinte ou a inexistência da declaração, deverá ocorrer a sua notificação para que preste esclarecimentos previamente à constituição de eventual crédito tributário apurado de ofício pela autoridade fazendária. Haveria, assim, efetiva garantia ao devido processo legal e à ampla defesa, resguardada a presunção relativa de eventual inconsistência ou omissão nas informações prestadas pelo contribuinte.

Essa observação foi bem pontuada por Ricardo Lodi Ribeiro, quando sustentou que “modelo muito mais eficaz e respeitador das garantias constitucionais dos contribuintes é a regulamentação direta do parágrafo único do artigo 116 do CTN, de forma a estabelecer um procedimento, anterior ao lançamento, em que seja assegurado o contraditório e a ampla defesa, em relação aos procedimentos fiscais que apontarem indícios da prática de abuso de direito no planejamento fiscal, admitindo-se o pagamento do tributo sem multa nos casos em que as autoridades julgadoras entenderem pela inexistência de dolo, fraude, ou simulação, a despeito da desconsideração do negócio jurídico praticado com abuso de direito4.

Alvissareira é a lição de Heleno Tôrres acerca dos cuidados que a autoridade fiscal deve ter ao implementar políticas antielisivas relativamente ao planejamento tributário. Isso porque, “naturalmente, essas hipóteses [de planejamento tributário] prestam-se a usos indevidos, abusivos ou podem apresentar conteúdos ilícitos, mas isso não pode servir a qualquer tomada de posição generalizadora sobre a liceidade ou ilicitude destas. Toda generalização indutiva em matéria jurídica leva à imprecisão5.

Não se pretende afirmar que a exigência de declaração de planejamento tributário esteja de todo equivocada. Em verdade, a constante interação e diálogo entre o setor privado e o Fisco está na raiz de países comercialmente desenvolvidos, como é o caso da Inglaterra e dos Estados Unidos. Informar detalhes de uma determinada operação à autoridade tributária tende a funcionar como um método prévio de composição de eventual contencioso relativamente à arrecadação tributária. Mas a exigência de informações e o necessário diálogo entre contribuinte e Fisco deve respeitar limites que estão atrelados à própria atividade empresarial, à definição de prioridades estratégicas do negócio e o ordenamento normativo vigente — em especial, para este caso, no Brasil —, de modo que não se intente considerar como fraude dolosa alguma conduta planejada e realizada nos limites da lei.


1 Vide exposição de motivos da MP 685/2015: “5. Nesta linha o Plano de Ação sobre Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros (Plano de Ação BEPS, OCDE, 2013), projeto desenvolvido no âmbito da OCDE/G20 e que conta com a participação do Brasil, reconheceu, com base na experiência de diversos países (EUA, Reino Unido, Portugal, África do Sul, Canadá e Irlanda), os benefícios das regras de revelação obrigatória a administrações tributárias. Assim, no âmbito do BEPS, há recomendações relacionadas com a elaboração de tais regras quanto a operações, arranjos ou estruturas agressivos ou abusivos.” Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/quadro/_quadro%20geral.htm> Acesso em 23/7/2015.

2 Art. 7º, caput, da MP 685/2015.

3 OCDE. Plano de ação para o combate à erosão da base tributária e à transferência de lucros. OECD Publishing. Disponível em <http://dx.doi.org/10.1787/9789264207790-pt> Acesso em 23/7/2015.

4 Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-jul-23/ricardo-lodi-planejamento-tributario-mal-feito-nao-sonegar> Acesso em 24/7/2015.

5 TÔRRES, Heleno. Direito tributário internacional: planejamento tributário e operações transnacionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.14.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Machado, Leite e Bueno Advogados, mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito Tributário pelo IBET.

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