Segunda Leitura

Entre "cigarras e formigas", profissionais do Direito devem buscar equilíbrio

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

2 de agosto de 2015, 8h01

Spacca
Fábulas são escritos feitos em prosa ou verso, nos quais os personagens são animais, nelas se transmitindo, principalmente às crianças, lições de vida com um fundo moral. Esopo, um escravo que viveu na Grécia antes de Cristo, escreveu fábulas até hoje contadas, como “A raposa e as uvas”. No Brasil, Monteiro Lobato, o grande autor infantil, escreveu várias fábulas, como “O julgamento da ovelha”.

O francês Jean de La Fontaine (1621-1695) escreveu  "Fábulas Escolhidas", um livro com 124 fábulas, entre elas  “A cigarra e a formiga”. Essa fábula narra a história da cigarra que passou todo o verão cantando e, ao chegar o rigoroso inverno europeu, sem casa e alimentos, bateu à porta da casa da formiga, que passou o verão colhendo provisões. Ao ouvir o pedido de abrigo feito pela cigarra, a formiga perguntou o que ela fizera no verão. A cigarra respondeu “cantei”, ao que a formiga respondeu “então agora dance”.

Essa pequena história, cujo final sempre entristece as crianças e, por isso, vem recebendo adaptações mais amenas, com  a cigarra dando abrigo à formiga, tem um profundo significado. Na verdade, é um alerta aos humanos para que não passem a vida sem pensar no futuro, eis que um dia poderão ver-se em má situação.

O verão simboliza a juventude, com todas as suas alegrias. O inverno significa a velhice, fase em que a criatura se acha mais fragilizada e necessita de apoio. Entre ambos, a primavera e o outono, aquela simbolizando a infância, este a idade madura, que fica entre o fim da adolescência e o início da senilidade.

Mas o que tem isso tudo a ver com os jovens estudantes de Direito ou os recém-formados? Tudo, como adiante se verá.

Os acadêmicos de Direito atravessam uma linda fase de suas vidas. Jovens transmitem alegria, esperança, crença no futuro. Por tal motivo grupos de jovens são ruidosos e plenos de energia. Nada mais natural, portanto, que se divirtam, celebrem a vida. No entanto, é preciso que nessa fase, que pelos padrões contemporâneos pode ser tida como a da adolescência, mesmo que a idade já se aproxime dos 30, já se plantem as sementes que serão colhidas na vida adulta.  Como?

O curso de Direito deve ser levado com seriedade. As matérias dadas serão a base da cultura jurídica do futuro profissional. Assim, dedicar-se ao seu estudo não é apenas uma questão de ser aprovado, mas de ter conhecimentos que auxiliarão na advocacia ou em um futuro concurso. Mesmo que o objetivo do estudante seja advogar em área específica (previdenciário, por exemplo), o conhecimento de outras matérias dar-lhe-á visão de conjunto. Sem falar que o tornará respeitado entre os colegas, criando uma boa imagem.

Esta é a fase de comemorações. Porém, festas todas as noites é excesso que cobra o seu preço. Poucas horas de sono, bebidas, desequilíbrio alimentar, levam a um desregramento que influenciará decisivamente nos estudos. Evidentemente, isto pode ser feito com equilíbrio, por exemplo, estabelecendo um número máximo de dias por semana para essas atividades.

A graduação é o momento certo para ter-se o maior número de experiências. Visitar, perguntar, participar, ter curiosidade sobre a vida é que fará a diferença depois. Participar de ações sociais dá a indispensável noção dos problemas do próximo. Visitas são essenciais, mesmo que o local não seja dos mais estimulantes, como um presídio, pois darão uma visão concreta da execução das penas. Se houver possibilidade de estudar no exterior, melhor ainda. E o aproveitamento deve começar antes da viagem, estudando o país, sua cultura. Durante a permanência deve-se usufruir não apenas as aulas, mas também a possibilidade de alargar os conhecimentos, através de visitas a tribunais, museus e ONGs.

Em suma, durante o curso de graduação é preciso ser formiga, não deixando passar nenhuma oportunidade que possa vir a ser útil na futura vida profissional, sem deixar de ser cigarra, aproveitando os momentos de alegria que essa fase da vida propicia.

Aqueles que perdem o equilíbrio podem pagar um preço alto. Se forem só cigarras, podem perder a oportunidade que a vida lhes proporcionou e acabar trabalhando em atividade que nada tem a ver com o Direito, com baixa remuneração e uma vida limitada. Se forem só formigas, poderão ter sucesso, mas tornarem-se profissionais excessivamente rígidos, insensíveis aos dramas humanos, infelizes.

Vejamos  exemplos de “vidas cigarras”.

Ele não foi um bom estudante. De família rica, cursou Direito sem dedicação alguma. Formado, conseguiu passar no Exame de Ordem, à época mais fácil. Levou a vida sem direção certa, advocacia mais baseada nos contatos do que na atividade forense, nenhuma adaptação às modernidades, como o processo eletrônico. Chegou aos 60 defasado, a herança se foi, os problemas físicos surgiram. Na terceira idade passou a viver de empréstimos, com dificuldades até de pagar o condomínio.

Ele era um advogado de sucesso. Manejava muito bem as ações possessórias da pequena comarca onde atuava, recebendo os honorários em terras. A valorização imobiliária levou-o à riqueza. Promoveu festas seguidas, emprestava dinheiro a quem lhe pedisse, assim criou seus filhos, que adotaram o mesmo sistema de vida.  A concorrência resultante do crescimento do número de advogados e o peso do sustento dos filhos, aí incluídos noras e genros, levou-o à insolvência. Passou seus últimos dias em um asilo, sustentado pelo único filho que deu certo.

A fábula vai além do aspecto econômico. O inverno pode ser afetivo. Na escalada da vida as pessoas vão se colocando. Imagine-se uma turma de formatura. Dez anos depois de formados, as posições já são distintas. Uns são advogados de sucesso, outros ocupam importantes cargos públicos, há os que se situam em posições intermediárias (como servidor da Justiça) e os que nada conseguiram e que simplesmente desaparecem.

E agora, exemplos de “vidas formigas”.

Ele ingressou na magistratura. Destacou-se, escreveu, deu palestras, chegou ao Tribunal, apareceu na TV Justiça, foi a uma Corte Superior. Na caminhada conheceu muita gente importante e ficou encantado. Vinhos caros, almoços incríveis, elogios e tapinhas nas costas. Os amigos de outrora foram esquecidos, não havia tempo para eles. Só que os 70 anos chegaram e, com eles, a compulsória. Um ano depois, sem novidade alguma para contar, com o humor em baixa e o físico exibindo suas deficiências, veio a solidão. As amizades da juventude, que ele abandonou na caminhada, perdeu todas. Os que o idolatravam agora idolatram outros. Sem poder e sem relações sinceras, está aberto o caminho para a depressão.

O outro teve grande sucesso no MP. Carreira rápida, liderança, posse em cargos eletivos, viagens e palestras. Só não sobrava tempo para a família. Os compromissos eram muitos. Mas tudo passa. Ao final, com filhos ressentidos pelo abandono sofrido, vida familiar mal arranjada, só sobrou o arrependimento por ter se iludido e exagerado na dedicação.

Mas então, que conclusão se pode tirar disto tudo? Pode-se concluir que a fábula de La Fontaine atravessa os séculos e permanece sempre útil, acompanhando gerações. Por ser excessivamente severa, pode ser atenuada, adaptada aos nossos dias.

Os que vivem como cigarras devem lembrar que a vida não á apenas cantar, que os anos passam rapidamente e que nada pode ser pior do que chegar ao inverno despreparado. Cantar sim, mas nunca perdendo de vista a necessidade de semear para colher posteriormente. Semear, do ponto de vista econômico, é estudar,  economizar parte do que ganha, manter um plano de previdência privada e, no sucesso, não se esquecer daqueles com quem esteve nas outras fases da vida. Do ponto de vista afetivo é ascender sem esquecer as raízes, a origem, manter os vínculos familiares e de amizade.

Os que vivem como formigas não devem esquecer que a vida não é só deveres e compromissos e que o sucesso não é apenas estabilidade econômica ou cargo de destaque. Sucesso completo significa ter amigos, desfrutar os bons momentos, ser respeitado e ter outros interesses além do Direito. Não bater a porta na cara de quem pede, mas analisar a situação, avaliar a causa e, na medida do possível, dar a mão ao próximo quando ele necessite.

Em suma, o profissional do Direito deve focar sua estratégia com dedicação e profissionalismo, como uma formiga, porém aproveitando o que de bom a vida lhe oferece, sem que isto signifique viver de uma para outra festa. Um pouco cigarra, um pouco formiga, é uma boa meta a ser seguida por aqueles que pretendem viver bem em todas as estações, inclusive no inverno, que aqui pode ser chamado de terceira idade.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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