Crédito tributário

Justiça do Trabalho extrapola competência em execuções previdenciárias

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12 de abril de 2015, 9h30

A Emenda Constitucional 45/2004 – a “Reforma do Judiciário” – trouxe inúmeras inovações ao nosso sistema organizacional jurisdicional. Com elas, muitas polêmicas. Mais de dez anos após a sua promulgação, ainda estamos a discutir algumas delas incansavelmente, tanto em âmbito doutrinário quanto jurisprudencial. Uma dessas polêmicas que ainda resiste ao tempo é a nova (não mais tão nova) atribuição da Justiça do Trabalho de executar, de ofício, as contribuições previdenciárias decorrentes das sentenças que proferir, nos termos do inciso VIII do artigo 114 da Constituição Federal.

Não se questionam eventuais benefícios ou malefícios advindos dessa inovação. Parece pacífico que, em termos de celeridade/eficiência, o dispositivo só veio a colaborar com a Justiça. O problema nasce quando a Justiça do Trabalho, em uso exacerbado de sua competência, passa a deliberar arbitrariamente sobre a natureza jurídica do tributo em questão, modificando o verdadeiro fato gerador da contribuição previdenciária patronal.

O Tribunal Superior do Trabalho mantém entendimento de que o fato gerador das contribuições previdenciárias “surgiu (surge) mediante sentença trabalhista”, sendo que “é o pagamento do crédito trabalhista que gera a contribuição previdenciária decorrente, e não a prestação de serviços remunerada, cuja controvérsia só se viu dirimida pela ação judicial”. Com isso, os tribunais trabalhistas se autolegitimam a não declarar a decadência das contribuições previdenciárias patronais.

Esses dizeres foram proferidos em recentíssima decisão da Corte, de 22 de outubro de 2014, adotada para o presente artigo como ilustrativa da controvérsia, e a qual se remete à leitura[1].

Tal posicionamento vem gerando grave insegurança jurídica às empresas, que não sabem como proceder diante do Fisco e frente à sua própria prestação de contas – se as provisões previdenciárias decorrentes de contribuições decaídas devem ou não ser revertidas do passivo.

A tese é, contudo, ilegal. Não há base normativa que autorize essa pretendida inversão do momento de constituição do crédito tributário. Prova maior disso é que a voz da Justiça do Trabalho ecoa sozinha. Os demais Tribunais Superiores e mesmo a Receita Federal rechaçam a aplicação do regime de caixa às contribuições previdenciárias.

Expliquemos desde o início. Por um tempo pairou-se dúvida acerca de qual regime de apuração seria aplicável às contribuições previdenciárias: se o de caixa, segundo o qual a contribuição seria devida apenas quando a remuneração fosse efetivamente paga, ou o de competência, aplicado desde a data da prestação do serviço.

O artigo 22 da Lei 8.212/91, dispositivo que regula o fato gerador da contribuição previdenciária patronal, define que o tributo incide sobre as remunerações devidas (leia-se: dever de pagamento) a qualquer título aos segurados empregados e trabalhadores avulsos. O regime de competência, portanto, sempre foi o mais defendido pelos juristas e contadores.

Para sedimentar essa tese, se acrescentou por meio da Medida Provisória 449/08 o §2º ao artigo 43 da referida lei, dispondo expressamente que “considera-se ocorrido o fato gerador das contribuições sociais na data da prestação do serviço”.

Apesar da clareza do texto, a Justiça do Trabalho continua a andar na contramão. Todavia, sua fundamentação é eivada de vícios técnicos e argumentativos. Por um salto de olhar, já se o nota. Doravante, parte-se à análise pormenorizada da decisão modelo, remetendo-se novamente o leitor à sua leitura para melhor compreensão.

Os Vícios Argumentativos

Apesar da citação de diversos artigos de lei, o raciocínio empregado pelo Tribunal Superior do Trabalho não é formal nem materialmente válido. Por vezes, partiu a conclusões apressadas sem a análise de outras normas do sistema. Por outras, definiu premissas maiores e menores sem chegar a uma conclusão necessariamente lógica.

De pronto, o primeiro argumento do decisório – de que a Constituição Federal define os critérios material e temporal das contribuições previdenciárias – se revela inconclusivo. O texto constitucional não esgota a regra-matriz de incidência de tributo. Não é essa sua pretensão. Do contrário, a Constituição clama a análise do ordenamento jurídico em sua plenitude para extrair o máximo de seu conteúdo, como corolário do princípio da legalidade tributária estrita (artigo 150, I).

Essa análise sistêmica nunca foi realizada pelo TST. A Corte simplesmente esgotou a cadeia de argumentação logo no seu início, partindo-se à conclusão de que, por se tratar de dispositivo constitucional, ali estaria a única hipótese de incidência possível das contribuições.

Trata-se de um sofisma clássico: imputa-se à própria premissa fundante do silogismo a verdade de sua conclusão (é porque é), sem se estabelecer qualquer relação logicamente válida entre os predicados.

O Tribunal não observa, contudo, a própria Constituição invocada. Afinal, ela jamais se consagrou como a única fonte competente para definir regra-matriz de incidência tributária (art. 150, I). Se admitíssemos essa hipótese, o artigo 97 do Código Tributário Nacional deveria ser imediatamente expurgado do ordenamento, na medida em que ele relega à lei ordinária a incumbência de definir o fato gerador da obrigação tributária.

Na verdade, ao dispor a CF que as contribuições sociais do empregador incidirão sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados à pessoa física que lhe preste serviço, o constituinte não está taxando, em caráter definitivo e exclusivo, o critério temporal de incidência do tributo referido. A data do pagamento pode ser, sim, considerada para fins de base de cálculo da contribuição previdenciária. Mas não é essa a única hipótese do ordenamento.

A Lei 8.212/91 é o texto legal encarregado de regular o custeio da Seguridade Social, inclusive e principalmente para disciplinar os fatos geradores das contribuições previdenciárias. E suas normas a esse respeito são expressas, claras, a respeito de qual o fato gerador das contribuições previdenciárias executadas na Justiça do Trabalho. Reportamo-nos, aqui, aos dois dispositivos legais já citados na introdução, quais sejam, o artigo 22, que traz em seu bojo o termo “devidas”, e o inequívoco, claro e expresso §2º do artigo 43, a dispor, com a escusa da repetição, que se considera “ocorrido o fato gerador das contribuições sociais na data da prestação do serviço”.

A própria Receita Federal reconhece que a prestação do serviço é o fato gerador das contribuições previdenciárias. A alínea a do art. 52 da Instrução Normativa RFB (“IN”) 971/09 enuncia que o fato gerador da contribuição previdenciária ocorre no mês em que for paga, devida ou creditada a remuneração, “o que ocorrer primeiro”. Como o dever de pagar nasce antes do pagamento em si, aquele deve ser considerado o fato gerador do tributo.

Para expurgar quaisquer dúvidas, o §1º do mesmo dispositivo expressamente se refere ao regime de competência como o aplicável às contribuições previdenciárias. Sem se mencionar do entendimento exarado no Parecer Normativo 25/2013, dizendo que “nas ações trabalhistas das quais resultar pagamento sujeito à incidência de contribuição previdenciária, considera-se ocorrido o fato gerador das contribuições na data da prestação do serviço”.

Salto hermenêutico
Temos, portanto, uma norma jurídica válida a taxativamente determinar que o fato gerador da contribuição previdenciária é a data da prestação do serviço (art. 43, §2º). Essa posição é ratificada pela Administração Pública, conforme a IN n. 971/09. A norma também nunca foi declarada inconstitucional em nenhuma forma de controle jurisdicional. Pelo contrário, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema no Recurso Extraordinário 419.612/PR, deliberando que a contribuição previdenciária incide no momento em que surge a obrigação legal de pagar, pouco importando se o pagamento ocorre posteriormente.

Portanto, nenhum julgador poderia deixar de ignorar a aplicabilidade dessa norma jurídica ao caso concreto. Contudo, é exatamente isso que faz a Justiça do Trabalho.

Quando parte à defesa de sua tese, o TST invoca o caput e o §3º do artigo 43 da Lei 8.212/91, dispositivos dedicados às contribuições previdenciárias executadas na Justiça do Trabalho. A partir de uma interpretação distorcida do termo “recolhimento”, define que o fato gerador da obrigação tributária nasce com a sentença trabalhista, para então concluir que o só pagamento constitui o crédito respectivo, não podendo daí se falar em decadência.

Observe-se o salto interpretativo operado pelo Tribunal. Apesar de o §2º do artigo 43 se localizar exatamente entre o caput e o §3º – fundamentos da decisão – aquela norma foi simplesmente ignorada no momento da argumentação. Não houve (sequer) declaração incidental de inconstitucionalidade do dispositivo.

Constituição de crédito tributário atípica?
O que realmente faz o TST é omitir-se à análise do motivo por que seria inaplicável a regra do §2º do artigo 43. Para atingir o seu fim, a Corte preferiu distorcer o termo “dever de recolhimento” constante no caput do artigo 43 para desembocar na conclusão de que o fato gerador da contribuição previdenciária é a sentença trabalhista.

O Tribunal confunde institutos de Direito Tributário com essa retórica. “Recolhimento” não se confunde com “fato gerador”. O primeiro se refere à arrecadação pura e simples do crédito tributário; o segundo, ao lançamento da obrigação. E a decadência, como se sabe, aplica-se quanto ao direito de constituir a obrigação tributária (fato gerador).

Portanto, não importa se o dever de recolhimento nasce com o trânsito em julgado da sentença trabalhista. Isso não afasta o reconhecimento da decadência quanto ao próprio fato gerador que fez nascer esse dever. Frisa-se: estamos tratando de níveis distintos no processo de cobrança do tributo. Impróprio, assim, se apegar à data do recolhimento para definir se decaiu, ou não, o direito de lançamento da obrigação tributária.

O próprio Superior Tribunal de Justiça firmou esse entendimento no REsp n. 480.529/SC, ao dispor que, para o fim de incidência da contribuição previdenciária patronal, “o mês da competência é aquele efetivamente trabalhado, não havendo que se confundir o fato que origina a obrigação de recolher a contribuição previdenciária com o fato gerador da própria obrigação tributária, porque distintos”.

De mais a mais, uma sentença trabalhista jamais pode constituir fato gerador de um tributo, como indicou o relator no acórdão em xeque. Ela, a sentença, somente tem o condão de reconhecer a existência de um fato jurídico tributário, mas não de constituí-lo. Noutras palavras, o fato jurídico tributário sempre esteve ali presente no mundo fenomênico, mesmo que não transcrito em linguagem própria via ato administrativo vinculado (o lançamento).

Se assim não fosse, a Secretaria da Receita Federal do Brasil não possuiria a competência de a qualquer tempo fiscalizar o fiel cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa, constituindo a diferença da obrigação tributária devida se for o caso. Essa incumbência da RFB é, no entanto, inequívoca e privativa dela, conforme dispõe o artigo 2º da Lei n. 11.457/2007.

Essa fiscalização da Receita se enquadra, aliás, na excepcional hipótese de lançamento de ofício do resíduo tributário, conforme previsão do artigo 149, V, do CTN. É que a contribuição previdenciária, como tributo sujeito ao lançamento por homologação, depende de apuração e pagamento pelo próprio sujeito passivo. Mas se a Receita discordar do valor pago, ela poderá/deverá realizar o lançamento de ofício dessa diferença, cabendo somente a ela constituir esse crédito.

Note-se, aqui, o pesado gravame imposto sobre as empresas com o posicionamento ilegal da Justiça do Trabalho. Elas acabam se sujeitando a duas espécies de “fiscalização” das contribuições previdenciárias residuais. Uma, legítima, a cargo da Receita Federal do Brasil, sujeita ao prazo decadencial de cinco anos do artigo 150, §4º, do CTN. E outra, sem base legal alguma, imposta pelo juízo trabalhista, e que não se submete rigorosamente a nenhum prazo de decadência. Basta vir a sentença liquidanda que, magicamente, se constitui o crédito tributário, de forma anômala, atípica, e violadora do princípio da legalidade tributária.

Conclusão
Ao executar as contribuições previdenciárias arroladas no art. 195, I, a, e II, da Constituição Federal, a Justiça do Trabalho clama para si todos os poderes administrativos afetos à fiscalização e cobrança tributárias. Entende que pode, apesar de ausência de embasamento legal, constituir o crédito tributário por meio de figura atípica de lançamento via sentença.

Porém, o inciso VIII do artigo 114 da Constituição Federal somente delegou à Justiça do Trabalho a competência de executar as contribuições previdenciárias decorrentes de decisões trabalhistas. Isto é, sua atribuição é meramente arrecadatória, não importando em qualquer modificação de conteúdo e da natureza jurídica do tributo em si.

A supertese da Justiça do Trabalho só confirma o porquê a insegurança jurídica, em especial na área tributária, é apontada como um dos grandes riscos a que se submete o empresariado no Brasil, como se observa no recém-publicado relatório Doing Business Brazil de 2015[2]. Apesar desse gravame, só nos resta por ora lutar cada vez mais para solidificar o único entendimento que possui base legal, e defendido pela própria Receita Federal.

[1] Processo nº 1755-98.2010.5.03.0002 da 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, julgado em 22 de outubro de 2014. Inteiro teor do acórdão disponível em: <http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&format=html&highlight=true&numeroFormatado=RR%20-%201755-98.2010.5.03.0002&base=acordao&rowid=AAANGhABIAAAGnMAAG&dataPublicacao=24/10/2014&localPublicacao=DEJT&query=>

[2] O relatório referido é um dos mais respeitados em nível global. Sua pretensão é avaliar o desempenho médio de países em diversos quesitos básicos na área de negócios, como custos e tempo dispendido para iniciar e manter um empreendimento.
A posição do Brasil é a de 120 dentre 189 países avaliados, abaixo da média da região sul-americana. Os pontos que abaixam a nota do Brasil são clássicos. No quesito “pagamento de impostos”, o país fica na 177ª posição.
Da mesma forma, quanto à facilidade de se iniciar um negócio frente ao ambiente regulatório, estamos em 167º lugar. Quanto à facilidade de resolver conflitos comerciais em Juízo, nos encontramos na 118ª posição. Para uma análise completa do relatório, acesse: <http://portugues.doingbusiness.org/data/exploreeconomies/brazil/~/media/giawb/doing%20business/documents/profiles/country/BRA.pdf>

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