Processo Familiar

Os "corpos do rei" e a segurança jurídica:
o que esperar das cortes superiores?

Autor

  • Luiz Edson Fachin

    é sócio fundador do escritório Fachin Advogados Associados e sócio do Fachin Girardi Escritórios Associados. É pesquisador convidado do Instituto Max Planck (Alemanha) e professor titular de Direito Civil da UFPR.

5 de abril de 2015, 8h01

Spacca
É conhecida a elaboração de Ernest Kantorowicz que desenvolveu a teoria dos dois corpos do rei. De um lado, o corpo natural, calcado nas efemeridades humanas, na visão conjuntural e contingente inerentes ao agir e pensar humano. De outro lado, revela-se o corpo místico e político do rei, engendrado na idéia de verdade, legitimidade e perenidade. Esse quadro buscado por Kantorowicz na tradição medieval, metaforicamente, pode ser bem aplicado ao paradoxismo da segurança jurídica na contemporaneidade, nomeadamente nos litígios familiares.

Se, por um lado, a instabilidade do mundo nunca esteve tão evidente, com mudanças e relativizações de certezas a todo instante, por outro lado, nunca se ansiou tanto por um lócus de previsibilidade. Nessa equação quase que de oferta e procura, é certo que a previsibilidade jurídica que tanto se almeja vai ter seu preço deveras aumentado. E o ágio da segurança jurídica se materializa justamente no esforço que se exige daqueles que tem o dever de harmonizar as fontes e lidar, inafastavelmente, com as complexidades da hiper-modernidade.

Fato é que ao julgador fica a difícil tarefa de dar a melhor solução ao caso concreto, sem, com isso, extrapolar limites mínimos ou minar a já diminuta segurança jurídica existente. Neste contexto de incertezas, algumas medidas se apresentam para tentar garantir a previsibilidade possível ao sistema. Uma delas é a cada vez mais presente introdução dos precedentes no direito brasileiro, que acabou de se materializar por meio da sanção do novo Código de Processo Civil Brasileiro. Por certo, e muito compreensivelmente, há uma busca incessante bela estabilização. Entretanto, será mesmo que a mera introdução de um sistema de precedentes pode garantir a estabilidade desejada?

Não se pode negar o crescente diálogo entre as tradições jurídicas, de modo que o sistema de precedentes, característico do Common Law , pode ser de grande valia para o que se pretende no Civil Law. Em princípio, no entanto, é preciso que se crie um terreno favorável, o que significa criar uma jurisprudência de fato no Brasil, que não se resuma a ementas e dispositivo, bem como faz-se mister criar parâmetros para definir os precedentes. Da mesma forma, não pode essa sistemática simplesmente aniquilar a relevância da função jurisdicional de base. Estes são alguns termos essenciais para que o sistema de precedentes cumpra sua função no ordenamento jurídico pátrio.

Em verdade, não se quer uma jurisprudência de conjuntura, Igualmente, não se pretende a jurisprudência cega à realidade. Eis que aí reside o desafio da segurança jurídica no Brasil, isto é, no exato balancear entre a manutenção do previsível e a abertura de espaço para o imprevisível, um equilíbrio, enfim, entre os “dois corpos do rei”. Nesse influxo, o Direito de Família em muito tem para contribuir para o debate, afinal, tudo o que se almeja é a segurança às famílias, ao mesmo tempo em que paulatinamente surgem novos modelos familiares e novas discussões neste âmbito, sobretudo em função dos avanços da biotecnologia, demandando justiça.

Diversos são os exemplos dessa incidência privilegiada do Direito de Família na discussão da segurança jurídica, senão vejamos. A união estável entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, demonstra a necessária mudança da perspectiva hermenêutica, em prol do reconhecimento de um direito. Muito embora alguns setores possam considerar tal decisão demasiado ativista por parte do STF, fato é que não houve atentado à segurança jurídica nem mesmo quebra de previsibilidade, haja vista que a garantia de direitos fundamentais a todos, incluindo as minorias e grupos vulneráveis, é a tendência dos Tribunais e representa mandamento constitucional. O reconhecimento da união estável homoafetiva apenas seguiu tal lógica. Raciocínio semelhante pode se aplicar ao reconhecimento, para fins previdenciários, de uniões estáveis paralelas, de modo que também não se trata de uma afronta a segurança jurídica. Ademais, não se retiram direitos: é uma atribuição.

Por certo, as situações relacionadas ao direito de família acima apontadas coadunam com a idéia de segurança jurídica material, que prioriza a justiça social. A noção formalista de segurança jurídica, corolário do positivismo jurídico, não mais se adéqua ao atual estado da arte do direito. Nesta senda, a segurança jurídica material não prescinde da previsibilidade e coerência sistêmica, no entanto, amplia a percepção de mundo do direito para trazer para a noção de previsibilidade e segurança do ordenamento o ideal de bem comum e justiça social.

Nesse contexto complexo se espera, sobretudo do STF e do STJ, a consolidação da unidade possível ao sistema jurídico, que perpassa desde a formulação de acórdãos e ementas, até a nítida exposição das razões de decidir, de modo que haja preocupação com toda a decisão e não apenas com seu dispositivo. Isso é essencial para a solidificação da segurança jurídica que se almeja. Neste influxo, há que se admitir igualmente que o sentido da segurança jurídica não se resume à garantia das legítimas expectativas das partes, mas também pressupõe a previsibilidade da incidência material da legalidade constitucional. Isto porque jurisprudência não é apenas resultado, mas, principalmente, método.

Se na teorização de Kantorowicz os “dois corpos do rei” se encontram amalgamados, na superposição metafórica para o dilema da segurança jurídica não poderia ser diferente. O corpo contingencial e conjuntural da decisão não se separa do corpo perene e uno. Em suma, parece haver uma inconciliável contradição na pretensão de segurança jurídica. Contudo, o correto balancear desses dois corpos calcados na compreensão de segurança jurídica material pode fazer dessa aparente contradição o ritmo perfeito do andar jurisprudencial, que leva em conta o caso concreto e a hipercomplexidade da vida, sem deixar de perseguir, teleologicamente, a unidade e previsibilidade possível a fim de garantir a segurança. Sem dúvida, encontrar esse equilíbrio ideal não é tarefa fácil, mas é o horizonte que se faz necessário.

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