Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo italiano (Parte 11)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

22 de abril de 2015, 16h06

Spacca
Introdução
Na última coluna sobre o ensino jurídico na Itália, analisaremos a situação estrutural dos cursos de Direito e seus currículos, mas começaremos com uma seção sobre o chamado Processo de Bolonha, que reformulou profundamente o ensino superior na Europa.

Bolonha, vergonha!
Em muitos países europeus, tornou-se comum ouvir de autoridades educacionais e professores universitários a expressão “Bolonha, vergonha!”, que, em português, é bem mais sonora pelo efeito da aliteração. Trata-se de uma reação crítica aos efeitos do Processo de Bolonha, a reforma do ensino superior na União Europeia que teve seu marco na chamada Declaração de Bolonha, firmada em 19 de junho de 1999, com a participação de ministros da Educação (ou equivalentes) de  29 estados da Europa.

Para além do conteúdo puramente programático e mesmo se considerando que a Declaração não possui natureza de um tratado europeu, esse documento alcançou enorme eficácia no espaço da União e terminou por ser implementado na maior parte dos estados signatários, com maior ou menor intensidade. Ressalvam-se a Alemanha e o Reino Unido, que se conservaram quase imunes a vários aspectos da Declaração de Bolonha.

Em termos bem sintéticos, a Declaração de Bolonha[1] apresenta o seguinte conteúdo, considerado o que tem maior interesse para o exame dos cursos jurídicos:

a) O documento prevê a criação de um sistema comum de graus acadêmicos, com objetivo de facilitar a equivalência de títulos no espaço europeu, que tem por base o conceito de ECTS, sigla em inglês para European Credit Transfer and Accumulation System (Sistema Europeu de Acumulação e Transferência de Créditos).

b) A educação superior dividir-se-ia em 3 ciclos: a) o primeiro com duração de 6 a 8 semestres; b) o segundo com duração de 3 a 4 semestres, com possibilidade excepcional de se estender por 2 semestres apenas, que corresponderia a um “mestrado profissional”; c) o terceiro, que equivaleria a um doutorado ou diploma equivalente conforme a denominação em outros países.

Na prática, Bolonha permitiu aos estados europeus a redução do tempo mínimo de uma graduação para 3 anos e a transformação do antigo quarto ano de graduação em uma espécie de “mestrado profissional”, cuja equivalência, no Brasil, seria mais próxima ao conceito de especialização (pós-graduação em sentido lato). Essas mudanças, na prática, reduziram o tempo de permanência do aluno no curso de bacharelado, o que implicou uma diminuição dos gastos com educação superior.[2]

Posteriormente, houve diversas outras declarações complementares a Bolonha, como as firmadas em Berlim, Praga, Bergen e Londres, que visaram à ampliação das reformas, ao exemplo da melhoria do sistema de acumulação e transferência de créditos (a contabilização por  ECTS’s) ou da busca por padrões comuns de qualidade do ensino. Os efeitos da Declaração de 1999, como já demarcado por alguns, também se sentem na “perda de protagonismo dos estados nacionais” no processo educacional, a ponto de se “falar de uma espécie de ‘desnacionalização’ da educação superior ou, de outro ponto de vista, de uma decisiva e definitiva ‘europeização’ das universidades e outras escolas superiores, optando por políticas de liberalização”.[3]   

Esse processo, que ainda não terminou, avança por diversas universidades europeias e, de um modo geral, não afetou os grandes centros (Alemanha, Reino Unido e França), mas permitiu uma maior flexibilização em estados menos centrais da União, o que é visto com enormes resistências. E tudo teve início na sede da que é considerada uma das mais antigas universidades europeias, a velha Università di Bologna.

As universidades italianas
Se o marco da “nova universidade” é a Declaração de Bolonha, convém iniciar a análise da estrutura dos cursos jurídicos italianos.

A Itália, diferentemente de outros países já analisados, como a Alemanha e Portugal, possui um conjunto de cursos jurídicos privados, ao lado dos tradicionais centros mantidos pelo Estado. Há, por conseguinte, um espaço maior para as faculdades particulares, algumas delas com relativo prestígio.

Em Milão, tem-se a Università Bocconi, fundada em 1902, com um curso de Economia. O nome da instituição é uma homenagem ao filho de seu fundador Ferdinando Bocconi, que veio a morrer em combate na Primeira Guerra Ítalo-Abissínia. De entre seus alunos mais notáveis estão o ex-primeiro-ministro Mario Monti, um respeitado economista nos círculos internacionais. O curso de Direito da Universidade Bocconi foi instalado em 2006 e é voltado para uma formação interdisciplinar com foco em Economia e Negócios.

A Libera Università Maria SS. Assunta – LUMSA é outra referência no ensino privado italiano. Fundada em 1939, na cidade de Roma, tem hoje 8 mil alunos e é ligada ao catolicismo desde sua origem. Seu curso de Direito funciona em Roma e Palermo.

No entanto, as instituições públicas ainda são as melhores e apresentam maior capilaridade do que suas congêneres privadas. Em termos comparativos com a realidade brasileira, não deixa de causar certa estranheza essa assimetria, dada a preeminência das universidades particulares no Brasil. Esse é, porém, o padrão europeu e suas raízes estão, como salientado em coluna anterior, no modelo continental de amplo acesso ao ensino superior e seu caráter de direito fundamental, além, é claro, da ausência de centralidade universal do Direito na sociedade europeia contemporânea. Com isso, há uma distribuição mais equitativa de “vocações” para outros cursos.

Tenho muita desconfiança dos rankings universitários, seja porque sua estrutura leva em conta fatores muitas vezes insusceptíveis de comparação por causa das normas regulatórias de cada país, seja pela falta de atenção às peculiaridades de cada área. Veja-se, por exemplo, um ranking que compare uma faculdade de Direito norte-americana (cujos alunos são pós-graduandos e não graduandos, um caso único no mundo) com uma equivalente europeia, cujos estudantes são realmente graduandos. Como se comparar algo tão diferente?

Feita essa ressalva, apresento aos leitores os resultados da classificação 2013-2014 da fundação italiana Censis, que tem o mérito de distinguir as universidades em grupos (mega, grandes, médias e pequenas), conforme o número de alunos matriculados (mais de 40 mil; entre 20 e 40 mil; entre 10 e 20 mil e até 10 mil estudantes, respectivamente). O levantamento leva em conta os serviços (alimentação e alojamento para os alunos), a oferta de bolsas, a estrutura física (salas de aula, bibliotecas, laboratórios), a qualidade do portal da instituição na web e o nível de internacionalização (matrículas de estudantes estrangeiros e alunos intercambistas, além de outros fatores. Segundo o Censis, as melhores universidades italianas são, em ordem decrescente[4]:

a)  Mega-universidades: Bolonha, Pádua, Pisa, Florença, Turim, Roma-Sapienza, Palermo, Milão, Bari, Catânia e Nápoles.

b) Grandes universidades: Pavia, Cosenza, Parma, Cagliari, Gênova, Perugia, Verona, Roma-Tor Vergata, Milão-Bicocca, Salerno, Roma-3, Messina, Chieti, Pescara, L’Aquila e Caserta.

c) Universidades médias: Siena, Trieste, Sassari, Trento, Módena, Reggio, Macerata, Udine, Marche, Brescia, Salento, Urbino, Ferrara, Veneza, Foscari, Bérgamo, Cassino, Forma e Nápoles.

d) Universidades pequenas: Provador, Teramo, Tuscia, Basilicata, Piemonte, Sannio, Insubria, Campobasso, Catanzaro, Reggio Calabria e Nápoles Or.

A questão curricular
Um ponto que sempre desperta interesse nos leitores é a questão da matriz curricular nas faculdades de Direito. Na Itália, no que não é diferente da Alemanha e de Portugal, as instituições possuem ampla liberdade para compor suas matrizes. Como o primeiro ciclo tem duração de 3 anos, um dos efeitos da Declaração de Bolonha, há bem menos tempo para se ministrar o conteúdo do que nas congêneres brasileiras. Conforme o Decreto no 270, de 22.10.2004, em seu art.11, a universidade tem competência para elaborar as normas sobre a estrutura didática, de entre essas as relativas às disciplinas a serem incluídas nas matrizes curriculares de cada unidade.     

O curso de graduação deve atingir um total de 180 créditos, sendo que cada crédito corresponde a 25 horas de atividades letivas. O crédito italiano equivale a um ECTS, segundo a nomenclatura da Declaração de Bolonha. No entanto, só é possível cursar o doutorado se, além do primeiro ciclo, o aluno comprovar que concluiu o segundo ciclo, que corresponde a um “mestrado profissional”, equivalente, como já dito, a uma especialização brasileira.

Como há enorme autonomia didático-pedagógica em cada universidade, não é possível cuidar de diretrizes curriculares nacionais, como existe no Brasil. Em razão disso, deve-se observar o modelo de algumas instituições mais representativas.

Fique-se, por exemplo, com a Universidade de Roma 2-Tor Vergata, que é muito frequentada por estudantes brasileiros em cursos de pós-graduação. No primeiro ciclo (graduação em 3 anos), há 22 disciplinas obrigatórias, a saber: Direito Administrativo 1 e 2, Direito Civil 1, Direito Comercial, Direito Constitucional, Direito do Trabalho, Direito da União Europeia, Direito Eclesiástico, Direito Internacional, Direito Penal 1 e 2, Direito Privado Comparado, Direito Processual Civil, Direito Romano 1, Direito Tributário, Economia Política, Filosofia do Direito 1, Instituições de Direito Privado, Instituições de Direito Público, Instituições de Direito Romano, Direito Penal e História do Direito Italiano 1. O aluno pode cursar até 5 disciplinas optativas, de entre as quais Direito Agrário, Direito Bancário, Direito Comercial Europeu, História do Direito Romano, Direito Romano 2, Direito Industrial, Direito de Família e outras matérias. Não há disciplinas não jurídicas entre as optativas, salvo Ciências das Finanças, que é uma matéria tradicional em qualquer curso jurídico. O conhecimento de língua estrangeira é obrigatório e deve ser comprovado por meio de exames próprios, que contam como créditos.

Cada ano é composto por um número variável de disciplinas. No primeiro ano, têm-se 7 disciplinas: Economia Política, Filosofia do Direito 1, Instituições de Direito Privado, Instituições de Direito Público, Instituições de Direito Romano, Língua estrangeira e Linguagem jurídica estrangeira e habilidades em informática. Note-se que, na prática, há 2 semestres dedicados a cada uma dessas matérias. Não há grande possibilidade de escolha pelo aluno dos créditos não obrigatórios.

Em termos gerais, nota-se uma preponderância do Direito Privado, que termina por ser lecionado no primeiro ano (Instituições de Direito Privado e Instituições de Direito Romano), no segundo ano (Direito Civil 1) e no terceiro ano (Direito Comercial), além das cadeiras de Direito Privado Comparado e Direito Romano no quarto e quinto ano, na sequência do chamado segundo ciclo. Essa preponderância também se nota entre as optativas.

Conclusão
O ensino jurídico na Itália apresenta diversas convergências com a Alemanha e Portugal, especialmente no formato das aulas, na estrutura das matérias e na representação social do docente. Na Itália, a construção da unidade nacional passou pela captura dos professores universitários pelo projeto da monarquia saboiana e, nos dois períodos pós-guerra, houve um realinhamento dos docentes com o fascismo (com muitas honrosas exceções) e com a república.

Os docentes italianos dividem-se entre os que exercem o magistério em regime parcial e em regime de dedicação exclusiva. Há grandes nomes em ambos os grupos. Diferentemente da Alemanha, o ensino privado tem mais espaço e algumas instituições são respeitadas. Os currículos são livremente fixados pelas instituições. No entanto, há uma característica comum: a correlação entre disciplinas obrigatórias e optativas é muito próxima ao que ocorre em Portugal, com uma proporção de 25 para 5. Os cursos são anualizados e há forte estímulo ao conhecimento de línguas estrangeiras. A série de colunas terá continuidade na próxima semana.


[1] A íntegra da Declaração de Bolonha, em português, está disponível aqui: http://www.ond.vlaanderen.be/hogeronderwijs/bologna/links/language/1999_Bologna_Declaration_Portuguese.pdf. Acesso em 21-4-2015.
[2] LIMA, Licínio C.; AZEVEDO, Mário Luiz Neves de; CATANI, Afrânio Mendes. O processo de Bolonha, a avaliação da educação superior e algumas considerações sobre a Universidade Nova. Avaliação (Campinas) [online]. 2008, vol.13, n.1, pp. 7-36. ISSN 1414-4077.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-40772008000100002.
[3] LIMA, Licínio C.; AZEVEDO, Mário Luiz Neves de; CATANI, Afrânio Mendes. Op. cit., loc. cit.
[4] Disponível em: http://www.censis.it/8?shadow_testo=1. Acesso em 21-4-2015.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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