Senso Incomum

O NCPC e as esdrúxulas "regras de experiência": verdades ontológicas?

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9 de abril de 2015, 8h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]Há muitas coisas boas no novo Código de Processo Civil (NCPC). Despiciendo enumerá-las aqui, bastando que nos atenhamos na extinção do livre convencimento (embora alguns juristas adeptos do personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho,[1] insistam em dizer quer não), na introdução da coerência e integridade (artigo 926), na garantia da não surpresa (artigo 10) e na exigência de fundamentação esmiuçada no artigo 489. Obviamente que algumas coisas escaparam. A pressão de determinados dos grupos mais tradicionais do instrumentalismo processual (fantasmas de Büllow) proporcionaram a permanência de algumas anomalias no texto. Falo da ponderação do parágrafo segundo do artigo 489, que introduz a ponderação no NCPC. Inconstitucional. Bem inconstitucional, conforme já deixei assentado aqui. Também é esdrúxula a previsão de razoabilidade e proporcionalidade no artigo 8º. Como se mede a proporcionalidade? Existe um razoavelômetro para medir a extensão do razoável?

Isso ainda será debatido aqui na revista eletrônica Consultor Jurídico. Mas hoje quero discutir a permanência de uma coisa serôdia, tão velha quanto a palavra serôdia, que é a previsão do uso de “regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece”, no artigo 375. Trata-se de um dispositivo a-paradigmático. Algo como uma disciplina na faculdade de medicina tratar do uso da benzedura para tratar da gripe H1N1.

Lembro, aqui, do livro do Malatesta (o que mal-atesta), que, sobre a aferição da prova, diz que “o ordinário se presume; só o extraordinário se prova”. Isso não se comprova cientificamente. Mutatis, mutandis, é o que diz o NCPC: o juiz usará regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece. Como aferir isso?  Em um país de estamentos, nepotismos e falcatruas, podemos elencar uma porção de coisas que podemos observar e que “ordinariamente acontecem”. Não acham?

Diz-se, na doutrina nacional, que as máximas da experiência são (ou devem ser) entendidas a partir de critérios cognitivos. Pois é. Deve ser algo como “o produto de um processo de apreensão das coisas, algo como um “processo de conhecimento”. OK, desde que não tivéssemos já passado por dois giros copernicanos (linguist turn e ontologic turn). “Regras de experiência”, efetivamente, é um conceito vazio de conteúdo. Sofre de anemia significativa. Pálido. Esquálido. O que é isto — regras de experiência?

Pior de tudo é que elas servem para a “apuração dos fatos” e “valoração das provas”. Saiamos correndo. O próprio legislador diz que o empírico vale tanto ou mais do que a lei. Já li que o juiz não pode decidir “contras as regras de experiência”. Como assim? Deixa ver se eu entendi: O direito é ontológico clássico, agora? Sempre achei que o direito é imputação. Até nas Viagens de Gulliver isso fica claro, quando o Rei decreta a alteração de como se deve quebrar os ovos. Mas, se o juiz não pode ir contra as regras da experiência, o legislador pode, certo? Ou não? Ou uma lei votada pelo parlamento pode ser declarada nula porque vai contra as regras de experiência frutos de observação do que ordinariamente acontece?

Sim, sabemos que há até mesmo, no atual regime, decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o uso de regra de experiência. Tudo bem. Mas o NCPC precisava repisar essa anomalia? Depois de tantas lutas e conquistas, em que o direito assumiu um elevado grau de autonomia, de que modo podemos aceitar uma poluição semântica advinda de enunciações vazias como “uso de regras de experiência”? Ora, acreditar na validade de um dispositivo dessa monta é crer na separação metafísica — absolutamente ultrapassada entre questão de fato e questão de direito. Quem sabe não devamos reler o velho Castanheira Neves?

O pior de tudo é que o NCPC não diz, por exemplo, que o juiz usará essas regras de experiência na falta de ordenamento, etc. Não. Ele usará ou poderá usar sempre. Provavelmente quando lhe convier. Houston, Houston, we have a problem. E como medir a experiência do juiz? Quais as condições de possibilidade de o juiz (ou qualquer pessoa) compreender o que é uma regra de experiência? Ou “regras de experiência” é um conceito ontológico, “cognoscível” por todos que possuem o “dom de observar essências”? Quem não lembra de uma passagem de O Nome da Rosa, de Eco, em que o jovem Adso de Melk pergunta para seu mestre, Guilherme de Baskervile (alter ego de Guilherme de Ockam): “— Mestre, vejo o cavalo, mas não vejo a cavalidade”. E o mestre responde: “é porque ainda não tens os olhos para ver a cavalidade”. Há que ter os “olhos para ver o significado da regra de experiência”? Uma coisa assim “tipo-platônica”? Ou estaríamos voltando a um cognotivismo ético ou moral? Ou as tais regras de experiência são “verdades correspondenciais”? Adeaquatio intellectum et rei?

No CPC de 1973 constava dispositivo parecido. Era o artigo 335 pelo qual em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial. Bom, pelo menos dizia “na falta de algo”. O NCPC provocou um enorme retrocesso, que não resiste a cinco segundos de filosofia, mesmo que o curso seja na Faculdade do Balão Mágico.

Ora, em Hermeneutica Jurídica e(m) Crise[2] já consta a denúncia desde as primeiras edições. O dispositivo, a par de sua inequívoca inspiração positivista (permitindo discricionariedades e decisionismos), e sua frontal incompatibilidade com uma leitura hermenêutica do sistema jurídico, superadora do esquema sujeito-objeto (filosofia da consciência), mostra-se tecnicamente inconstitucional, como se ao juiz fosse dado, em pleno Estado Democrático de Direito, o poder de julgar a partir de juízos solipsistas (não venham me dizer que as regras de experiência entendidas pelo senso comum do juiz tem “critérios objetivos” — a menos que voltemos a acreditar em verdades apodíticas). Todo o poder emana do povo, portanto, do legislador, diz a Constituição. Daí o próprio legislador ter dito que o julgamento pode advir não da lei, mas de regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece… a distância é enorme.

A força simbólica desse dispositivo que finca os marcos do positivismo no interior do (novo) constitucionalismo enfraquece sobremodo o valor da doutrina na construção do conhecimento jurídico, com o consequente fortalecimento do papel do aplicador da lei. Cada vez mais, os juristas ficam à mercê de decisões tribunalícias, como a dar razão ou a repristinar as velhas teses do realismo jurídico, pelas quais o direito se realiza na decisão, forma acabada de um positivismo que, buscando superar o normativismo exegético, abriu, historicamente, o caminho para discricionariedades e deciosinismos.

Numa palavra final: não venham dizer que juristas como Taruffo ou outros ressalvam que as tais regras de experiência não podem ser fruto das regras advindas da subjetividade do magistrado… Ah, bom. Elas viriam de onde, então? De um objetivismo filosófico?

Bem, paro por aqui. Caso contrário, vamos voltar a discutir a “ranidade da rã” em Aristóteles e, quem sabe, o ens creatum aquiniano, perfazendo uma volta à metafísica clássica, passando a acreditar em verdades ontológicas (não esqueçamos: direito é um fenômeno complexo; fosse fácil, seria periquete). Como não quero fazer isso, encerro por aqui a coluna.

Post scriptum: saiu o volume III da coleção Compreender Direito, desta vez tratando das Brechas da Lei (Editora Revista dos Tribunais).


[1] Para quem não sabe, esse personagem de Lewis Caroll é inspirado nos sofistas, porque dá às palavras o sentido que quer.

[2]  Cf. Streck, L.L. Hermeneutica Juridica e(m) Crise. 11ª. Ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2014, passim.

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