Observatório Constitucional

Segurança Pública e Justiça Criminal

Autor

  • Gilmar Ferreira Mendes

    é ministro do Supremo Tribunal Federal Doutor e Mestre em Direito pela University of Münster (Alemanha). Mestre e Bacharel em Direito (UnB). Docente permanente nos cursos de Graduação Pós-graduação lato sensu Mestrado e Doutorado em Direito do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

4 de abril de 2015, 10h53

Spacca
Vivenciamos no Brasil, em matéria de segurança pública, um trágico paradoxo. De um lado, os elevados índices de criminalidade e o sentimento generalizado de impunidade têm levado a população a um descrédito cada vez maior nas leis e nas instituições. De outra parte, nunca se prendeu tanto como nos últimos tempos, sem que isso tenha refletido em mais segurança no dia a dia.  

De acordo com a última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública[1], em 2013, registramos 53 mil mortes violentas, incluindo homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. No mesmo ano, foram notificados 50 mil estupros, cabendo considerar que nem todas as vítimas desse tipo de crime relatam o caso às autoridades policiais. Isso sem contar os assaltos à mão armada, os sequestros, a corrupção, o narcotráfico, entre tantos outros crimes igualmente graves.

Diante de cobranças da mídia e da opinião pública por soluções imediatas, a resposta das instituições tem se concentrado, em regra, no agravamento de penas e de seu regime de cumprimento, Não é incomum, aqui e em outros países, a chamada legislação simbólica. Em face do clamor público atiçado por algum crime grave, lança-se mão da fórmula mágica: “vamos aumentar a pena desse crime”; “vamos transformar a corrupção em crime hediondo” e assim por diante, sem se atentar para o fato, cada vez mais evidente, de que medidas dessa natureza pouco ou nada contribuem para a superação desse quadro.

Temos hoje, no país, 574 mil pessoas encarceradas em penitenciárias e cadeias públicas, em condições sub-humanas, sem nenhuma perspectiva de recuperação. Isso, contudo, não quer dizer que o sistema punitivo esteja funcionando a contento, já que cerca de 40% da população carcerária é de presos provisórios aguardando julgamento, muitos por longo tempo, às vezes anos, sem sequer condenação em primeira instância.

A questão prática que se coloca são indagações acerca de quantos inquéritos são transformados em denúncia, quantas denúncias resultam efetivamente em condenação e se as penas fixadas estão sendo adequadamente cumpridas. São indagações que dizem respeito, em grande parte, ao funcionamento do sistema de Justiça. Seria mais interessante, portanto, aproveitar momentos assim para um completo diagnóstico sobre a Justiça Criminal, que tem graves problemas de funcionalidade, para que se possa identificar e corrigir distorções.

Tenho sustentado que a falência crônica do sistema prisional é tema prioritário de segurança pública. Trata-se de assunto, todavia, indissociável de outros temas que também exigem especial atenção, como, por exemplo, a prevalência de prisões provisórias em detrimento de outras medidas, a excessiva demora nos julgamentos, a aplicação de penas privativas de liberdade a crimes de menor gravidade, enfim, a temas que, em última análise, dizem respeito à eficiência e racionalidade da Justiça Criminal e que, também, estão relacionados à questão da segurança pública.

Nesse sentido, podemos iniciar com algumas considerações sobre a cultura da prisão como remédio à impunidade e os efeitos adversos que se tem constatado. Cabe observar, desde logo, que a contrariedade à lei e à Constituição escancara-se diante das péssimas condições dos presídios, em situações que vão desde instalações inadequadas até maus-tratos, agressões sexuais, promiscuidade, corrupção e inúmeros abusos de autoridade, verdadeiras escolas do crime controladas por facções criminosas. Não é de se estranhar, portanto, que muitas dessas pessoas, quando soltas, voltam a praticar novos crimes, às vezes bem mais graves do que o cometido pela primeira vez.

Agregue-se a isso que a progressão de regime no cumprimento de penas no Brasil, concebida como modelo de reintegração do preso à sociedade, não passa de pura ilusão. Em razão da absoluta escassez de estabelecimentos prisionais apropriados para os regimes aberto e semiaberto, as penas acabam sendo cumpridas, na prática, em regime fechado, não raro em estabelecimentos sob o comando dos próprios presos, ou em prisão domiciliar sem nenhum tipo de fiscalização, como se constatou em recente audiência pública no Supremo Tribunal Federal.

Na outra ponta do problema, a evidenciar ainda mais a iniquidade do sistema, convivemos com o fato de que os denunciados que respondem a processo em liberdade acabam, muitas vezes, em razão da prioridade conferida a processos de denunciados presos, não sofrendo punição alguma. Com a excessiva demora no julgamento desses processos, em todas as instâncias, muitos crimes acabam atingidos pela prescrição. A extinção da punibilidade representa, nesses casos, uma grande derrota para o sistema e uma irreparável erosão na credibilidade da Justiça.

Sobre o modelo de prisão provisória, travamos uma luta intensa no Conselho Nacional de Justiça, concebendo, inclusive, o projeto de lei que resultou na Lei 12.403/2011, para que aprovássemos as medidas cautelares alternativas à prisão provisória. Até hoje, contudo, não se identificam os reflexos dessa alteração.

A toda hora deparamos, no STF, com situações de prisão provisória que poderia ter sido substituída por alguma medida alternativa. Há uma série de medidas cautelares previstas na referida Lei, entre elas, o monitoramento eletrônico, medida, contudo, ainda pouco utilizada e que, se adequadamente implantada, poderia reduzir, significativamente, a superlotação carcerária.

Ainda sobre o tema, tenho insistido, também, na apresentação do preso em flagrante ao juiz, em curto prazo, para que o magistrado possa avaliar, de forma mais eficaz, as condições em que foi realizada a prisão e se é de fato imprescindível a sua conversão em prisão preventiva. Trata-se de medida prevista em tratados internacionais já incorporados ao direito interno, mas que ainda encontra alguma resistência em sua aplicação, por razões atinentes, sobretudo, a dificuldades operacionais. Pensamos, todavia, que objeções dessa natureza poderiam ser superadas, por exemplo, com a dispensa da apresentação nos casos em que o juiz, quando da comunicação do flagrante, já puder aplicar, desde logo, alguma cautelar alternativa à prisão.

Há inúmeros casos de prisões provisórias com excesso de prazo, sem conclusão da instrução e sem sentença de primeiro grau. Muitos desses presos, quando sentenciados, acabam absolvidos ou condenados a penas alternativas, o que denota que o encarceramento no decorrer do processo, devido à demora no julgamento, acaba por se mostrar, nesses casos, muito mais grave que a própria pena, em clara dissonância com o princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, a demora no julgamento reflete, substancialmente, na própria pauta dos Tribunais Superiores, como revela o elevado número de habeas corpus em tramitação no Superior Tribunal de Justiça, aproximadamente 200 mil. Como grande parte desse acervo tem por objeto a concessão de liberdade provisória por excesso de prazo, mostra-se clara, de novo, a necessidade de se repensar não só o atual modelo de prisão cautelar, como, também, todo o sistema de Justiça Criminal. 

A Justiça Criminal é pressuposto imanente a qualquer política de segurança pública. Nenhum programa de redução da criminalidade terá eficácia se não levar em conta a efetividade de seu funcionamento. Partindo-se dessa premissa, é possível avançar no entendimento de que o aprimoramento da Justiça Criminal não é tema isolado de responsabilidade exclusiva do Poder Judiciário desta ou daquela unidade federativa. Um eficaz plano de melhorias do sistema deve englobar o trabalho harmônico de todos os entes estatais responsável pela segurança pública.

Há na Constituição Federal diversos dispositivos sobre segurança pública que indicam essa responsabilidade compartilhada, como a previsão de que a segurança pública é dever do Estado e direito e responsabilidade de todos (art. 144), exercida por intermédio da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Ferroviária Federal, das polícias civis e militares e dos corpos de bombeiros militares, a partir de lei que discipline sua organização e funcionamento de maneira a garantir a eficiência de suas atividades (art. 144, §7º). Prevê a Constituição, ainda, a criação, pelos Municípios, de guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações (art. 144, §8º).

Além disso, cumpre à União legislar privativamente sobre direito penal e processo penal (art. 22, I), sobre requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra (art. 22, III), sobre convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares (art. 22, XXI), sobre competência da polícia federal e das polícias rodoviária e ferroviária federais (art. 22, XXII).

União, Estados e Municípios detêm, portanto, nesse campo, atribuições próprias e conexas que podem e devem ser exercidas de forma coordenada com indispensável senso de cooperação. No caso dos Municípios, podemos citar, por exemplo, a possibilidade de atuação conjunta entre suas guardas municipais e as demais forças de segurança pública. Nesse contexto, um sistema integrado de segurança pública e Justiça Criminal poderia ser pensado, por exemplo, em termos de um federalismo cooperativo, cabendo a União assumir, em razão do seu vasto leque de responsabilidades nessa matéria, a responsabilidade de coordenar e organizar esse novo enfoque de atuação.

Todo esse quadro legitima o que aqui se propõe: é preciso uma estratégia global de segurança pública que contemple, com especial prioridade, o inadiável aprimoramento da Justiça Criminal. É preciso pensar, com urgência, em soluções que imprimam maior celeridade no julgamento das ações penais e uma completa reestruturação do sistema prisional.

Esse seria o caminho. O CNJ já vem fazendo isso, por exemplo, nas ações relativas a atos de improbidade, dando prioridade ao acompanhamento desses processos. É preciso verificar qual a estrutura adequada para as varas criminais, as condições de trabalho de juízes e servidores, os recursos matérias disponíveis, entre outros temas relevantes para um melhor funcionamento da Justiça Criminal. Os próprios juízes, a partir de suas experiências e das dificuldades enfrentadas no exercício da jurisdição criminal, muito poderiam contribuir com sugestões para melhoria do sistema.

Quando estávamos à frente do CNJ, firmamos, em 2010, com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Ministério da Justiça, a Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (ENASP), que teve como foco, inicialmente, os crimes de homicídio. Após a análise de 135 mil inquéritos que investigam homicídios dolosos instaurados no Brasil até o final de 2007, descobriu-se que apenas 43 mil foram concluídos. Dos concluídos, pouco mais de oito mil se transformaram em denúncia. Ou seja, mais de 80% dos inquéritos de homicídios foram arquivados. Com o conhecimento dessa realidade, foi possível estabelecer metas que hoje podem ser acompanhadas, em tempo real, nos sites do CNJ e do CMMP.

A partir dessa experiência, poderíamos pensar, em relação ao tema deste artigo, na ampliação do foco de atuação da ENASP, de forma a incluir em seu programa de trabalho, como meta prioritária, o mapeamento dos principais gargalos enfrentados pela Justiça Criminal, com a indicação de ações concretas que possam reduzir a morosidade nos julgamentos, bem como uma profunda reavaliação da cultura de prisões provisórias e dos regimes de cumprimento de penas. O CNJ e o CNMP muito poderão contribuir para as esperadas melhorias nessa área por meio de monitoramento conjunto e mais efetivo em relação a certos gargalos, coordenando, inclusive, o aporte de recursos.

É claro que ações dessa natureza, em âmbito nacional, devem contar com alguma fonte de recursos específicos. Nesse sentido, poderíamos, pensar, também, em algum fundo de segurança pública que pudesse atender prontamente, por exemplo, a situações mais sensíveis em Estados com notória carência de recursos.

Nessa linha, poderíamos pensar, ainda, em uma possível reformulação do Fundo Penitenciário (FUNPEN), gerido pelo Ministério da Justiça, com a sua transformação em fundo de segurança pública, com alguma forma de incremento em suas fontes de custeio, redefinição de suas finalidades e proibição de contingenciamento dos recursos disponíveis. É incompreensível que diante da falta de vagas no sistema prisional, os recursos FUNPEN ainda sejam passíveis de contingenciamentos, como infelizmente tem ocorrido. Dados recentes do Ministério da Justiça indicam que esse Fundo dispõe de cerca de R$ 1,065 bilhão e recebe, em média, R$ 300 milhões por ano. Em 2013, o FUNPEN foi autorizado a investir R$ 384,2 milhões, mas apenas 10,6% desse valor foi efetivamente empregado.

Enfim, a modernização do sistema de Justiça e uma completa reestruturação do sistema prisional são temas prioritários na busca de soluções que possam reverter, em grande parte, o atual quadro de insegurança pública. Nesse contexto, afigura-se fundamental que se proceda, sem mais tardar, a uma profunda reavaliação da estrutura e funcionamento da Justiça Criminal para que possamos ter, também nessa área, um Judiciário bem mais moderno e eficiente.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 8, 2014. 

Autores

  • é ministro do Supremo Tribunal Federal, professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB); Doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha; Membro Fundador do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); Membro da Comissão de Veneza e Membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (IDP).

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