Histórico de desigualdade

Reduzir maioridade penal é retrocesso ao processo civilizatório

Autor

  • Welington Araujo de Arruda

    é advogado especialista em Combate à Lavagem de Dinheiro Tráfico de Seres Humanos e História da Filosofia; Pós Graduado em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Escola Paulista de Direito.

7 de abril de 2015, 8h35

Foi em 1830 que se instaurou no Brasil com o advento do primeiro Código Criminal do Império, a tradição Europeia de punição aos infratores de delitos. Esse contexto estendeu-se por décadas, tendo havido, inclusive, a inobservância da inimputabilidade do menor.

Apenas em 1890, no dia 11 de outubro, com a promulgação do Decreto 847, sob o comando do Chefe de Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil — General Manoel Deodoro da Fonseca — constituído pelo Exército e Armada, em nome da Nação, tendo ouvido o ministro dos Negócios da Justiça, houve o reconhecimento e a urgente necessidade de reformar o regime penal, oportunidade em que incluiu-se a preocupação específica à maioridade penal quanto à inimputabilidade.

Com o surgimento de tal perspectiva jurídico penal, aquele governo, que não era democrático, determinou a inimputabilidade absoluta aos menores de nove anos completos onde o objetivo principal e primário estava centrado na garantia e proteção do menor.

Proteger menores de idade sempre foi uma preocupação dos juristas, médicos e de toda a sociedade. Tanto assim, que no começo do século XX já se travava incansável luta de proteção aos poucos direitos dos menores de idade e foi nesse contexto que nasceu o primeiro Código de proteção aos menores. Foi em 12 de outubro de 1927 que criou-se, por meio do Decreto 17.943, o Código que ficou conhecido como Código Mello Matos, que ganhou esse nome por ter sido desenvolvido por uma comissão de juristas cujo líder era o Jurista José Cândido de Mello Matos. O Decreto visava precipuamente a proteção da criança, do adolescente e do infanto-juvenil que até então eram desprotegidos pela lei.

Ao longo de toda a história jurídica brasileira, incontáveis leis foram editadas e que direta ou indiretamente protegiam a criança e o adolescente, até chegarmos à Constituição de 1988, que trouxe em seu bojo a cláusula pétrea que visava proteger de forma indiscutível o menor, tendo esta, recentemente, sido jogada no ralo comum pelo Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional.

É importante analisar que a imputabilidade penal é o conjunto de condições pessoais atribuídas ao agente à capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível. Desta forma, a Constituinte, quando da elaboração da Carta Cidadã, entendeu como critério determinante que o menor de 18 anos não possui maturidade suficiente para responder pelos seus atos, mesmo que o seu reconhecimento dependa de aptidão biopsíquica para conhecer a ilicitude do fato quando cometido por ele para determinar esse entendimento.

Desta forma, segundo o artigo 228 da Constituição, os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, sujeitos às normas da legislação especial, ou seja, o texto deixou claro que ao menor não se aplicará o Código Penal e sim uma legislação especial e tal contexto constitucional está no bojo das cláusulas pétreas garantidas pelo artigo 60 da Constituição Federal.

Ademais, é importante ressaltar que as inimputabilidades devem ser analisadas com base em uma série de elementos como os fatores biológicos, psicológicos e biopsicológicos, respeitados as diferenças entre adultos e menores, já que o período juvenil, enquanto fenômeno biológico e fenômeno psicológico na adolescência, está-se em período de conclusão final da puberdade.

Indiscutível que as Cláusulas Pétreas não se limitam ao artigo 5º da Carta Constitucional, já que estão descritas em diversos artigos da Constituição Federal. Da mesma forma que é indiscutível que a Constituição Federal, redigida em um contexto democrático, impôs obrigações à família, à sociedade e ao Estado quanto à promoção da dignidade da pessoa humana para a criança e o adolescente na categoria de cidadãos. Repita-se, a Lei Maior prestigia a promoção da dignidade, a igualdade e a solidariedade.

A modificação acerca do atual entendimento constitucional da maioridade penal não é possível, mesmo porque, tem natureza de cláusula pétrea, como o Brasil, num âmbito maior, tornou-se signatário do Pacto de São José da Costa Rica, o que significa, dizer que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos — Pacto São José da Costa Rica — quando aprovado com observância de tais requisitos, ganhou para o Brasil, pleno status de garantia constitucional.

E, uma vez assinado o acordo e respeitando as obrigações ali contidas, o Brasil passou respeitar, ainda mais, o fato de que os adolescentes que cometam atos equiparados a ilícitos devem ser processados separadamente dos adultos, de modo que caso isso não ocorra, o Brasil estará contrariando diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana, assegurado pelo tratado, que garante aos jovens tratamento diferenciado, isentando-os de serem responsabilizados na esfera criminal.

Os adolescentes brasileiros são muito mais vítimas de crimes do que autores e no Brasil, se existe um risco, este reside na violência da periferia das grandes e médias cidades, já que dados mostram que 65% dos menores infratores vivem em família desorganizada, junto com a mãe abandonada pelo marido, que por vezes tem filhos de outras uniões também desfeitas e que luta para dar sobrevivência à sua prole.

Punir, pura e simplesmente o menor não gerará diminuição da incidência da violência no Brasil e estudar a proteção destinada às crianças, que procede da própria evolução dos direitos humanos, é uma obrigação social, por que não dizer, uma obrigação jurídica. Ser criança já não é apenas uma passagem para se alcançar o status de adulto, hoje, a criança é um sujeito de direitos, não um mero objeto de ações governamentais.

Desta forma, reduzir a maioridade penal representará um retrocesso ao processo civilizatório de desenvolvimento quanto à defesa, garantia e promoção do direito dos jovens no Brasil, de modo que não se pode enfrentar o problema aumentando a repressão, e devemos considerar que o Brasil tem um histórico socioeconômico de desigualdade e violência, o que só poderia gerar mais violência.

Essa onda de maioridade penal surgiu com base no pensamento social brasileiro de que aqui jaz a impunidade, mas o que não se questiona é que somos a segunda nação mundial em população carcerária. Não há é a mal punição. O Brasil pune, mas pune mal.

Gasta-se fortunas para punir no Brasil, mas se investissem esse dinheiro em escolas de tempo integral, à médio e longo prazo, sairia mais barato e com resultados muito melhores. Não faz sentido gastar tanto para colher frutos tão estragados.

Vale lembrar que a proposta de emenda constitucional 171/1993, recém aprovada pela CCJ não teve qualquer estudo jurídico, pelo contrário, no bojo das exposições de motivo fala-se basicamente em velho testamento, profeta Ezequiel, Davi e Golias, coloca-se de lado toda laicidade brasileira para tratar de questões bíblicas. O respeito às questões religiosas deve e deverão sempre existir, mas no âmbito da religiosidade e não da Constituição Federal que tornou o Brasil laico. A PEC foi elaborada em 1993 e não é embasada por análises, números e qualquer estatística ou dado jurídico. Repita-se, a principal fonte que sustenta a proposta é a bíblia.

De autoria do ex-deputado Benedito Domingos (PP-DF), o texto já tem 22 anos de existência e tem agradado e muito a bancada evangélica da Câmara, tendo ganhado força com o apoio dos parlamentares ex-militares que lá se encontram. Quanto à punição dos menores, o ECA já prevê seis medidas educativas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. Recomenda que a medida seja aplicada de acordo com a capacidade de cumpri-la, as circunstâncias do fato e a gravidade da infração.

Na esmagadora maioria, os adolescentes, que são privados de sua liberdade, não ficam em instituições preparadas para sua reeducação, pois acabam ficando em ambientes que reproduzem uma prisão comum. Além do mais, o ECA já prevê que o adolescente pode ficar até 9 anos em medidas socioeducativas, sendo três anos interno, três em semiliberdade e três em liberdade assistida, com o Estado acompanhando e ajudando a se reinserir na sociedade, ou seja, não adianta só endurecer as leis se o próprio Estado não as cumpre!

O adolescente marginalizado não surge ao acaso. Ele é fruto de um estado de injustiça social que gera e agrava a pobreza em que sobrevive grande parte da população.

A criminalidade aumenta ou diminui de acordo com as condições sociais e históricas em que os homens vivem, de modo que reduzir a maioridade e não resolver tais questões é transferir o problema. Para um Estado que buscar escusar de suas responsabilidades, torna-se mais fácil prender do que educar.

A educação é pedra fundamental para qualquer pessoa se tornar um cidadão, mas no Brasil, tornar-se um cidadão em sua plenitude é matéria difícil de ser concretizada, pois muitos jovens pobres são excluídos deste processo. Assim, puni-los com o encarceramento é tirar sua chance de se tornar um cidadão consciente de direitos e deveres, é assumir a própria incompetência do Estado em lhes assegurar esse direito básico que é a educação.

A violência e a desigualdade social não serão resolvidas com adoção de leis penais mais severas. O processo exige que sejam tomadas medidas capazes de romper com a banalização da violência e seu ciclo. Ações no campo da educação demonstram-se positivas na diminuição da vulnerabilidade de centenas de adolescentes ao crime e à violência.

Antes de debater a maioridade penal o Brasil deveria debater quem manda nas milícias; quem manda no narcotráfico; quem manda no tráfico de armas; quem manda nos grupos de extermínios; quem manda nas máquinas caça-níquel; quem explode caixas eletrônicos; quem trafica órgãos humanos; quem explora o tráfico de seres humanos; quem manda nas fronteiras; quem controla o desmatamento; quem controla o contrabando e o descaminho; quem controla a sonegação. Talvez, e só talvez, quando estas questões estiverem respondidas e resolvidas estejamos preparados para debater a redução da maioridade penal. O resto é ilusão, falácia, tapete, esconderijo de incompetência, ausência de responsabilidades, mídia, marketing, armadilha de caça de voto.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!