Inércia legislativa

Omissão na lei impede punição contra discriminação por orientação sexual

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29 de setembro de 2014, 9h35

O Informativo 174 do Supremo Tribunal Federal traz, entre outras tantas, a seguinte notícia:

"Discriminação por orientação sexual: atipicidade e reprovabilidade

Ante a atipicidade da conduta, a 1ª Turma não recebeu denúncia oferecida contra Deputado Federal que teria publicado na rede social “twitter” manifestação de natureza discriminatória em relação aos homossexuais. A Turma destacou que o artigo 20 da Lei 7.716/1989 — assim como toda norma penal incriminadora — possui rol exaustivo de condutas tipificadas, cuja lista não contempla a discriminação decorrente de opção sexual (“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”). Nesse sentido, ressaltou que a clareza do ditame contido no art. 5º, XXXIX da CF impediria que se enquadrasse a conduta do deputado como crime, em que pesasse à sua reprovabilidade (“Art. 5º, XXXIX. Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”). O Ministro Roberto Barroso consignou que o comentário do parlamentar teria sido preconceituoso, de mau gosto e extremamente infeliz. Aduziu, entretanto, que a liberdade de expressão não existiria para proteger apenas aquilo que fosse humanista, de bom gosto ou inspirado. Ressaltou que seria razoável entender que o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) impusesse um mandamento ao legislador para que tipificasse condutas que envolvessem manifestações de ódio (“hate speech”). Ponderou que haveria um projeto de lei nesse sentido em discussão no Congresso Nacional. O Ministro Luiz Fux acrescentou que o STF, ao julgar a legitimação da união homoafetiva, entendera que a homoafetividade seria um traço da personalidade e que, portanto, ela não poderia trazer nenhum discrime, de sorte que a fala do parlamentar, ao mesmo tempo, ultrajaria o princípio da dignidade da pessoa humana e o da isonomia.

Inq 3590/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 12.8.2014. (Inq-3590)"

Trata-se de breve relatório referente a julgamento levado a efeito pela 1ª Turma daquele Supremo Tribunal Federal de denúncia oferecida pelo Procurador-Geral da República em desfavor de deputado federal que, em rede social, promoveu "manifestação de natureza discriminatória em relação a homossexuais". O representante do ‘Parquet’ Federal reclamou a condenação do acusado nas penas do artigo 20 da Lei 7.716/1989.

Como razões de defesa e contra os termos da mencionada denúncia, o envolvido sustentou (i) que a acusação em comento teve curso em face de perseguição que o mesmo estava a sofrer pela "simples interpretação teleológica da Bíblia" por ele realizada; (ii) que processo administrativo, oriundo de denúncia feita junto à Ouvidoria da Secretaria de Promoção da Igualdade Social (Seppir/PR), tramitou no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados com o mesmo objeto e foi endereçado à presidência daquela Casa, mas não prosperou; (iii) que há sim vinculação entre a manifestação realizada em rede social e o desempenho de mandato parlamentar, considerado o grupo social e a votação expressiva que o elegeu; (iv) que seu pronunciamento está em linha com a jurisprudência e naquilo quanto diz respeito à liberdade de expressão; e, (v) que não há conduta delituosa no ato praticado, "ante a falta de tipo incriminador da prática, induzimento ou incitação à discriminação sexual, tendo o legislador previsto, no artigo 20 da Lei 7.716/1989, apenas a de raça, cor, etnia ou procedência nacional."

No que diz respeito ao item (i) da aludida defesa, entendemos que a mesma está em desalinho com as manifestações contemporâneas que hoje diferentes setores da sociedade, atores sociais e líderes de Estado promovem contra e a propósito da interpretação canhestra que grupos realizam de textos religiosos com a finalidade única de defender determinados desvios de conduta e práticas de submissão empregadas e levadas a efeito contra terceiros ou grupos que simplesmente têm opiniões diferentes das suas.

Ilustrativamente, e a respeito do perigo em se promover tais interpretações, citamos as atrocidades recentemente cometidas por membros do denominado Estado Islâmico (Isis), sendo que, supostamente, tais atos encontrariam respaldo na doutrina e religião islâmica. Tais atos, aliás, foram objeto de repreensão por integrantes da própria comunidade islâmica, conforme nos reporta Peter Popham em artigo para o "The Independent", intitulado "Isis? What Crisis? Satirists take a swing at the caliphate", este veiculado em 15 de setembro de 2014.

Quanto a afirmação de defesa contida no item (ii) relatado, tem-se que a mesma também é de toda despropositada; a uma porquê o arquivamento de processo administrativo iniciado em Ouvidoria atrelada à Secretaria — à época presidida pelo acusado — não teria o condão de estender seus efeitos ao Poder Judiciário, e mais, porquê iniciada e encerrada em esfera política própria, onde interesses, debates e ideias são travadas em condições especialíssimas e específicas. A esse propósito, citamos manifestação do então ministro Nelson Hungria quanto a alegação de que determinada matéria — uma "resolução" votada pela Câmara dos Deputados — estaria supostamente fora da alçada de análise pelo Poder Judiciário[1]:

"Entendo que não é exata, assim formulada a pretensa imunidade do Poder Legislativo. Como muito bem acentuou o eminente ministro Relator, constitui hoje, ponto morto, que é irrelevante indagar se se trata, ou não, de ato político, para que seja excluída ou admitida a intervenção do Poder Judiciário. O que há de se indagar é se o ato, político ou não, lesa um direito individual, um interesse individual legalmente protegido."

O item (iii) da argumentação lançada em sede de contraposição à denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República nos parece ser um entendimento falho em dias atuais, pois em questionamento até o alcance e objeto da representatividade parlamentar.

Já, quanto aos itens (iv) e (v) do libelo apresentado temos que a 1ª Turma da Corte Suprema os considerou para fins de não recebimento à denúncia no Inquérito 3.590-DF. E a decisão e conclusão a que chegou o Colegiado está tecnicamente correta e imbuída de prudência, não obstante a imoralidade em que escudada a conduta adotada pelo parlamentar.

A correção daquela decisão reside nos posicionamentos vazados na linha de "que a liberdade de expressão não existe para proteger apenas aquilo que seja humanista, aquilo que seja de bom gosto ou aquilo que seja inspirado. (…), a liberdade de expressão é aquela que protege quem pensa diferente de nós." (ministro Luís Roberto Barroso); e, não constitui "o fato infração penal." (ministro relator Marco Aurélio), pois o tipo previsto no artigo 20 da Lei 7.716/1989 versa sobre crime de preconceito "considerada a raça, a cor, a etnia, a religião ou a procedência nacional, não contemplando a decorrente da opção sexual do cidadão ou da cidadã."

E assim concluiu aquele colegiado fazendo questão de destacar e reprovar a conduta do parlamentar, somando a isso o reclame por uma imposição, "um mandamento ao legislador para que tipificasse condutas que envolvam manifestações de ódio, de hate speech, (…). Mas a verdade que essa lei não existe. Existe até um projeto de lei em discussão no Congresso Nacional."

Não é de agora, aliás, que o Supremo Tribunal Federal se faz obrigado a destacar o quão prejudicial é para os jurisdicionados e cidadãos a verificação de inércia legislativa quanto a determinadas matérias que lhe são oferecidas para o crivo constitucional final, o que na hipótese de matéria criminal sequer poderia ser definida pela Corte e de maneira contextual, não obstante a expressa caracterização da omissão legislativa observada.

E tal responsabilidade em sanar flagrante omissão, quanto ao direito a indenização e a necessária criminalização às práticas de discriminação à orientação sexual, vem sendo doutrinariamente tratado em sentido ainda mais amplo, como por exemplo leciona COOK (2000 : 132)[2] no linha de que "Os Estados têm o dever de respeitar, proteger e cumprir as normas de igualdade, e, se fracassam no dever de cumpri-las, são legalmente responsáveis perante as vítimas de discriminação, por remediar as injustiças e evitar a recorrência do abuso."

Concluímos com as lições de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy[3] que, ao nos apresentar o pensamento de Hannah Arendt, faz o seguinte e precioso alerta, em tudo alcançando a ideia aqui buscada:

"Quanto se reduz o ser humano a um estado de necessidade bruta e de selvageria, desprovido de qualquer forma de proteção estatal, a agenda dos direitos humanos é um dado flutuante em um espaço inexistente. A inserção de todos os seres humanos, nesse âmbito de proteção, é a tarefa de nossa geração, que se realiza por medidas políticas e econômicas de emancipação e inserção. É, ao mesmo tempo, o nosso desafio, e a nossa redenção."


[1] ‘in’ Memória jurisprudencial : Ministro Nelson Hungria / FUCK, Luciano Felício. – Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2012, p.89

[2] ‘in’ Democracia, violência e injustiça : o Não-Estado de direito na América Latina / organizadores, Juan E. Méndez, Guillermo O’Donnell, Paulo Sérgio Pinheiro. COOK, Rebecca J., "Superando a Discriminação – Introdução". – São Paulo : Paz e Terra, 2000, p.132

[3] Consultor Jurídico – Embargos Culturais (coluna). "O pensamento de Hannah Arendt e os paradoxos dos direitos humanos". http://www.conjur.com.br/2014-set-14/embargos-culturais-pensamento-hannah-arendt-paradoxos-direitos-humanos, acesso em 15/09/2014

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