Limite Penal

Quando os julgadores viram tubarões togados, algo se perdeu

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

10 de abril de 2015, 8h00

Spacca
O Poder Judiciário deveria conter a fúria punitiva não no sentido de impedir a punição, mas justamente de garantir o devido processo legal substancial. Ou seja, pode-se punir em Democracia desde que atendidos os preceitos legais e jogando limpo, sem doping processual. O uso ostensivo da mídia no Processo Penal, com a exposição da vida privada e da imagem dos acusados ou meros indiciados é algo que precisa ser marcado, afinal, depois de enxovalhado midiaticamente resta pouco ao sujeito inocentado. Imagine-se, caro leitor, como se defender de manchetes sensacionalistas?

Alfred Hitchcock dizia que o terror se obtém com a surpresa, enquanto o suspense pelo aviso antecipado. O que se passa no campo do Direito e do Processo Penal é um misto entre as diversas surpresas, que causam terror, antecedidas pelo aviso de que isto irá acontecer. O aviso de que isto irá acontecer está presente no discurso midiático do terror e se pode invocar a metáfora de filmes e livros, justamente para dar sentido ao que se passa.

O filme Tubarão contou com um recurso que o próprio Steven Spielberg não contava nas filmagens: o efeito conseguido somente porque o terror da surpresa era precedido do suspense em que o predador apenas era sugerido, indicado, como se não estivesse presente. A câmera filmava como se fosse o olhar do próprio tubarão, em uma tática espetacular de Spielberg, apontado por Juliano Keller do Valle. Esse efeito semblant que o filme proporciona, a saber, de se estar com medo em qualquer lugar, pois o tubarão poderia se fazer presente, do nada, no efeito surpresa, ocasionou o “suspense” de toda uma geração… A montagem que se aproveita de uma “surpresa” violenta para causar “suspense” e se usar ideologicamente, de fato, está presente na nossa película diária das apurações e processos penais: a continuação incessante do medo!

Assim é que o “crime-tubarão” é utilizado como mecanismo midiático da violência constitutiva do humano e, paradoxalmente tratado como se fosse uma surpresa no cotidiano, fomentado por uma realidade excludente, na qual o crime-produto se esgueira como financiador oculto desta economia criminal e obscena. A surpresa é, no caso, distorcida, da ordem do semblant. Sabe-se, desde antes, que as possíveis variáveis do crime não decorrem, de regra, de um ato de terror individual, mas de toda uma coletividade que produz e se regozija com o crime. De qualquer modo, percebe-se que o destino de quem pretende sair desta metáfora é complicado, justamente porque as coordenadas culturais em que se está submerso reproduz o modelo da única possibilidade capaz de nos livrar do tubarão: matando-o! E se mata; muito. O sistema penal produz vítimas de todos os lados. Somente não percebe quem continua acreditando nos contos de mocinho e bandido. De um lado o mal, organizado para causar o desespero dos que se situam (imaginariamente e sem culpa) do lado do bem. O poder se organiza assim, especialmente no Direito Penal. Daí as ilusões de que a punição nos salvará.

Acontece, entretanto, que diante do levante punitivo e do agigantamento do sistema penal, as soluções processuais, diretamente: seus custos passaram a ser gigantescos. Daí que a partir de uma lógica do custo/benefício, as normas processuais precisaram ser mais eficientes. Importando-se as noções de tradições diversas, desprezando o giro que modo de pensar da filosofia pragmática exige, algumas novidades foram introduzidas no país, tudo sob o mote de matar o “tubarão”. Para isso a Justiça Criminal eficiente, com custos reduzidos, sem direito de defesa, parece a “demanda econômica” proposta, abolindo os limites garantistas do sistema penal. E a delação premiada, como já apontamos, significa a redução dos custos de produção da prova, não sem perigos democráticos, como diz Salah Khaled Jr.

A Justiça “eficiente” também cobra mais “velocidade”. Ou seja, faz uma interpretação eficientista do direito fundamental de ser julgado em um prazo razoável (artigo 5º, LXXVIII da Constituição), para que os procedimentos sejam mais céleres, pois mais rapidamente se deve chegar na resposta estatal (punitiva). Para tanto, se o procedimento ordinário é lento, criamos o sumário; se o sumário ainda não satisfaz, tenhamos o ‘sumaríssimo’; e, como se não bastasse, vamos partir para a aplicação imediata da pena… E não falta quem sustente que havendo flagrante, não se justifica ter processo, afinal, se o ‘evidente’ se basta por si só, é autorreferenciado (a ilusão de que o evidente não precisa de prova). Claro que essa aceleração cobra um preço: o atropelo de direitos e garantias fundamentais. Mas, nesse cenário, quem está preocupado com isso?

Também temos a banalização das prisões cautelares, a ilusão de justiça imediata. Pensamos que o processo “demora demais” e ninguém quer esperar até a sentença, afinal, qualquer demora é uma dilação insuportável para uma sociedade hiperacelerada. Por isso, quando somos sedados pela avalanche de imagens de uma megaoperação policial e ninguém sai preso, temos a molesta e incômoda sensação de que haverá impunidade. O gozo se dá com a imagem de várias pessoas saindo algemadas! Sim, isso é Justiça célere! Bom, se depois forem absolvidos, tudo isso são “meros dissabores” a serem sustentados para termos uma Justiça Criminal “eficiente”. Afinal, como sempre dizem, não se faz um omelete sem quebrar (vários) ovos… ainda que alguns caiam no chão ou nem devessem ter saído da geladeira.

Daí que se apegar ao Garantismo Constitucional de Luigi Ferrajoli é a busca de um limite ao “eficientismo” do Processo Penal. Articula garantias mínimas que devem, necessariamente, fazer barreira para se evitar que se negocie o “direito a liberdade” e a presunção de inocência. Defender direitos de acusados passou a ser uma atividade clandestina. Em nome do bem, dos bons e justos, divididos em dois lados, os enunciadores da salvação colocam-se na missão (quase divina) de defenestrar o mal na terra, transformando qualquer violador da ordem em “tubarão”, na luta por sua extinção.

Talvez se possa entender um pouco mais sobre os dilemas contemporâneos do Processo Penal eficiente quando se é acusado, a saber, ao se colocar na posição de acusado. Qual o juiz que se pretende ver julgando-nos? Se nós fóssemos os juízes poderíamos dizer que seríamos garantistas? Pergunta Marcos Peixoto: ou a garantia somente interessa quando formos acusados? Essa questão permeia outra: vivemos uma sociedade hipócrita e em busca de valores. Usamos uma “moral a la carte”, pregamos tolerância zero para o “outro” e tolerância dez para nós e a nossa delinquência. O mesmo “homem médio”, guardião da moralidade em público, é o que depois, na clandestinidade, sonega, lava dinheiro, corrompe, violenta. Somos todos selvagens, é doloroso, mas necessário, assumir. Mais difícil é compreender que respeitar regras do jogo não é sinônimo de impunidade, senão todo o oposto: podemos garantir para punir e punir garantindo. Em complexidade, as coisas não se excluem.

O que não se pode é continuar aceitando as “novidades” legislativas sem uma profunda reflexão de qual é o nosso papel (advogados, defensores, delegados, Ministério Público e magistratura), nem os efeitos que nossas posições podem engendrar no coletivo. Os limites democráticos precisam ser recompostos. O “tubarão” já foi preso, morto, esquartejado, mas sempre surge o medo de que ele retorne, não porque o quer, mas porque o “tubarão” habita o mais íntimo do humano. Surpresa? Medo? Angústia? Tudo humano, demasiadamente humano, diria Nietzsche e Amilton Bueno de Carvalho. Mais dia menos dia todos precisaremos de juízes garantistas… Basta conseguir ficar vivo.

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    é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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