Direito fundamental

Princípio da presunção de inocência é direito universal

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3 de abril de 2015, 6h24

Ao defender a prisão de condenados em primeiro grau, ou seja, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o juiz Sergio Moro e presidente da Associação de Juízes Federais (Ajufe) Antonio Cesar Bochenek estão rasgando a nossa Lei Maior — a Constituição da República Federativa do Brasil. Segundo os magistrados federais “A melhor solução é a de atribuir à sentença condenatória, para crimes graves em concreto, como grandes desvios de dinheiro público, uma eficácia imediata, independente do cabimento de recursos. A proposição não viola a presunção de inocência. Esta, um escudo contra punições prematuras, impede a imposição da prisão, salvo excepcionalmente, antes do julgamento. Mas não é esse o caso da proposta que ora se defende, de que, para crimes graves em concreto, seja imposta a prisão como regra a partir do primeiro julgamento, ainda que cabíveis recursos” (“O problema é o processo”, artigo publicado na página 2 de O Estado de S. Paulo, edição de domingo, 29 de março de 2015).

A Constituição Federal no Título que trata dos direitos e garantias fundamentais traz em seu bojo as chamadas cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas e, menos ainda, abolidas (artigo 60, parágrafo 4º, IV da CF) por constituir afronta aos próprios fundamentos do Estado democrático de direito.

A CF de 1988, chamada por Ulisses Guimarães de Constituição Cidadã, consagrou entre os seus princípios fundamentais o princípio da presunção de inocência, para alguns, princípio da não culpabilidade, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII da CF).

Antes que algum desavisado, desinformado ou mal-intencionado, afirme que o princípio da presunção de inocência é “coisa do Brasil para beneficiar criminosos”, “que vivemos no país da impunidade”, “que se trata de princípio bolivariano” e outras atrocidades e absurdos do gênero, é importante e forçoso destacar que o princípio da presunção de inocência, que remonta ao direito romano, foi consagrado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969. Trata-se, como se pode constatar, de um princípio universal devido sua natureza de direito fundamental.

Como bem salientam Rubens R R Casara e Antonio Pedro Melchior “uma das principais exigências inerentes à presunção de inocência é evitar a imposição de penas antecipadas”. (Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica vol. 1: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013).

Francesco Carrara elevou o princípio da presunção de inocência ao postulado fundamental da ciência processual e a pressupostos de todas as outras garantias do processo. (apud FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014).

Possivelmente, só mesmo em razão da cólera e da cegueira punitiva para os subscritores do ora combatido artigo insistirem em dizer que as suas proposições “não violam a presunção de inocência”.

Se como afirmam Sergio Moro, personalidade do ano escolhido pelo O Globo, e o presidente da Ajufe, Antônio Bochenek, “o problema é o processo”, é salutar, também, lembrar que a Constituição Federal assegura o devido processo legal (artigo 5º, inciso LVI), o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (artigo 5º, inciso LV da CF).

O jurista italiano Ferrajoli é preciso ao dizer que: “se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, dede que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena… – postula a presunção de inocência do imputado até  prova contrária decretada pela sentença definitiva de condenação. Trata-se, como afirmou Luigi Lucchini, de ‘um corolário lógico do fim racional consignado ao processo’ e também ‘a primeira e fundamental garantia que o procedimento assegura ao cidadão: presunção juris, como sói dizer-se, isto é, até prova contrária’. A culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada, e é a prova da culpa – ao invés da de inocência, presumida desde o início – que forma o objeto do juízo”. (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão…, ob. cit.)

É lamentável, estarrecedor e, até mesmo bizarro, ver o presidente da Ajufe subscrever com outro magistrado federal artigo em que “culpa” o processo e as garantias processuais pelos males da “justiça”. O processo e com ele os princípios garantistas e fundamentais devem ser vistos sob a ótica da Constituição Federal, mas também, diz Geraldo Prado, pela ótica político-institucional. Assim, dito pelo o eminente processualista, “o processo penal não é apenas o instrumento de composição do litígio penal mas, sobretudo, um instrumento político de participação, com maior ou menor intensidade, conforme evolua o nível de democratização da sociedade. Para tanto, afigura-se imprescindível a coordenação entre direito, processo e democracia, o que ocorre pelo desejável caminha da Constituição, porquanto, institucionalizando a proteção dos mencionados direitos, reconhece-se que somente pela via democrática atingirão sua plena efetividade”. (PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001).

Resta saber que processo desejam Moro e  Bochenek?

O processo, ilustres magistrados, como assevera Aury Lopes Júnior, “não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é o caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)”. (LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010).

Sinceramente, espero e desejo que “enquanto houver sol” os direitos e garantias fundamentais prevaleçam e, mesmo como diz a música, “quando não houver esperança, quando não restar nem ilusão”, ainda assim a Constituição Federal não seja rasgada.

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