Disregard doctrine

Novo CPC e STJ corrigem anomalia de canhões apontados contra sócios

Autor

  • Lúcio Delfino

    é advogado pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).

12 de abril de 2015, 15h55

A violência é subestimada porquanto comumente discernida de maneira contida. Raciocina-se sobre ela sem ousar para além da sua feição subjetiva, como se circunscrevesse apenas àquilo avesso à ordem natural das coisas, que afronta a serenidade ou atassalha, sob o domínio da força, consensos e convenções.

Assim é porque, em tal perspectiva, ela se oferece em desnudo, visceralmente, a causar sensações não raro nauseabundas. Os exemplos estão aí, explorados amiúde, mesmo porque lucrativos: basta abrir um jornal, ligar uma tevê ou acessar redes sociais para se apreender as mais variegadas impressões atreladas ao abuso, à bestialidade e à selvageria.

Mas há também outra mirada que a individualiza, de cunho simbólico-objetiva, habitualmente não percebida por suas vítimas. Resistir às suas influências é dificílimo, uma vez que está em toda parte e em lugar nenhum.[1] Situada no plano ideológico, centra-se no que é corriqueiro, sendo produzida e reproduzida no âmbito das relações sociais como mera trivialidade.

Espraia-se e institui movimento ininterrupto voltado à uniformização: sem que percebam, as pessoas são bombardeadas, desde a mais tenra idade, com arquétipos a seguir, adestradas em várias esferas (social, empresarial, política, familiar) a assumir posturas e a frear impulsos, sutilmente constrangidas ao ajuste de condutas, instigadas a reagir ao que se lhes é oferecido como diferente. Ainda que não se note, o ser humano é controlado por cordéis invisíveis, manipulado via discursos (normatizados ou não) de cúpulas (privadas ou públicas) fundados em interesses desconhecidos ou pouco transparentes.

Essa imagem suscita reflexões sobre as mais distintas questões da vida cotidiana. Seu propósito neste espaço, porém, é bastante específico: opera como pano de fundo para a análise de uma prática judicial, constatada aqui e acolá com assiduidade, disfarçada sob as vestes da normalidade. Estar-se-á a referir ao mau vezo de manejar a desconsideração da personalidade jurídica como técnica voltada ao justiçamento (sobretudo na Justiça do Trabalho, mas não só ali), eclipsando uma intolerância preocupante ao devido processo legal – segundo essa perspectiva, almeja-se unicamente efetividades quantitativas.[2]

E, se alguém toma por descomedida a ligação entre disregard e violência, que empregue algum tempo em pesquisas nos sites dos tribunais brasileiros. Circunstâncias há nas quais o patrimônio dos sócios (e/ou dos administradores) é atingido apenas porque não se encontrou bens passíveis de penhora pertencentes à sociedade devedora. Noutras situações, basta que se apresentem indícios de abuso da personalidade jurídica para que os bens dos sócios fiquem a descoberto, sujeitos às atividades executivas.

Tudo isso em desdém ao contraditório e à ampla defesa, garantias catapultadas para o futuro, pouco importando os prejuízos concretos decorrentes da medida judicial. Comporta-se como a formiga, que consegue ver pequenos objetos, mas não enxerga os grandes. É a velha e perigosa constatação: fins justificando meios no palco processual.

Por detrás dessa prática nefasta, a funcionar como espécie de força simbólica motriz, ganham ares de legitimidade justificativas retóricas cujo papel é abrir sendas que possibilitem a correção moral do direito, sempre a critério do próprio intérprete. Enquanto a Justiça do Trabalho eterniza discurso socializante-filantrópico, formado pela simbiose entre hipossuficiência do trabalhador e natureza alimentar do crédito trabalhista, a Justiça estadual aposta em receita eficientista-predatória, que facilita o uso desmedido da desconsideração da pessoa jurídica, de quando em vez até com requintes doutrinários – a alusão diz respeito à teoria menor, álibi teórico-legislativo destinado ao esvaziamento da normatividade constitucional.

A reboque dessa violência simbólica, o protagonismo judicial ganha espaço e multiplica-se pelo Brasil afora em progressão geométrica, cresce parasitariamente, faz metástases e prospera em muitos casos concretos. Em um passe de mágica, mediante argumentos impermeáveis à filtragem constitucional, o que está legislativamente posto como exceção dia a dia torna-se regra, sobrando a amarga impressão de que institutos sérios estão se perdendo nesse caminho: a racionalidade da autonomia patrimonial entre sócios e sociedade e a autoridade do devido processo como critério de legitimidade da atividade judicial.

Na seara jurídico-processual poucas são as posturas que se apresentam mais selvagens que a quebra do modelo constitucional do processo. Em um ambiente tal, desaparecem as regras do jogo, a transparência esvaece e surge soberano o arbítrio judicial, notadamente quando são renegados contraditório e ampla defesa, garantias cuja implementação é inexorável ao controle e fabrico de decisões públicas assenhoradas por uma perspectiva republicana e democrática. No que tange à disregard doctrine, a preocupação realmente se faz presente porque seu uso repetidamente ocorre de forma desenfreada, com doses intensas de excesso pesando sobre as costas dos sócios (e/ou dos administradores) da pessoa jurídica devedora, como ilustram os seguintes apontamentos:

  • Se houve prévia fase de conhecimento, com condenação a envolver apenas a pessoa jurídica, não há sentido, por mais que se estime talentos retóricos, em direcionar os canhões do Estado contra os sócios (e/ou administradores) sem antes lhes permitir a possibilidade de defesa, isto é, de influir na elaboração de uma decisão que poderá comprometer seu patrimônio. Não há alternativa, pois do contrário se estaria a validar espécie de condenação civil sumária em terrae brasilis. Nem é preciso trazer à lume o novo CPC, cuja tônica se pauta na transparência e boa-fé objetiva, avesso também às decisões-surpresas, já que institui, no âmbito infraconstitucional, o contraditório como garantia de influência e não surpresa. Mais que suficiente ler a Constituição, a qual impõe, com todas as letras, que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal, além de assegurar o contraditório e a ampla defesa aos litigantes em processo judicial e administrativo (CF, art. 5o., LIV e LV).[3] Por mais que seja adequado dispensar ao trabalhador (e ao consumidor) tratamento diferenciado em razão da sua hipossuficiência, por mais importante que seja a defesa do meio ambiente e por mais que se anseie pela implantação no Brasil de uma jurisdição eficiente, é nada menos que ato de truculência judicial tomar por devedores, à fórceps, àqueles que até então são estranhos ao processo, sujeitando-os às implicações lesivas de atividade executiva fundada em sentença (ou acórdão) da qual não tiveram qualquer ingerência.
     
  • O mesmo raciocínio é válido para atividades executivas respaldadas em títulos executivos extrajudiciais. Em sendo a devedora pessoa jurídica, instaurado processo executivo contra ela, ao Estado-juiz não é permitido renegar a sua personalidade jurídica a fim de atingir patrimônio dos sócios, sem antes oportunizar contraditório e ampla defesa.
     
  • Sabe-se que a coisa julgada deriva de decisão transitada em julgado, a implicar nova situação jurídica caracterizada pela imutabilidade e cuja eficácia, de regra, não prejudica ou beneficia terceiros (art. 472 CPC), mas tão só as partes envolvidas no litígio. Assim é em respeito ao contraditório, pois ninguém pode, em princípio, ter sua situação jurídica definida em processo do qual não participou.[4] Trocando em miúdos: se a desconsideração tem pujança para flexibilizar a coisa julgada em seus limites subjetivos, deve mesmo ser encarada como excepcional, aplicada sempre com zelo, cautela e responsabilidade, a exigir obrigatoriamente que contraditório e ampla defesa sejam observados.
     
  • O art. 50 do Código Civil não poderia ser mais claro: indica, com todas as letras, que a disregard doctrine é medida de exceção, autorizada apenas na hipótese de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Não são suficientes indícios para que a execução civil tenha por alvo terceiros alheios ao processo, exigindo a lei demonstração robusta de prática dolosa voltada ao desvio de finalidade ou à confusão patrimonial. Tendo-se em vista que o resultado positivo de sua aplicação alcançará terceiros, com possível adulteração da coisa julgada em seus limites subjetivos, a envolver muitas vezes complexidade técnico-probatória, não deixa de ser evidente a indispensabilidade do contraditório e da ampla defesa com todos os reflexos que daí se originam. 
     
  • O senso comum teórico acostumou-se a lidar com as teorias maior e menor, cunhadas para explicar a aplicação da disregard doctrine em casos concretos de coloridos diversos. Em resumo: a teoria maior autoriza a desconsideração da personalidade jurídica somente quando demonstrado o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial (art. 50 CC), ao passo que a teoria menor a permite em razão do simples inadimplemento, nas hipóteses de insolvência ou falência, ou quando a personalidade jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento, pouco importando se realmente houve abuso da personalidade jurídica. O utilitarismo imanente à essa teoria menor é ululante, porquanto tem em mira exclusivamente a satisfação do crédito exequendo. E ainda que conte com base legal (para ilustrar, art. 28, em especial seu §5.o CDC), o fato é que os dispositivos que lhe conferem amparo não se mantêm incólumes se submetidos a uma filtragem constitucional, e assim porque achincalham o devido processo – é como se o legislador infraconstitucional estivesse a dizer que contraditório e ampla defesa são despiciendos em determinadas causas (meio ambiente, consumidores).

Como já sinalizado, essa é uma temática em que violências simbólica e subjetiva seguem de mãos dadas, uma robustecendo e conferindo substrato teórico à prática da outra, ambas despreocupadas com a facticidade. O devido processo fica de escanteio, pois vale mesmo é a eficiência na satisfação do crédito.[5] E tudo se complica com a criação de mecanismos como o Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT): centralizado no TST e alimentado a partir de informações remetidas por todos os tribunais regionais do país, seu papel é arquivar nomes de pessoas, físicas e jurídicas, devedoras em processos de execução trabalhista, cujas implicações lesivas são as mais diversas. O efeito dominó é manifesto: levanta-se o véu protetor da personalidade jurídica, penetra-se via força estatal na esfera patrimonial dos sócios e inserem-se seus nomes no BNDT. Tudo em um só golpe, de forma automatizada e bastante eficiente, já que os resultados são palpáveis, não obstante o déficit de constitucionalidade que imácula a decisão judicial.

A coisa somente não degringolou por completo porque há setores da doutrina e jurisprudência que não se curvam facilmente a razões de cunho instrumental, sempre trabalhando a fim de fazer imperar a normatividade constitucional. É imperioso festejar iniciativas como aquela implementada pelo novo CPC, que institui o denominado incidente de desconsideração da personalidade jurídica, projetado exatamente para assegurar contraditório e ampla defesa em favor dos sócios (e/ou dos administradores) até então estranhos ao procedimento judicial. É claro que em outra cultura seria algo dispensável, pois se sabe que a instauração de um incidente assim decorre da própria Constituição, haja ou não previsão legal específica. Mas as obviedades do óbvio precisam ser desveladas e nada como a clareza de uma legislação para iluminar a praxe jurídica.

Também traz uma lufada de otimismo a notícia de que a 2a Seção do STJ superou divergência que ali havia a respeito dos requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, fixando o posicionamento segundo o qual a sua aplicação, decorrente do art. 50 do Código Civil, exige a comprovação de desvio de finalidade da empresa ou confusão patrimonial.[6]

Concluiu-se que é insuficiente o simples encerramento irregular das atividades (fechamento da empresa sem baixa na Junta Comercial, por exemplo) para autorizar o redirecionamento da execução contra o patrimônio pessoal dos sócios: exige-se a cabal comprovação do dolo por parte daqueles que utilizaram a personalidade jurídica da sociedade para acobertar ilícitos e prejudicar credores. Frente a esse posicionamento, o devido processo foi valorizado, a surpresa exorcizada e o contraditório implementado a permitir o pleno exercício da ampla defesa e o debate entre os antagonistas, de forma tal que a decisão futura legitime-se pela participação.

É claro que se tem que progredir mais. O próximo passo talvez seja examinar a constitucionalidade das bases legais que fundamentam a teoria menor, aquela utilizada em causas consumeristas, trabalhistas e ambientalistas, e que encara o devido processo com assustador desinteresse.

Aliás, será interessante acompanhar o desenlace jurisprudencial a envolver teoria menor e incidente de desconsideração: é que, se de um lado o novo CPC converge rumo a exigência de observância dos pressupostos legalmente previstos para o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica, de outro o CDC (e outras legislações) simplesmente o dispensa (ou o torna inútil), admitindo a aplicação do instituto sempre que a personalidade jurídica for um obstáculo ao ressarcimento.

Dois vivas, um ao novo CPC e outro ao STJ, porquanto é inegável o avanço alcançado na superação da anomalia apontada e que só faz corroer a normatividade constitucional. Ganham com isso a intersubjetividade, a segurança jurídica e a autonomia do direito, predicados indeléveis do Estado Constitucional.

 


[1] Esse é o entendimento de: BOURDIEU, P.; EAGLETON, T. A doxa e a vida cotidiana. Uma entrevista. In:   ŽIŽEK, Slavoj (org.). Uma mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2007. p. 265-278.

[2] A desconsideração da personalidade jurídica está prevista em vários diplomas legais. Para além do CC (art. 50) e CDC (art. 28), também se pode notá-la: Lei 12.529/2011 (art. 34), Lei 9.605/1998 (art. 4o.), CTN (art. 134, VII).

[3] Nesse sentido: DIDIER JR., Fredie. Aspectos processuais de desconsideração da personalidade jurídica. In: TÔRRES, Heleno Taveira; QUEIROZ, Mary Elbe. Desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 400-401.

[4] RIBEIRO MOURÃO, Luiz Eduardo. Coisa julgada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008. p. 235.

[5] Não é demais lembrar que o sistema jurídico brasileiro também disciplina a responsabilidade pessoal e direta dos sócios (e/ou administradores), que não se confunde com a teoria da desconsideração. Embora às vezes aplicadas como se fossem uma única ideia, seus fundamentos são diversos.

[6] Ler a notícia aqui: <http://www.conjur.com.br/2015-jan-27/desconsideracao-pessoa-juridica-base-codigo-civil-exige-dolo> A alusão ora feita é aos Embargos de Divergência em REsp n. 1.306.553/SC.

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