Feito histórico

Novo CPC institucionaliza "indevido processo legal" na jurisdição civil

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18 de abril de 2015, 7h30

O bom número de comentários e críticas aos artigos Código Corporativo (ConJur, 20/12/14) e Defeito Ético (ConJur, 11/02/15), ambos centrados na comparação  dos honorários de sucumbência do CPC em vigor (1973) com o novo CPC, pedem um retorno ao tema, agora enfocando a influência do Estatuto da OAB e novo Código Civil. O texto oferece um singelo resumo dessa passagem. O debate de idéias, com respeito e consciencioso, é caminho indispensável para aprimoramento do sistema judicial e realização da justiça.

É inquestionável que o CPC em vigor adotou o princípio da sucumbência, pelo qual o vencido (sucumbente), além de pagar a condenação principal, deve também pagar ao vencedor todas as despesas do processo, inclusive os honorários advocatícios que o vencedor assumiu em decorrência do processo (art. 20 do CPC atual). A regra está expressamente justificada na Exposição de Motivos do CPC em vigor: "a atuação da lei não deve representar uma diminuição patrimonial para a parte a cujo favor se efetiva". A doutrina clássica é unânime a respeito da validade da regra e da natureza indenizatória da verba[i], bem sustentada nos princípios da reparação integral, devido processo legal substantivo e inatacável bom senso.

O modelo do CPC em vigor é bom e plenamente funcional. O cliente escolhe o advogado e contrata os seus serviços. O advogado estipula os honorários que entende adequado, ficando obrigado a defender e pleitear no processo todos os direitos do cliente, inclusive o ressarcimento dos honorários que estipulou. O vencedor do processo tem direito expresso de ser indenizado do valor gasto com seu advogado, em valor fixado pelo Juiz (para evitar que o vencido fique atrelado ao valor combinado entre o vencedor e seu advogado). O valor fixado pelo Juiz pode ser alterado pelas instâncias superiores. Os honorários contratuais se legitimam na medida em que forem ressarcidos ao vencedor do processo. Em resumo, o modelo do CPC atual garante liberdade de contratação ao advogado e justa proteção legal ao vencedor do processo. No máximo, caberia um aprimoramento, em favor do vencedor, orientando ressarcimento integral em todas as instâncias.

O caminho indicado pelo CPC em vigor não foi seguido. Ganhou costume a transferência dos honorários de sucumbência ao advogado, por contrato, ficando o vencedor sem indenização da despesa maior do processo e o advogado do vencedor com duas fontes de pagamento, o cliente e o vencido. O Estatuto da OAB (Lei 8906/94), oficializando o costume contratual, declarou que os honorários de sucumbência fixados pelo Judiciário pertencem ao advogado (artigos 21, 22, 23 e § 3º do art. 24). Não houve qualquer preocupação no Estatuto da OAB em garantir o automático ressarcimento ao cliente vencedor do processo. O devido processo legal substantivo e o princípio da reparação integral foram desatendidos.

O Estatuto da OAB recebeu algumas injunções do STF (ADIs 1.127-8 e 1.194-4). O art. 21, seu parágrafo único e o § 3º do art. 24, mais aplicáveis aos advogados empregados, foram limitados pelo STF na ADI 1.194-4[ii]. Os artigos 22 e 23, mais aplicáveis aos advogados autônomos, foram salvos do julgamento de inconstitucionalidade por força de preliminar processual interessante: pertinência temática (como se os representados pela confederação autora da ADI não contratassem advogados autônomos).  A ADI 1.194-4 demorou  mais de 12 anos para ser concluída.

Apesar do indicativo claro de inconstitucionalidade, revelados pelos votos dos Ministros Peluso[iii], Marco Aurélio[iv], Gilmar Mendes[v] e Joaquim Barbosa[vi] na mencionada ADI 1.194-4, os artigos 22 e 23 não voltaram para julgamento de constitucionalidade no Supremo. Os jurisdicionados, milhões de cidadãos brasileiros, consumidores do serviço público estatal, tecnicamente dependentes, preteridos processualmente e em prejuízo financeiro, ainda aguardam julgamento do Plenário do Supremo sobre o  mérito da questão.

Dessas normas estatutárias (artigos 22 e 23) resultou jurisprudência infraconstitucional desatenta aos princípios constitucionais da reparação integral, devido processo legal substantivo e  indicativos do STF sobre o tema, simplesmente aplicando as novas regras ordinárias do Estatuto da OAB. Os procuradores não têm interesse em questionar constitucionalmente a mudança que lhes favorece financeiramente. Temas constitucionais não são enfrentados espontaneamente, especialmente esse que é  bastante sensível e com amplo espraiamento financeiro. O Ministério Público, defensor natural dos direitos difusos e do devido processo legal substantivo, com legitimidade para o tema, ainda não tomou iniciativa sobre o assunto.

O novo Código Civil (2002) confirmou que o credor – nessa condição o vencedor do processo – tem direito de receber a dívida principal, atualização monetária, juros e honorários do advogado (arts 389, 395 e 404). Esse hiato legal fez nascer tese de existência de dois honorários de sucumbência, um processual para o advogado e outro indenizatório para o vencedor do processo. O nome honorário processual não revela a natureza da verba, verdadeira taxa corporativa (sem matriz constitucional). Com esses dois honorários de sucumbência, se mantidos, o vencido vai pagar duas vezes. O STJ chegou a reconhecer, em algumas decisões esparsas[vii], o direito de ressarcimento em ação autônoma. Não tem jurisprudência firme sobre o tema. De qualquer forma, o vencedor fica preterido, pois tem que contratar advogado para cobrar despesa de processo anterior, movimentar outro processo judicial, gerando uma circularidade infinita de ações judiciais ou depender de tese no processo original.

Era de se esperar que o novo CPC, lei estruturante do sistema judicial civil, afastasse a institucionalização de interesses corporativos, buscasse a realização da justiça, com atenção e proteção especial aos destinatários dos processos, os jurisdicionados, parte tecnicamente dependente e mais frágil. Ao contrário, o novo CPC preferiu institucionalizar a transformação de verba indenizatória do vencedor do processo (art. 20 do CPC atual) em forte taxa corporativa, cumulativa por instância e incidentes processuais (art. 85 do novo CPC, com 19 parágrafos e incisos), comprometendo o escopo de processo e  Judiciário institucionalmente justos. A mesma taxa corporativa também está sendo arquitetada no processo trabalhista, preterindo o trabalhador reclamante no ressarcimento do valor gasto com seu advogado, costumeiramente a maior despesa do processo.

O novo CPC, apesar de expressar o princípio da reparação integral (§2º do art. 82  -"A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou"), contraditoriamente, logo em seguida, descumpre o princípio, agasalhando defeito técnico: manda ressarcir ao vencedor as despesas menores do processo (indenização de viagem, remuneração do assistente técnico e diária de testemunha – art. 84), mas mantém eloquente silêncio quanto ao ressarcimento da despesa maior, o valor dos honorários pagos ou empenhados pelo vencedor com seu advogado. Vai mais longe. Proibindo a compensação dos honorários de sucumbência (§ 14 do art. 85 – contrário a Súmula 306 do STJ), parece permitir que, em caso de procedência parcial da demanda, vencido e vencedor sejam obrigados a pagar a taxa corporativa para os advogados adversos, além dos honorários contratuais sem ressarcimento.

Com o novo CPC, o Poder Público, quando vencido, passa a pagar pesada taxa de honorários cumulativo; quando vencedor, apesar de manter suas procuradorias, poderá futuramente não mais receber a respectiva verba indenizatória (§ 19 do art. 85), perdendo receita pública. A integridade sistêmica (fundada em um conjunto de normas moralmente coerentes – reparação integral, ressarcimento de despesa e processo justo), valor superior, tão aclamado pelos doutrinadores e expressamente acolhido pelo novo CPC (art. 926), está sendo quebrado por equivocada coerência de nome e forma (Os honorários pertencem ao advogado…), desconsiderando a função e natureza da verba. O novo CPC vai entrar para história como a lei que institucionalizou o "INDEVIDO PROCESSO LEGAL" na jurisdição civil. 

[i] Humberto Theodoro Junior:  "Adotou o Código, assim, o princípio da sucumbência, que consiste em atribuir à parte vencida na causa a responsabilidade por todos os gastos do processo. Assenta-se ele na idéia fundamental de que o processo não deve redundar em prejuízo da parte que tenha razão". (Curso de Direito Processual Civil, 41ª Edição, Volume I, Editora Forense, 2004, p.85, sem destaque).

"O projeto adota o princípio do sucumbimento, pelo qual o vencido responde por custas e honorários advocatícios em benefício do vencedor. O fundamento desta condenação, como escreveu Chiovenda, é o fato objetivo da derrota: e a justificação deste instituto está em que a atuação da lei não deve representar uma diminuição patrimonial para a parte a cujo favor se efetiva; por ser interesse do Estado que o processo não se resolva em prejuízo de quem tem razão e por ser, de outro turno, que os direitos tenham um valor tanto quanto possível e constante." (Exposição de Motivos do CPC em vigor).

Luiz Guilherme Marinoni:"O art. 23 da EOAB, todavia, só incide se o advogado não recebeu qualquer valor a título de honorários de advocatícios de seu cliente (ou, então, recebeu apenas parcialmente) ou, ainda, contratou que receberia a verba prevista contratualmente e aquela decorrente da sucumbência da parte contrária. Fora desses casos cabe ao cliente a verba arbitrada a título de honorários advocatícios." (CPC comentado, art. 20, RT, 2008, segunda edição).

João Baptista Villela, professor emérito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, em 2010: “Chega a ser bizarro que o Estado, por obra do juiz, condene o vencido nas custas, reembolsando-se a si próprio, mas não o condene ao reembolso da parte a quem o vencido se contrapôs sem fundamento válido. O resultado final não poderia, pois, ser mais esdrúxulo: O advogado do vencedor recebe de duas fontes por um só trabalho, enquanto o assim chamado vencedor nunca é, de fato, um vencedor. Seu direito estará sempre desfalcado do que houver pago ou do que houver de pagar ao seu advogado. Terá, digamos, 60, 70, 90% do direito judicialmente proclamado. Jamais 100%. Confisco puro.” ( http://www.livr ariadelrey.com.br/livraria/ revista/REVISTA_DELREY).

[ii] EMENTA: ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – OAB. ARTIGOS 1º, § 2º; 21, PARÁGRAFO ÚNICO; 22; 23; 24, § 3º; E 78 DA LEI N. 8.906/1994. INTERVENÇÃO COMO LITISCONSÓRCIO PASSIVO DE SUBSECÇÕES DA OAB: INADMISSIBILIDADE. PERTINÊNCIA TEMÁTICA. ARTIGOS 22, 23 E 78: NÃO-CONHECIMENTO DA AÇÃO. ART. 1º, § 2º: AUSÊNCIA DE OFENSA À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. ART. 21 E SEU PARÁGRAFO ÚNICO: INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. ART. 24, § 3º: OFENSA À LIBERDADE CONTRATUAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. A intervenção de terceiros em ação direta de inconstitucionalidade tem características distintas deste instituto nos processos subjetivos. Inadmissibilidade da intervenção de subsecções paulistas da Ordem dos Advogados do Brasil. Precedentes. 2. Ilegitimidade ativa da Confederação Nacional da Indústria – CNI, por ausência de pertinência temática, relativamente aos artigos 22, 23 e 78 da Lei n. 8.906/1994. Ausência de relação entre os objetivos institucionais da Autora e do conteúdo normativo dos dispositivos legais questionados. 3. A obrigatoriedade do visto de advogado para o registro de atos e contratos constitutivos de pessoas jurídicas (artigo 1º, § 2º, da Lei n. 8.906/1994) não ofende os princípios constitucionais da isonomia e da liberdade associativa. 4. O art. 21 e seu parágrafo único da Lei n. 8.906/1994 deve ser interpretado no sentido da preservação da liberdade contratual quanto à destinação dos honorários de sucumbência fixados judicialmente. 5. Pela interpretação conforme conferida ao art. 21 e seu parágrafo único, declara-se inconstitucional o § 3º do art. 24 da Lei n. 8.906/1994, segundo o qual "é nula qualquer disposição, cláusula, regulamento ou convenção individual ou coletiva que retire do advogado o direito ao recebimento dos honorários de sucumbência". 6. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida em parte e, nessa parte, julgada parcialmente procedente para dar interpretação conforme ao art. 21 e seu parágrafo único e declarar a inconstitucionalidade do § 3º do art. 24, todos da Lei n. 8.906/1994.(ADI 1194, MAURÍCIO CORRÊA, STF)

Fernando Jacques Onófrio: "… devemos lembrar que o art. 23 da Lei 8.906/94 (EOAB) não revogou o art. 20 do Código de Processo Civil. Por outro lado, os honorários devidos pela sucumbência, se contratados forem, poderão reverter em favor do advogado, desde que já não os tenha recebido do cliente. Caso contrário estes serão, sempre, da parte, como dispõe o art. 20 do Código de Processo Civil e conforme entendimento jurisprudencial.”[ii] (Manual de Honorários Advocatícios, São Paulo, Saraiva, 1998, sem destaque no original).

[iii] "Penso que tal norma também ofenderia o princípio do devido processo legal substantivo, porque está confiscando à parte vencedora, parcela que por natureza seria destinada a reparar-lhe o dano decorrente da necessidade de ir a juízo para ver sua razão reconhecida."

[iv] "… os honorários de sucumbência, a teor do disposto no art. 20 do CPC, são devidos à parte vencedora e não ao profissional da advocacia".

[v] "Penso, na linha do Ministro Peluso, que essa sistemática possui uma matriz constitucional. Ao alterar a disposição que constava do Código de 1973, a lei acabou por comprometer um dos princípios basilares desse modelo, dando ensejo a um indevido desfalque do patrimônio do vencedor.É evidente que a decisão legislativa contida na disposição impugnada acaba por tornar, sem justificativa plausível, ainda mais onerosa a litigância, e isso é ofensivo ao nosso modelo constitucional de prestação de justiça."

[vi] "Pode-se dizer o mesmo quanto ao contexto brasileiro. Incrementar custos de litigância "sem um justificativa plausível" – para usar as palavras do ministro Gilmar Mendes – é atentatório ao princípio da proteção judiciária. Não é plausível, assim, que uma lei cujo objetivo seja regular prerrogativas para a nobilíssima classe dos advogados estabeleça que não cabe à parte vencedora, seja ela empregadora ou não, os honorários de sucumbência. Tais honorários visam justamente a que a parte vencedora seja ressarcida dos custos que tem com o advogado, empregado seu ou contratado. Os dispositivos impugnados, ao disciplinarem que a verba de sucumbência pertence ao advogado, não promovem propriamente a rule of law, mas o rule of lawyers. Com isso, não se incrementa a proteção judiciária, mas apenas se privilegia certa classe de profissionais que devem atuar sempre em interesse da parte que representam, de acordo com as regras de conduta da advocacia."

[vii] CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. VALORES DESPENDIDOS A TÍTULO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS CONTRATUAIS. PERDAS E DANOS. PRINCÍPIO DA RESTITUIÇÃO INTEGRAL. 1. Aquele que deu causa ao processo deve restituir os valores despendidos pela outra parte com os honorários contratuais, que integram o valor devido a título de perdas e danos, nos termos dos arts. 389, 395 e 404 do CC/02. 2. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 1134725/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/06/2011, DJe 24/06/2011).

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