Justiça Tributária

MP 685 desmoraliza Poder Legislativo e aterroriza contribuintes

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

3 de agosto de 2015, 8h01

Spacca
Trata-se de verdadeira aberração jurídica essa medida que alegadamente pretende instituir um tal Programa de Redução de Litígios Tributários (Prorelit) e criar obrigações inconstitucionais. Se o Congresso aprová-la, seria coerente que adotasse também o seu Prosuc (Programa de Suicídio Coletivo), pois não faria mais sentido a manutenção do Poder Legislativo, transformado em vasto curral de vaquinhas de presépio.

Diz a presidente que a Medida Provisória 685, de 21 de julho de 2015, é de sua atribuição face ao que permite o artigo 62 da Constituição. Sendo economista, pode não interpretar adequadamente as normas legais. Mesmo isso não é atenuante: dispense o ministro da Justiça e especialmente o da Fazenda, que talvez tenha assinado essa bobagem sem consultar ninguém.

O artigo 62 da Constituição Federal é claríssimo: MP só se edita em caso de relevância e urgência! Não pode a presidente invocar essas atribuições em qualquer situação para, de fato, tornar-se chefe de uma ditadura!  Ela, mais que ninguém, sabe que não estamos mais num regime de exceção e que não existe mais decreto-lei! 

Também não pode repetir tal expediente com irritante freqüência, com isso trancando a pauta do Congresso quando lhe aprouver, dando ao povo a impressão de que nossos legisladores são os únicos responsáveis por tudo o que acontece no país. Veja-se que neste ano já foram baixadas 20 medidas provisórias, enquanto no mandato anterior a média mensal chegou a cerca de 40!  Pode ser que quase tudo seja relevante, mas a maior parte das matérias ali tratadas não são tão urgentes e podem aguardar o rito legislativo, cabendo ao executivo, pelos meios legais ao seu alcance, não permitir seu engavetamento.

Ora, qual urgência existe em matéria relacionada com a criação de obrigações acessórias destinadas a prestação de informações tributárias?  

Todas as matérias contidas no artigo 7º da Medida Provisória 685 já são passíveis de fiscalização pela Receita Federal. E é público e notório que o Brasil possui hoje um dos mais eficientes sistemas de fiscalização do mundo.

A leitura atenta dos artigos 7º a 12 leva-nos à conclusão que se pretende implantar (se é que ainda não vigore) uma ditadura fiscalista no pior sentido da palavra, onde todos os contribuintes são culpados até prova em contrário.

Às urtigas o princípio da presunção de inocência! Passam a prevalecer os “atos necessários à execução dos procedimentos”, cuja competência o ato aqui examinado delega à Secretaria da Receita  e à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Ou seja: o poder, que a Carta Magna diz que emana do povo e que deve ser exercido por meio de seus representantes eleitos, passa a pertencer a burocratas, ainda que concursados.

Chega a ser assustador que o artigo 7º tente definir o que seja “forma adotada não usual” que “desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico”. Ora, o que são contratos típicos, além dos regidos pelo Código  Civil e demais disposições legais aplicáveis? Parece que ainda vigoram os princípios da livre iniciativa, do direito ao trabalho e a legitimidade do lucro lícito, base fundamental do capitalismo.

Também é pelo menos curiosa a “declaração do sujeito passivo que relatar atos ou negócios jurídicos ainda não ocorridos” . Se o contribuinte quiser fazer consulta, isso prevê o decreto 70.235 em seu artigo 46.

O artigo 9º pretende que, além da fiscalização, possa a Receita Federal “não reconhecer” operações e intimar o contribuinte para pagar o imposto em trinta dias, sem multa, apenas com juros de mora. Embora isso possa ser relevante, não é matéria que preencha o requisito de urgência. Vemos  nisso um único objetivo: fazer dinheiro com a possível preocupação de contribuintes intimados. E isso tem um nome: chantagem. Vem o governo e diz: “não tenho muita certeza se você deve. Mas se você pagar, cobro só juros; se não pagar,leva pesada multa”.

Para tentar transformar essa lambança num prato feito, reduziram-se drasticamente as esperanças do contribuinte ver resolvida a seu favor um contencioso tributário na esfera administrativa. O antigo Conselho de Contribuintes foi transformado em Carf, onde hoje a  possibilidade de julgamento imparcial parece reduzida.

Além da evidente inconstitucionalidade face à inexistência de ambos os  requisitos do artigo 62, a Medida Provisória (que se pretende ver transformada em Lei) viola também o artigo 7º da Lei Complementar nº 95 de 26 de fevereiro de 1998, já citada várias vezes nesta coluna:

Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:

I – excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;

II – a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão;

III – o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva;

IV – o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa.”

Todavia, em flagrante desrespeito à lei, a Medida Provisória 685 trata de vários assuntos diferentes: a) cria um programa que acena com uma conciliação entre fisco e contribuinte em determinadas condições; b) cria novas obrigações acessórias ; c) amplia o conceito legal de consulta; d) permite que a Receita lance tributo com base em presunção; e d) delega poderes do Executivo a autoridades do terceiro escalão.

Como se sabe, lei complementar é a que, numa hierarquia legislativa, vem logo após a Constituição, para completá-la no que for necessário.  Exemplo disso é o Código Tributário Nacional (Lei 5.172/1966).

Medida provisória só se torna lei provisoriamente, até que sobre ela se manifeste o Congresso. Quando um(a) presidente quer empalmar poderes que não lhe pertencem, abusa das medidas e tenta negociar (use-se a palavra como quiser o leitor) com o Congresso onde, infelizmente, consta que existe um bom número de negociantes e negociatas.

Ainda que legislação similar vigore em outros países (Estados Unidos, Holanda, Reino Unido etc) não há razão que nos obrigue ou mesmo possa sugerir adotá-la. Note-se, primeiramente, o nível de garantias de que os contribuintes usufruem nessas nações, em comparação com o tratamento  aqui recebido.

A internacionalização dos controles tributários é um fato positivo. Mas em nome de uma suposta transparência, não podemos nos tornar reféns de abusos ainda maiores dos que já se praticam por aqui.

Enquanto alhures existem países chamados paraísos fiscais, (Holanda é exemplo típico) todos aqui vivemos num inferno.

Parece-nos que mais urgente do que tudo isso é uma reforma tributária. Os sistemas tributários dos países mencionados são muito mais simples do que o nosso. Enquanto temos aqui dois impostos sobre valor agregado (IPI e ICMS), lá se cobra o imposto indireto de forma unificada e a alíquotas menores. Isso explica a diferença entre os produtos de lá e de cá.

Quando a presidente assinou a Medida Provisória 685 certamente errou. Como está com apenas o pires na mão, tenta arrecadar algum dinheiro. Só isso explica que para tentar a tal conciliação com o Fisco, o devedor tenha que pagar quase metade da dívida a vista, em até 30 de setembro. Não sei por que, mas isso tem cheiro de jogo de cartas marcadas.

O presidente da Câmara constituiu recentemente uma Comissão destinada a discutir projeto de reforma que lá se encontra. Esse é o caminho constitucional. A Medida Provisória 685 não pode ser aprovada pelo Congresso, sob pena de sofrerem grande desmoralização os que votem a favor.

*Texto alterado às 10h21 do dia 3 de agosto de 2015 para correção.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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