Observatório Constitucional

Formato do acórdão é obstáculo à construção de uma cultura de precedentes

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1 de agosto de 2015, 8h01

Este ano de 2015 tem sido especialmente dedicado às discussões sobre o advento do novo Código de Processo Civil. Os debates, vivenciados em diversos fóruns e instâncias, servem como um imprescindível preparo de toda a comunidade jurídica para a entrada em vigor das novas normas, no próximo ano de 2016.

Entre as inovações mais importantes, não é exagero dizer que deve haver um destaque especial para a exigência de se uniformizar a jurisprudência dos tribunais e mantê-la estável, íntegra e coerente, inserida no artigo 926, sem sombra de dúvida uma das disposições do novo código que mais trará repercussões para todo o sistema jurídico.

Estas três palavras (estabilidade, coerência e integridade), por sua elevada carga axiológica e sua alta complexidade conceitual, certamente ainda serão objeto de profundas discussões e muitos estudos teóricos, contexto em que as teorias da argumentação em geral, e da argumentação jurídica em particular, poderão oferecer aportes conceituais e pontos de reflexão bastante instigantes.

O objetivo deste breve artigo não é abordar as questões teóricas que rondam esses termos, nem sequer tocar nas diversas problemáticas que eles suscitam. A preocupação, neste momento, é de índole mais prática, voltada para a estrutura e a formatação dos textos das decisões dos tribunais brasileiros, especialmente do Supremo Tribunal Federal, as quais traduzem uma espécie de modelo seriatim de decisão e que, dessa forma, pode representar uma pedra no caminho da plena efetivação da referida disposição do novo código de processo.

Como é sabido, o texto que apresenta publicamente o resultado da deliberação colegiada é tradicionalmente denominado de acórdão, substantivo derivado do verbo acordar, na terceira pessoa do plural, para retratar o fato de a decisão do tribunal ser tomada pela convergência das distintas opiniões expressadas individualmente por cada membro do órgão colegiado. O termo assim traduz a ideia de um acordo intersubjetivamente adotado como resultado da deliberação do tribunal.

Não obstante, na prática, ao invés de consubstanciar uma unidade textual que apresenta de modo unívoco e inequívoco as razões de decidir (ratio decidendi) do órgão colegiado considerado em sua totalidade, o acórdão possui uma formatação peculiar, que apenas faz uma junção de todas as manifestações de cada membro do colegiado (todos os votos individuais e a transcrição dos debates). Sua estrutura, pelo menos a adotada no STF, é bastante conhecida e reúne basicamente: 1) a Ementa, que tem a função de apresentar de modo bastante sintético e resumido o fundamento e a parte dispositiva da decisão, e que é acompanhada da descrição do acórdão, isto é, do resultado da votação, com os nomes dos Ministros e seus respectivos votos em um sentido ou outro; 2) o Relatório, que faz o relato dos fatos e atos processuais e das circunstâncias fáticas e jurídicas envolvidas no caso julgado; 3) a íntegra de todos os votos dos Ministros que participaram da deliberação, na ordem de votação, começando pelo voto do Relator e depois seguindo a ordem crescente de antiguidade (do Ministro mais moderno até o Ministro mais antigo na Corte), terminando com o voto do Presidente, se houver; 3) as transcrições dos áudios dos debates orais ocorridos na sessão pública de julgamento.

O acórdão, portanto, designa um texto composto por todos os atos da sessão deliberativa, apresentados em sequência, desde o relatório até os votos (individualmente considerados) e os debates orais, o que conforma um peculiar modelo de decisão seriatim.

As características desse modelo seriatim de decisão, comparadas com as do modelo per curiam, já foram objeto de outro artigo publicado nesta coluna.

O formato seriatim privilegia a apresentação pública de cada opinião individual pronunciada pelos Ministros, com suas próprias razões de decidir, o que por um lado favorece a demonstração da pluralidade que caracteriza as diversas posições que compõem o órgão colegiado, revelando de modo mais aberto a realidade da deliberação, mas que, por outro lado, torna bastante difícil e complexa a tarefa de identificar de forma unívoca e inequívoca a ratio decidendi do tribunal como unidade institucional.

Outra característica do modelo seriatim é que ele pode transformar o texto da decisão em um aglomerado de votos com diversas posições e argumentos diferenciados, de modo que não é nada incomum que votos convergentes quanto à decisão tomada divirjam nitidamente nos fundamentos adotados e que outros votos que são muito semelhantes em técnicas argumentativas cheguem a conclusões opostas. Não há, portanto, uma distinção precisa entre votos vencedores e votos vencidos, nem entre votos divergentes (quanto à parte dispositiva da decisão) e votos concorrentes (que divergem apenas quanto à fundamentação da decisão). Mesmo a leitura atenta de um acórdão pode ser insuficiente para identificar com precisão as diversas posições e argumentos lançados em variados sentidos por cada Ministro.

Assim, os acórdãos acabam resultando em textos muito longos e com conteúdo extremamente diversificado e fragmentado, na medida em que nele estão contidas todas as posições e argumentos lançados na deliberação pública, separados e dispostos na sequência da formatação prevista, e não conforme uma narrativa unitária. Nos casos de maior repercussão, que normalmente são objeto de sessões deliberativas mais duradouras, os textos dos acórdãos comumente contêm algumas centenas de páginas, tornando complicada não apenas a leitura de sua íntegra, mas também a compreensão global dos fundamentos que justificam a decisão tomada pelo tribunal.

O fato é que os textos das decisões dos tribunais, e especialmente do Supremo Tribunal Federal, hoje têm-se caracterizado por serem longos, prolixos e fragmentados, o que nem sempre foi a prática desenvolvida na Corte. Em sua origem histórica, o Tribunal herdou a prática de redação desenvolvida por seu antecessor, o Supremo Tribunal de Justiça do Império, que por sua vez assimilara a tradicional cultura francesa das decisões sintéticas que visavam apresentar um raciocínio jurídico mais lógico e definido, sem margem para doutrina. Ao longo de seu primeiro centenário, o STF praticou um estilo redacional que sempre abriu espaço para doutrina, mas que não por isso deixou de manter as características das decisões mais sintéticas, que muitas vezes eram escritas de próprio punho pelo Ministro Relator, sendo que os demais Ministros comumente se limitavam a acompanhá-lo ou, se divergiam, a produzir votos mais elaborados, eventualmente com alguma doutrina, que seriam juntados ao acórdão[1].

O acórdão, com sua estrutura e formatação peculiares e típicas de um modelo de decisão seriatim, parece assim conter um déficit de racionalidade em relação aos modelos per curiam quanto à forma de apresentação pública do resultado da deliberação do tribunal. Na medida em que não enseja a formação de um texto único que, como nos modelos per curiam, contenha um corpo unitário com a ratio decidendi da decisão do órgão colegiado considerado em sua totalidade, o acórdão não oferece um modelo de formatação textual que permita ao tribunal demonstrar de forma clara e racional os fundamentos determinantes de sua decisão.

O modelo seriatim de publicação das decisões pode assim se transformar em um obstáculo ao pleno desenvolvimento de uma cultura de precedentes do Supremo Tribunal. A tendência mais comum é que, ante a dificuldade de formação e de delimitação de uma única ratio decidendi, os diversos fundamentos contidos nos votos individuais de cada magistrado passem a servir como referências distintas e difusas para as futuras decisões e, inclusive, para as críticas e estudos acadêmicos especializados sobre os trabalhos da Corte[2].

O resultado mais comum dessa tendência pode ser o desenvolvimento de uma cultura individualista de precedentes, em que os magistrados acabam seguindo apenas seus próprios argumentos, isto é, os posicionamentos pessoais estabelecidos em votos individuais, de modo que também as técnicas do distinguishing e do overruling são aplicadas de forma individual, quando um determinado Ministro resolve distinguir ou revisar/superar suas posições pessoais fixadas em decisões anteriores (um overruling pessoal).

Ademais, a dificuldade de identificação dos fundamentos determinantes das decisões gera problemas para o julgamento das reclamações, que são as ações constitucionais que podem ser ajuizadas na Corte com a finalidade de impugnar atos e decisões de instâncias judiciais e administrativas que violem a jurisprudência do STF. Analisar e averiguar se os atos e decisões atacados numa reclamação de fato contrariam determinada decisão do tribunal pode se tornar uma tarefa bastante complicada ante a dificuldade de se precisar o que realmente consta como ratio decidendi nessa decisão[3].

É preciso adotar algum novo formato de texto que possa transmitir com maior precisão e clareza a decisão e seus fundamentos determinantes. Não por outro motivo, muitos hoje propugnam por um modelo que atribua à ementa essa função de traduzir a posição unitária do colegiado. É cada vez mais reconhecido que o acórdão, que representa um peculiar modelo de decisão seriatim, não contém uma estrutura e uma formatação que permitam ao Tribunal falar com uma só voz, que possam definir e distinguir de modo mais preciso as posições vencidas da minoria e os argumentos divergentes ou concorrentes e que criem condições para a apresentação de textos mais claros e mais sintéticos.

As reformas são necessárias, mas, deve-se reconhecer, de complexa implementação, em razão dos obstáculos – hoje praticamente intransponíveis – impostos pela grande quantidade de processos e pela própria organização dos trabalhos na Corte, que necessitariam ser primeiro amplamente modificados – com as complicações inerentes à mudança de toda uma prática e uma cultura de trabalho consolidadas – para então se poder pensar em possíveis vias de reforma do formato das decisões.

O reconhecimento quanto à problemática das ementas e à carência de reformas em seu formato textual demonstram uma tendência de necessária aproximação, ainda que mínima, dos modelos per curiam de apresentação pública do resultado da deliberação. No Supremo Tribunal Federal, a manutenção do modelo seriatim ou de texto composto, em virtude das dificuldades práticas de uma ampla e profunda reforma na estrutura do acórdão, tende a ser complementada e assim mitigada com a introdução de um modelo de redação e formatação das ementas, que permita a construção de um texto unitário e sintético, o qual possa representar a decisão do colegiado como uma unidade institucional. Essa é, ao menos, a perspectiva de médio ou curto prazo que se pode hoje vislumbrar na prática. As reformas na estrutura e formatação das ementas são hoje necessárias para a construção de uma cultura de precedentes do Tribunal, o que, como afirmado anteriormente, tem encontrado um sério obstáculo nesse modelo seriatim de apresentação pública das decisões.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] A respeito de algumas características da primeira prática redacional do STF, Aliomar Baleeiro escreveu o seguinte: “No Brasil da primeira década republicana, que não contava com a quinta parte sequer da população de 1972, os Ministros do Supremo Tribunal não tinham a esmagadora carga de trabalho dos últimos anos. (…) Escreviam do próprio punho as decisões com longa série de consideranda logicamente deduzidos. Todos as assinavam e, por vezes, acrescentavam alguns caprichados votos vencidos ou com acréscimos aos argumentos do relator”. BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal. In: Revista Forense, Rio de Janeiro, abril-maio-junho de 1973, p. 7.
[2] Atualmente, não são raros os trabalhos acadêmicos no Brasil (teses de doutorado, dissertações de mestrado etc.) que, com o intuito de estabelecer um pensamento crítico sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em algum tema específico, acabam analisando apenas a posição de um único Ministro, normalmente a do Ministro Relator e/ou do Ministro cujo voto se sagrou vencedor e se sobressaiu entre os demais votos, apesar de muitas vezes estes não representarem o posicionamento do órgão colegiado considerado em sua totalidade.
[3] A questão foi bastante discutida no julgamento da Reclamação n. 9.428, Relator Ministro Cezar Peluso, julgada pelo Plenário em 10 de dezembro de 2009.

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