Direito Civil Atual

As cláusulas de raio nos contratos de shopping centers e o CDC (parte 2)

Autores

  • Larissa Maria de Moraes Leal

    é advogada professora de Direito Civil e de Direito do Consumidor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutora em Direito Privado pela mesma instituição. Foi leiloeira pública oficial.

  • Venceslau Tavares Costa Filho

    é advogado doutor em Direito pela UFPE professor de direito civil da UPE Vice-Presidente da Associação de Direito de Família e Sucessores – Seção Pernambuco (ADFAS-PE) e Diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

6 de abril de 2015, 8h00

Continuando as nossas observações trazidas na coluna anterior (clique aqui para ler), lembramos que um desdobramento relevante do tenant mix é a cláusula de raio, que tem sido alvo de alguma celeuma na doutrina, e consiste na vedação “do lojista-locatário de explorar outro estabelecimento do mesmo ramo, dentro de certa distância do shopping center, normalmente, dois quilômetros e meio, a não ser com expressa concordância do empreendedor”.[1]

Tal cláusula é normalmente prescrita nas normas gerais e complementares, no sentido de fixar uma limitação convencional indireta de concorrência. Busca-se, neste caso, garantir a continuidade e o estímulo à concorrência interna no empreendimento.

As primeiras cláusulas de raio precedem a existência dos shoppings centers, surgindo na década de 1930 nos EUA. Tendo em vista o contexto da chamada Grande Depressão, os proprietários de imóveis – para diminuir os custos fixos dos comerciantes em dificuldades – passaram a aceitar que a remuneração consistisse em uma participação na receita bruta dos locatários. Por isso, passaram a fazer uso das cláusulas de raio nos contratos de locação[2].

As cláusulas de raio tiveram sua gênese em contratos firmados nos EUA, no contexto de uma economia caracterizada por uma forte defesa estatal e institucional à livre iniciativa e à livre concorrência. Durante a grave recessão econômica daquela década de 30, os americanos, para garantir a eficiência dos contratos então realizados, optaram por considerar as cláusulas de raio como razoáveis e benéficas, haja vista as garantias contratuais de fidelidade e garantia de integridade dos alugueis percentuais.

Lembrando que a realização do tenant mix visa a atender o conjunto de interesses dos lojistas e do empreendedor do shopping center, convém lembrar que tais interesses comuns a todos os participantes não se confundem com os interesses individuais dos lojistas. É possível, inclusive, haver conflitos entre os interesses coletivos pertinentes ao shopping center e os interesses particulares de certos lojistas. Mas, neste caso, a solução razoável parece ser pela submissão dos interesses individuais aos interesses globais. A realização de tais interesses supraindividuais justifica a estipulação de limitações indiretas à concorrência, como um desdobramento natural da coligação contratual pertinente ao shopping center.

Em relações contratuais de organização, a função dos contratos reside na cooperação entre os participantes e não na competição entre eles ou, mais grave seria, na competição promovida pelo mesmo contratante contra o seu próprio empreendimento inserido no shopping center, a auto-concorrência.

A cláusula de raio, portanto, corresponde a “um efeito natural dos contratos de constituição e exploração dos centros comerciais, existem sempre como cláusula implícita e devem ser aplicadas, mesmo na ausência de estipulação expressa”[3].

A cláusula de raio, inerente ao tenant mix, impõe dever de abstenção, configurando cláusula de confiança entre todos os parceiros envolvidos no complexo contratual intrincado que é o empreendimento do shopping center. O raio no qual se estipula o dever de não concorrência beneficia todos os lojistas, pois agrega unicidade a uma das perspectivas maiores dos centros de compras que é a formação de um novo fundo de comércio agregado à marca do empreendimento e compartilhado por todos os contratantes.

Sendo o empreendimento de shopping center um ambiente negocial onde as partes pactuam solidariedade e cooperação com vistas ao sucesso global do empreendimento, presumindo que deste sucesso todos irão beneficiar-se, a cláusula de raio afigura-se como corolário da vedação do comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium).

A abstenção da prática de atos que promovam a concorrência é obrigação de raiz nos pactos que constituem os centros de compra. Sem ela haveria uma quebra da unidade de interesses entre o lojista e a administradora do shopping center, entre os próprios lojistas e entre estes e a associação de lojistas.

Essa conclusão vai ao encontro da tendência atual do direito privado contemporâneo. Com vistas a tutelar a confiança como base contratual, desenvolveu-se um alargamento do conceito de inexecução contratual. Neste sentido, o Código Civil alemão (BGB) passou a estruturar o seu direito pertinente ao descumprimento contratual a partir de um novo conceito: a violação do dever (Pflichtverletzung, § 280, I), após a ampla reforma do direito obrigacional empreendida nos anos de 2001 e 2002[4].

Esse expediente não estava previsto no texto do BGB antes da reforma e parece ter origem na Convenção de Viena sobre venda internacional de mercadorias. A finalidade da apropriação legal de violação do dever foi abarcar, de modo mais amplo, situações como as que envolvem obrigações semelhantes às decorrentes da cláusula de raio nas hipóteses de descumprimento, bem como de cumprimento imperfeito ou defeituoso[5].

Nos termos do atual parágrafo 280/I do BGB, a finalidade do contrato não mais se reduz às prestações que derivam do acordo de vontades, e passa a alcançar qualquer “dever proveniente de uma relação obrigacional”. Por isso, a violação de qualquer destes deveres pode importar em inadimplemento e, portanto, na imposição do dever de indenizar a parte prejudicada pela violação do dever.

A questão a ser investigada pode ser reduzida à seguinte indagação: a cláusula de não-concorrência causa prejuízo aos consumidores?

A proteção do consumidor consiste em direito fundamental, conforme o artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal: “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Desse modo, como efeito dessa localização topográfica da proteção do consumidor na Constituição, temos que a defesa ali conferida corresponde, simultaneamente, a um dever do Estado de promover este direito[6].

O Código de Defesa do Consumidor, ao dispor sobre a Política Nacional de Relações de Consumo, estipulou os seus objetivos as premissas sobre as quais essa defesa deve ser realizada. Merece destaque, neste momento, o princípio da harmonização dos interesses dos consumidores e fornecedores viabilizando o princípios nos quais se funda a ordem econômica nacional, coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e, por fim, o estudo constante das modificações do mercado de consumo.

De acordo com a Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce), o Brasil tinha, no final de 2013, 495 shopping centers em atividade e esse número cresce, em média, 8,3% ao ano. Em 2007, o Brasil contava com 363 shopping centers em todo o seu território, atualmente são mais de 500 unidades[7].

Não é possível negar a ampla receptividade que essa natureza de empreendimento tem no Brasil, por parte dos consumidores. Esse interesse revelado de parte dos consumidores, de adquirirem bens e serviços em ambientes artificialmente criados, não pode ser negligenciado. É uma evidência. E, como tal, deve ser preservada.

A preservação dos empreendimentos de shopping centers não pode ser refém de leituras de fortes cores ideológicas que tentem reverter, de modo autoritário, uma tendência da sociedade de consumo. Tanto os consumidores, como os fornecedores, devem receber informação e educação para integrarem o mercado de consumo (art. 4º, inciso IV, do CDC). De igual modo, os hábitos desenvolvidos por ambos devem ser preservados.

Nas palavras de Gladston Mamede, “quando se vence a compreensão amesquinhada do contrato, compreensão comum, ordinária e, infelizmente, habitual, um universo de questões se coloca para a análise e equação do jurista”, como, por exemplo, o fato dos contratos evidenciarem comportamentos humanos, sendo recortes feitos no universo das possibilidades de autodeterminação de cada indivíduo[8].

A quebra da cláusula de raio dissolveria a base negocial dos shopping centers, promovendo concorrência externa predatória. Ao fazê-lo, ao desafiar as bases de confiança e boa-fé do contrato que firmou, o lojista irá lançar efeitos maléficos em todo o empreendimento, alcançando, sem dúvidas, o consumidor interessado em realizar as suas contratações em ambientes que promovam sensação de segurança, bem-estar, fácil acesso e conforto.

Não há, para o consumidor, nenhum prejuízo decorrente da cláusula de não-concorrência ou cláusula de raio nos contratos de shopping center. Dado que essa cláusula não compromete a eticidade, a boa-fé ou a probidade que devem ser guardadas por todos os contratos, dela não podem decorrer efeitos maléficos externos ou internos.


[1] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Contrato de Shopping Center. Revista da EMERJ, v. 5, n. 18 (2002). Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, p. 223.
[2] CRISTOFARO, Pedro Paulo Salles. As Cláusulas de Raio em Shopping Centers e a Proteção à Livre Concorrência. Revista de Direito Renovar, v. 36 (set./dez., 2006). Rio de Janeiro: Renovar, p. 49-50.
[3] COMPARATO, Fábio Konder. As Cláusulas de Não-concorrência nos “Shopping Centers”. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 97 (jan./mar. 1995). São Paulo: RT, p.26.
[4] ZIMMERMANN, Reinhard. Breach of Contract and Remedies under the New German Law of Obligations. Saggi, conferenze e seminari, n. 48 (2002). Roma: Centro di studi e ricerche di diritto comparato e straniero, p. 08.
[5] LARDEUX, Gwendoline. Droits Civils Français et Allemand: entre Convergence Matérielle et Opposition Intellectuelle. Revue de la recherche juridique – Droit prospectif, n. 113 (2006-2). Marseille:PUAM, p. 39-40.
[6] MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 36.
[7] Cf. site da Abrasce, www.portaldoshopping.com.br, capturado em 27 de dezembro de 2014.
[8] MAMEDE, Gladston. Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2010, p. 55.

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