Crimes graves

Somente mudança em lei pode prever prisão após condenação em primeira instância

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30 de abril de 2015, 6h40

Sergio Moro e Antonio César Bochenek, jovens e honrados juízes federais, preocupados com a ineficácia do sistema de justiça criminal, lançaram na mídia corajoso debate sobre o processo penal ("não adianta ter boas leis penais se a sua aplicação é deficiente, morosa e errática"), defendendo o aprisionamento do acusado logo após julgamento de primeira instância "para crimes graves em concreto, como grandes desvios de dinheiro público", com possibilidade da segunda instância suspender a decisão de prisão, quando houver plausibilidade no recurso interposto[i].

O artigo foi objeto de muitas críticas. Era de se esperar, pois a tese enfrenta entendimentos doutrinários sedimentados, fundados em dispositivo constitucional, jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e tratados internacionais firmados pelo Brasil. De qualquer forma, a corajosa abertura, principalmente por tocar em um problema nacional gravíssimo (corrupção, ineficácia do sistema criminal e impunidade seletiva), não pode ser simplesmente sepultada com imposições de um processo penal totalitário, fim em si mesmo, desfocado do escopo de pacificação e justiça.

Além do grande número de aprisionados e da falta de estrutura adequada nos sistemas de encarceramento, tanto criticados, há um defeito histórico maior na justiça criminal brasileira, uma distorção desarrazoada que solapa a credibilidade do Estado, enfraquece o ânimo social e serve de parâmetro negativo para a moralidade média do povo simples: os crimes graves realizados por poderosos, contra o patrimônio público, agravando as necessidades dos mais pobres, dependentes das  ações estatais, têm ficado impunes, com poucas exceções.

Está escrito na Constituição que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória". Não está escrito na Constituição que ninguém será preso até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (afirmação com consequência imediata direta e de difícil aprovação em uma assembleia constituinte). O texto constitucional expressa uma obviedade (não tendo ocorrido todos os julgamentos para chegar a condição final de culpado, por óbvio, ainda não se tem culpado), daquelas próprias para ultrapassar conflitos ideológicos inconciliáveis. Mesmo assim, ganhou respeitáveis interpretações, fundando o princípio da inocência (na verdade, não-culpabilidade), amplo e irrestrito, impeditivo de prisão por condenação antes do trânsito em julgado da sentença, que ocorre na última instância.

A presunção da inocência tem permitido que réus confessos poderosos, aqueles que têm mais condições de consciência do ilícito e maior obrigação de conduta proba, tendo praticados crimes gravíssimos contra o patrimônio público, usurpando receitas destinadas aos fins sociais, ou mesmo crimes hediondos, contando com poderosa e eficiente defesa (muitas vezes somente de ordem processual), fiquem aguardando décadas até o julgamento definitivo pelos tribunais superiores. Quem ganha com esse estado de coisa, processos vintenários, com condenação em crimes gravíssimos, mas sem prisão, aguardando trânsito em julgado da última instância? É razoável manter uma situação como essa sem qualquer atitude de mudança?

O sistema processual penal brasileiro permite até quatro instâncias de julgamento (primeira instância, tribunal regional, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal), recheadas com inúmeros recursos processuais pontuais e ilimitados Habeas Corpus intermediários. Esse amplo espaço de quatro julgamentos, conjugado com o festejado princípio da inocência amplo e irrestrito, tem permitido processos penais que duram décadas, com conclusão fora do seu tempo histórico, já pouco significando em termos de  pacificação e justiça. A efetiva prisão, quando ocorre, reduzida por benefícios de idade e prescrição, perde o mais importante de seu objetivo. A renovadora PEC 15/2011, patrocinada pelo ex-ministro Peluso, que tenta por fim a esse exagero de instâncias de julgamentos, lamentavelmente, aguarda em compasso de espera.

Agentes da área de persecução acabam desacreditando na justiça criminal. Estudantes de direito duvidando do direito como melhor solução. Juízes, promotores e procuradores beiram à frustração vendo trabalho pesado de investigação, instrução e julgamento da primeira instância ser perdido no tempo das (exageradas) três instâncias de julgamento posteriores, recursos e prescrições em números escandalosos, enquanto o réu e defesa exploram o irrestrito princípio da inocência. Não é defensável uma visão persecutória, justicialista, sem as garantias do processo penal seguro, entretanto, a pacificação social substantiva e o ideal de justiça devem ser buscados, com respeito à lei, aos acusados e sem intenções espetaculosas.

Alega-se que a prisão após a primeira sentença condenatória, mesmo em caso de crimes graves contra o patrimônio público, seria uma execrável exceção ao princípio da inocência, até relacionada com as exceções totalitárias do estado policial e da ditadura militar. A generalização não é caminho sempre correto e, nesse caso, a comparação não é justa. Exceções são necessidades da vida, existentes em todas atividades humanas e não podem ser afastadas preconceituosamente sem exame da necessidade, razoabilidade e justiça.

O processo penal e civil contém exceções procedimentais mais gravosas. A própria Constituição agasalha a exceção da prisão civil por obrigação alimentícia[ii]. As prisões cautelar, preventiva e temporária são exceções ao próprio princípio da inocência. O regime de prisão diferenciado previsto na lei de execução penal é exceção. O Parlamento acolhe exceções na produção de normas legislativas (medidas provisórias). Nações igualmente ou mais democráticas (EUA, por exemplo) adotam prisão imediata após o primeiro julgamento em casos determinados.  A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e Pacto de São José da Costa Rica não asseguram, de forma irrestrita, o direito de sempre recorrer em liberdade[iii]. No famoso processo do mensalão houve apenas um julgamento, no Supremo, com prisão imediata dos condenados, uma exceção histórica frente ao plano constitucional de até quatro julgamentos.

O idealismo romântico do princípio da inocência irrestrito, impeditivo da prisão antes do trânsito em julgado da última instância, deve ser flexibilizado, frente a realidade e necessidade de pacificação social e justiça. A possibilidade de um acusado ser preso até o reconhecimento da inocência em instância superior deve ser combatida com processamento rápido do recurso, prazo certo e curto para julgamento, possibilidade de suspensão da prisão liminarmente pelo tribunal e indenização — como já ocorre nos casos de revisão criminal absolutórias de condenados definitivamente e encarcerados.

A exceção da prisão após o primeiro julgamento, em poucos casos selecionados de crimes graves contra o patrimônio público — mas simbólicos para incrementar confiança no sistema de justiça criminal — permite eficiente controle por legislação especial rigorosa, procedimento urgente, prazo para julgamento, defesa atuante e fiscalização judiciosa do Ministério Público. É um risco, mínimo, mas necessário para construção e fortalecimento de uma sociedade mais justa e confiante na justiça. A eleição de prioridades é técnica aceita na administração em geral e também na administração da justiça, como ocorre no Supremo na escolha de casos de repercussão nacional para decisão prioritária.

O condenado em primeira instância, mesmo se considerando que ainda não é culpado definitivo, porque tem a possibilidade de ser absolvido até a última instância, é condenado judicialmente e isso tem grande relevância, especialmente nos casos dos crimes gravíssimos. Essas considerações justificam um grande debate e apoio ao movimento de prisão após a primeira sentença condenatória[iv], para crimes graves contra o patrimônio público, contra a ordem pública, ou mesmo hediondos, que impactam a credibilidade social no sistema de justiça e simbolizam a impunidade dos poderosos.

É evidente que a mudança deve seguir os caminhos democrático, com os instrumentos normativos adequados (emenda constitucional e lei) e com garantias para os condenados presos, entre as quais se destacam:  a) regime procedimental especial, prioritário e urgente, para julgamento dos recursos nas instâncias superiores;  b) possibilidade da instância recursal suspender liminar e imediatamente a prisão, se reconhecer a plausibilidade do recurso;  c) prazo certo para a instância recursal fazer o julgamento[v]; e d) previsão do direito de indenização nos casos em que houve prisão e o acusado for absolvido no mérito.

Por fim, ainda nas quadras da eficiência e eficácia do sistema de justiça criminal, parece estar madura a oportunidade de limitar o sistema de julgamento criminal a três instâncias (local, tribunal regional e STJ), outorgando competência recursal plena (constitucional) e definitiva ao STJ. A possibilidade de até quatro julgamentos (local, tribunal regional, STJ e Supremo), com ampla gama de recursos, como ocorre, é altamente burocrática e exagerada, destoando dos sistemas de justiça criminal de países de tradição democrática. O pesquisador Oscar Vilhena ensina que o Brasil é "totalmente fora de padrão" nesse aspecto, acompanhado apenas pela Índia e México[vi]. Será necessário mais de três julgamentos (com vários recursos e Habeas Corpus intermediários), por juízos distintos e independentes, para se chegar à justiça?

O STF, com apenas 11 ministros, além da enorme tarefa de corte constitucional, carrega também a obrigação de quarta corte recursal (extraordinária), gerando trabalho invencível e emperrando o fluxo de decisões importantes e necessárias no mundo moderno, colocando o Brasil na rabeira da estabilização e eficiência judicial. O Relatório de Atividades do STF de 2014 registra que a corte suprema fechou o ano com um estoque de 55 mil processos, dos quais 40 mil são processos recursais e 15 mil  são processos próprios (competência originária) do Supremo. Mesmo com os filtros processuais severos, a competência recursal, como se vê, inviabiliza a fundamental e prioritária função do Supremo: o controle concentrado da constitucionalidade. A quem interessa esse monumental congestionamento de processos?

"Justiça tardia é injustiça institucionalizada" (Rui Barbosa). Muda Brasil!


[i] Posteriormente, após o original desse artigo, considerando críticas, Bochenek, Presidente da AJUFE, anunciou que a entidade, buscando consenso para aprovação do projeto, passou a defender a prisão após decisão em segundo grau. De qualquer forma, a posição continua sendo inovadora frente ao atual modelo de prisão após trânsito em julgado da última decisão, que pode chegar a quatro instância e muitos anos. (http://www.conjur.com.br/2015-abr-24/ajufe-recua-agora-defende-prisao-decisao-instancia).

[ii]LXVII- não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”(art. 5º CF);

[iii] O ministro Celos de Mello do STF explica essa relatividade:

 “Cabe ressaltar, neste ponto, que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos também não assegura, de modo irrestrito, ao condenado, o direito de (sempre) recorrer em liberdade, pois o Pacto de São José da Costa Rica, em tema de proteção ao “status libertatis” do réu, estabelece, em seu Artigo 7º, nº 2, que “Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas”, admitindo, desse modo, a possibilidade de cada sistema jurídico nacional instituir – como o faz o ordenamento estatal brasileiro – os casos em que se legitimará ou não, a privação cautelar da liberdade de locomoção física do réu ou do condenado.

Veja-se, portanto, que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao remeter, ao plano do direito positivo interno, a definição normativa das situações legitimadoras de prisão, reconhece que o tratamento dessa matéria deve efetivar-se de acordo com o ordenamento de cada Estado nacional, cuja Constituição e leis qualificam-se, nesse contexto, como estatutos de regência dos pressupostos de admissibilidade de privação da liberdade de locomoção física do cidadão, inclusive das medidas cautelares de constrição de seu "jus libertatis", de tal modo que, em última análise, o exame da legitimidade jurídica da prisão processual do indiciado, do réu ou do sentenciado referir-se-á, invariavelmente, à análise das próprias prescrições fundadas na legislação nacional, como sucede, p. ex., com a necessária e concreta verificação, em cada caso ocorrente, das hipóteses previstas no art. 312 do CPP, mesmo que se trate de prisão cautelar motivada por condenação penal meramente recorrível."

 (http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo454.htm#transcricao1), sem destaque.

[iv] Ou, pelo menos, após a decisão de segunda instância, considerando o recuo pró-consenso da AJUFE, mencionado na primeira nota acima.

[v] O julgamento na instância recursal parece ser possível de imposição de prazo certo, pois constitui-se basicamente em confronto de votos, uma vez que a persecução, instrução e prova foi feita na primeira instância.

[vi] Conforme pesquisador Oscar Vilhena, só México e Índia têm três instâncias de recursos, além do julgamento na primeira instância. (www1.folha.uol.com.br/…/1620879-juizes-agora-defendem-prisao-apos-de)

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