Terceirização em debate

O problema não é a terceirização mas, sim, a precarização do trabalho

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30 de abril de 2015, 8h32

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O procurador-geral do Trabalho, Luís Antônio Camargo de Melo, diz que não é contra a terceirização. “Sou contra a precarização”.  Ele faz contas: no Brasil hoje, temos 45 milhões de trabalhadores com carteira assinada. Destes 12 milhões são terceirizados: Queremos dar a esses 12 milhões as mesmas condições de trabalho dos 33 milhões? Não. Nós queremos que esses 33 milhões fiquem na mesma situação dos 12 milhões”. Para o procurador-geral do trabalho o que deve ser terceirizado é o serviço e não a gestão da mão de obra.  Uma empresa especializada, com trabalhadores especializados diretamente contratados por ela está muito bem habilitada para prestar serviços e fornecer produtos para uma outra empresa. “Uma fábrica de automóveis não precisa fabricar pneus, mas uma companhia aérea não pode terceirizar os seus pilotos”, diz ele.

A equipe do  Anuário da Justiça do Trabalho e da revista eletrônica Consultor Jurídico, conversou com o procurador-geral do trabalho sobre terceirização. Veja o que ele disse:

 

ConJur — Qual a sua opinião sobre o projeto de lei de terceirização que tramita no Congresso Nacional?
Luís Antônio Camargo de Melo —
É uma questão relevante. Hoje, o país tem 45 milhões de trabalhadores com registro formal. Desses, cerca de 12 milhões são terceirizados. E qual é a discussão? Queremos dar a esses 12 milhões as mesmas condições de trabalho que os outros 33 milhões já têm? É isso? Não, não é. Nós queremos que esses 33 milhões cheguem à condição dos 12 milhões. Ou seja, estamos regredindo. Não estamos avançando. Em vez de dar a esses trabalhadores melhores condições de trabalho, com registro, organização em sindicatos, treinamentos, qualificação, melhores salários, melhores condições de vida, estamos retirando tudo isso dos outros 33 milhões. É o estabelecimento de uma linha de precarização, de subcontratação. As estatísticas mostram que o maior número de acidentes, de adoecimento e de mortes está entre os terceirizados.

ConJur — A rotatividade também é mais alta.
Luís Camargo —
Sim, bem lembrado. É isso que nós estamos querendo? Não consigo compreender como a sociedade não percebe isso. Que o empresário defenda isso, ok, claro. A grande discussão é a gestão da mão de obra. O empresário quer se livrar da gestão de mão de obra. Veja bem, o terceirizado ganha 27% menos. É óbvio que nós queremos cortar custos e se livrar da gestão de mão de obra.

ConJur — E qual é a solução? A terceirização não vai acabar.
Luís Camargo —
O Ministério Público do Trabalho não é contra a terceirização. Somos contra a precarização. Não vejo problema quando há terceirização do serviço, mas não da gestão da mão de obra. Quando a empresa precisa de uma atividade especializada, não há problema nenhum.

ConJur — É o que fez, por exemplo, a indústria automobilística, que não fabrica mais as peças.
Luís Camargo —
Por que é que eu tenho que obrigar a Ford a fabricar pneu? Do meu ponto de vista, não é preciso obrigar a Ford a fabricar pneu. Ela pode comprar de quem é especialista em fabricar pneu. Eles vão fazer cada vez melhores pneus, pelo menos em tese. Mas não se pode permitir que um hospital não tenha nenhum médico como seu empregado, isso é controle da prestação de serviços para a sociedade. Companhias aéreas não podem ter pilotos terceirizados. Como é que será estabelecido um controle de qualidade do serviço prestado? Já temos tantos problemas… Estão querendo liberar a terceirização em todas as áreas. É contra isso que o Ministério Público do Trabalho se insurge.

ConJur — Então, se o MPT fosse autor do projeto, a terceirização ficaria restrita aos serviços especializados?
Luís Camargo —
A terceirização de serviços especializados não é um problema. As empresas têm cadeira diretiva, metas, controle de qualidade, investem no trabalhador. O processo de terceirização inverte tudo isso: corta custos e transfere a gestão da mão de obra para quem não tem responsabilidade com o projeto principal da empresa. Eu não posso ser a favor disso.

ConJur — Agora, o senhor considera alto o custo de um trabalhador registrado, com todos os direitos? Os empresários reclamam do custo do trabalho e defendem que o projeto de terceirização permitirá a criação de novas vagas.
Luís Camargo —
Engraçado, porque brigar com o leão é mais complicado, não é? Enfrentar o fisco é mais complicado. O trabalhador é a parte mais frágil dessa corrente. Então, enfrentar o sistema fiscal e tributário do país é muito mais difícil. Você vai enfrentar toda uma legislação que define impostos. Se extrairmos a carga fiscal e tributária do valor de um automóvel, ficará acessível para todo mundo. O maior empecilho ao empreendedorismo no Brasil hoje atende pelo nome de carga fiscal e tributária. Não é o direito social. Mas o direito social é descartável, o trabalhador é vulnerável, o trabalhador é desprotegido. Então, é mais fácil, é mais rápido, é mais eficaz, do ponto de vista do empresário que tem o objetivo do lucro, o lucro desmedido, sacrificar o trabalhador do que enfrentar uma mudança do sistema fiscal e tributário. A carga fiscal e tributária é alta.

ConJur — Os sindicatos deveriam questionar o Congresso em relação a isso?
Luís Camargo —
O empresário deveria. Mas, veja, hoje temos um Congresso Nacional com um perfil muito mais conservador do que na legislatura passada. Aumentou enormemente o número de novos parlamentares representantes das classes empresariais: agricultura, indústria e comércio. Aumentou a chamada bancada da segurança. Aumentou a chamada bancada evangélica. E diminuiu a bancada que defende o direito social, as políticas públicas de benefício da sociedade, especialmente da camada mais pobre da sociedade. É mais fácil fazer tramitar com esse ambiente um projeto que libera a terceirização em todos os níveis do que você enfrentar o Poder Executivo na discussão de uma reforma tributária, por exemplo. Por que não anda a reforma tributária e por que é que não anda a reforma política? Porque aí o jogo de interesses é muito maior. Então, avança a pauta para retirar direitos sociais. Essa avança com facilidade.

ConJur — Quais seriam os pontos essenciais para regulamentar a terceirização? Manter como a jurisprudência definiu [A Súmula 331 do TST proíbe terceirização na atividade-fim]?
Luís Camargo —
Não, não creio. Até este momento da entrevista, não usei as expressões atividade-meio e atividade-fim, de propósito. Não gosto dessas expressões e não creio que atendam às necessidades de trabalhadores, empresários e do poder público. Você usou há pouco o exemplo das montadoras de veículos. Em uma análise, digamos assim, obtusa, nós condenaríamos o processo de produção nas montadoras. Se levarmos em conta que o pneu é absolutamente fundamental para que o carro funcione, rode nas ruas, você diz: o pneu é atividade-fim. Então, o pneu tem que ser produzido pela Ford. Sem amortecedor, o carro não roda. A Ford não fabrica amortecedor. Percebe? Então, tenho que obrigar a Ford a fabricar o pneu e a fabricar o amortecedor porque isso é fundamental para o veículo funcionar. Mas nós já avançamos nesse aspecto. Trata-se de uma atividade especializada. A montadora mantém o que nós poderíamos chamar de espinha dorsal do produto que ela produz. A responsabilidade é dela, o nome é o dela, a marca é a dela, o motor é dela, não é? Quando o produto é entregue ao consumidor, o que ele vê é a Ford. Ele não vê a Cofap, nem a Pirelli. Percebe? Nós já avançamos para observar que algumas atividades podem ser terceirizadas, porque são atividades produzidas por especialistas. Agora, o comando, a cadeia central será sempre daquela empresa. Então, não uso essa expressão atividade-meio, atividade-fim, porque isso leva a um entendimento de que aquelas atividades são desenvolvidas por pessoas de menos importância. E eu não consigo admitir um trabalhador que seja de menos importância. Todos os trabalhadores são importantes. Uma empresa pode contratar outra para prestar serviços, mas não para fornecer mão de obra.

ConJur — Quais aspectos do projeto de lei podem gerar mais danos?
Luís Camargo —
Eu não tenho esse poder de previsão, mas… Observe os acidentes que ocorrem na Petrobras. Praticamente todos envolvem terceirizados. Uma empresa que tem altíssimo índice de terceirizações, de acidentes, de mortes, de adoecimentos. Há uma deterioração do Estado. Vejo também uma ameaça aos concursos públicos. Temos inúmeras ações Brasil afora obrigando a respeitar a Constituição, que determina a realização de concurso. Numa situação como essa, abre-se a porteira de uma forma incontrolável nas empresas públicas de sociedade de economia mista: Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal. Nós tivemos um enfrentamento histórico com o Banco do Brasil e com a Caixa pela utilização de estagiários. Houve um momento que tinham um funcionário e 50 estagiários. Como é que você pode funcionar com uma situação como essa? Isso foi sendo vencido e superado com muito esforço. Esse esforço todo vai por água abaixo.

ConJur — É um retrocesso, na sua opinião?
Luís Camargo —
É o começo do fim do Direito do Trabalho, de todo esse sistema de proteção que vem sendo montado há dois séculos e meio, um sistema em evolução. Esse sistema sustenta o nosso mundo hoje. Garante que o trabalhador não seja explorado, precarizado, humilhado, que tenha um trabalho decente, um trabalho digno. Se é difícil conseguir isso com todo esse sistema que está em evolução, que está sendo construído, imagine se o desconstruirmos. É o que faz o Projeto de Lei 4.330. Vai abolir, diluir, atomizar a relação empregado e empregador. Ninguém vai mais poder controlar isso, nem o sindicato. Porque os trabalhadores não terão nem representação nem proteção de seus sindicatos. Haverá uma pulverização de sindicatos em que o terceirizados não terão proteção.

ConJur — A solução seria essa, então, terceiriza-se a atividade, não a mão de obra?
Luís Camargo —
Sim, você pode contratar uma empresa que vai fornecer um serviço. O exemplo dos vigilantes é bem razoável. Não vejo necessidade de todas as empresas terem vigilantes como empregados. O vigilante tem uma legislação própria e recebe treinamento. As empresas de vigilantes são supervisionadas pela Polícia Federal. Ou seja, há todo um sistema de funcionamento que não interessa à empresa. Imagina uma escola tendo que ter vigilante empregado, tendo de ser fiscalizada pela Polícia Federal. Quando terceiriza, a escola vai trabalhar para cumprir a sua função primordial que é ensinar. Não sou contra a terceirização. Sou absolutamente contra a precarização.

ConJur — Qual é o papel dos sindicatos hoje?
Luís Camargo —
Sou um crítico da organização sindical. Sou favorável à ratificação da Convenção 87 da OIT, que trata da liberdade sindical. Uma vez ratificada a convenção, trabalhadores e empresários vão se organizar do jeito que melhor entenderem. Isso implica em um compromisso muito maior daqueles que se propõem a ser dirigentes sindicais com os trabalhadores. Hoje, a organização sindical é frágil. O trabalhador não acredita na entidade dele, não é sócio da entidade dele. Ele só vê a entidade sindical no momento em que ele é descontado da contribuição. É assim que o trabalhador identifica o sindicato. Não há compromisso do dirigente sindical com a sua base porque o sistema é definido pelo Estado. Você não pode fugir dele. Não se pode, por exemplo, organizar um sindicato por empresa. E alguém vai dizer: “Ah, mas isso é um absurdo! Isso vai fragilizar!” O Brasil tem hoje mais de 16 mil sindicatos. Mais de 11 mil são de trabalhadores. Destes, cerca de 3 mil nunca fizeram uma negociação coletiva, que é a mais importante função do sindicato. Não temos um sistema definido pelos atores sociais. É escolhido pelo poder público. E isso, claro, traz grandes dificuldades.

ConJur — No caso da terceirização, não se vê qual é a contribuição dos sindicatos para um debate como esse…
Luís Camargo —
As centrais sindicais estão divididas. Eu vi um dirigente sindical na televisão esses dias. Eu fiquei assustado porque ele estava…

ConJur — Parecia patronal?
Luís Camargo —
Pronto, você disse tudo. Era um dirigente de uma central sindical e parecia que ele estava enxergando o funcionamento da empresa dele, tamanha a eloquência na defesa do Projeto de Lei 4.330. Li no jornal outro dia uma declaração do presidente da Câmara dos Deputados [Eduardo Cunha]: “Não, eles estão interessados só na questão da contribuição sindical. Se resolver a contribuição sindical, para eles está tudo bom”. Meu deus do céu, eu ficaria envergonhado se eu fosse um dirigente sindical e o presidente da Câmara dos Deputados dissesse que meu único interesse é na contribuição sindical.

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