Constituição e Poder

Jogos de linguagem estabelecem
limites ao intérprete do Direito

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

29 de setembro de 2014, 13h52

Os jogos de linguagem formam um rede de significações previamente compartilhadas que vinculam a interpretação das palavras da lei.  Não se pode dizer qualquer coisa dos textos normativos porque o contexto e seus sentidos pré-fixados não permitem. Eis algumas possibilidades de título igualmente adequadas para a coluna de hoje.

Parece simples, mas para bem compreender a dimensão dessas afirmações é necessário investigar uma das passagens mais ricas da história da filosofia, especialmente a partir do final do século XIX quando o “avô” da filosofia analítica — Gottlob Frege — rompe com a ideia de que a linguagem é mero instrumento ou meio pelo qual se raciocina e passa a defender a tese da linguagem como universal, ou seja, linguagem como condição de possibilidade do pensamento e das “leis da verdade”.

A partir de Frege, e ainda no contexto da lógica analítica, Ludwig Wittgenstein, ao se deparar com os limites da semântica formal por ele defendida, acaba realizando uma revolução (em sentido próprio) do seu pensamento e promovendo a chamada reviravolta linguística e pragmática.

A pragmática linguística trabalha com uma teoria da significação baseada na veracidade e no uso dos  das proposições linguísticas em determinada situação de discurso, ambos dependentes do universo de sentido inserido nas regras de linguagem constituídas enquanto mediações do mundo da vida.

Essa tese fundamental, inicialmente arquitetada pelo “segundo” Wittgenstein, teve suas categorias consolidadas a partir do desvendar da intencionalidade na teoria dos atos de fala (J. Austin e J. Searle). Por ora, analisaremos as bases da superação da semântica realista pela pensamento lógico-analítico e a virada em torno da pragmática marcada pelos jogos de linguagem, com suas importantes implicações na teoria da interpretação jurídica. 

A primeira virada: a superação da semântica realista 
Para a semântica formal de Frege é a estrutura das frases (proposições linguísticas) que sustenta o significado, independentemente da referência externa no mundo real. Aqueles que acompanham a coluna já sabem que dizer “Getulio é um grande homem” é muito diferente de dizer “Getulio é um  homem grande”, pois o sentido é dado a partir das mudanças no chamado eixo sintagmático, o da combinação (clique aqui para ler a coluna do dia 25 de agosto).

Hoje, sabemos que isso é pouco, pois a mudança de sentido depende da estrutura em combinação com o contexto que sustenta a compreensão dessa mudança. De qualquer modo, o avanço é bastante significativo, pois dessa concepção resulta a inefabilidade semântica, ou seja, a impossibilidade de expressar diretamente a realidade por meio das palavras. Neste caso, o conteúdo/significado é produzido de maneira objetiva no âmbito do que Frege chama de universo do “sentido”, que estaria entre o signo (a frase) e a referência externa – objeto real.

Se as estruturas são os vetores determinantes do sentido, Frege entende que elas podem ser reproduzidas de forma lógica, em uma linguagem universal e perfeita, que serviria de parâmetro para a correção das línguas ordinárias. Essa linguagem seria uma metalinguagem universal. Rompe-se, assim,  com a a chamada semântica realista, de linhagem aristotélica, que defende a possibilidade de as palavras expressarem diretamente o objeto e não apenas o seu sentido linguístico.

Partindo desses pressupostos, Wittgenstein tomou como sua a tarefa de desenvolver a contribuição de Frege para a mudança paradigmática no pensar filosófico. Esse mister fica bastante evidente na filosofia exposta por ele em sua obra Tractatus Logico-Philosophicus onde, após as influências decisivas não apenas das teses de Frege, mas também de Russell[1], se encontra a suposição de que a estrutura lógica do arcabouço conceitual é determinada pelas formas lógicas dos objetos simples (notem, o sentido seria obtido a partir das formas lógicas, não por meio dos objetos diretamente).

Esses objetos simples são dados pela experiência imediata e entendidos como substancia única, fixa do mundo, mas, todavia, inefável – isto é, a existência individual e direta das coisas não é algo que possa ser dito, é inexprimível[2].

A estrutura lógica do mundo é, então, construída com base na interpretação dos dados imediatamente recebidos a partir da vivência. Desse modo, o mundo a ser compreendido é formado pela totalidade de objetos simples, sempre dependentes de complementação (insaturados) que só ganham significado numa proposição linguística.

Estabelecidas as premissas, Wittgenstein afirma a tese do espelhamento, baseada na noção de que a “forma lógica de uma proposição corresponde à forma lógica da realidade”, o que significa dizer que as propriedades estruturais da linguagem refletem as propriedades estruturais do mundo (teoria da propriedade interna da linguagem)[3].

É a partir desse conjunto de concepções que se entende a célebre afirmação contida nos Tractatus em 5.6: “Os limites da minha linguagem denotam os limites de meu mundo”[4].

A verdade é então pensada como o isomorfismo entre a estrutura do pensamento e a estrutura do mundo (estruturas interna e externa), isto é, ela consiste na “identidade estrutural entre esses dois tipos de relação”[5].

Apesar das críticas de que ainda estaria latente uma relação secundária com o mundo real e que, por isso, não haveria nas teses de Wittgenstein uma autêntica superação da semântica realista sustentada pela ideia de verdade como adequação do pensamento à coisa, não se pode ignorar que o Tractatus assume uma posição analítico-linguística por privilegiar a sentença sobre o nome à medida que deixa expresso que só a proposição tem sentido[6]

A segunda reviravolta: os jogos de linguagem
Sem desprezar a importância dessa primeira reviravolta linguística e suas implicações na teoria do direito – basta lembrar que a noção de uma metalinguagem ideal era categoria central por meio da qual se desenvolveu grande parte das análises dos pensadores vinculados ao positivismo lógico da Escola de Viena e juristas a ela ligados, como Hans Kelsen – o próprio Wittgenstein traçou as diretrizes para o caminho da pragmática.

Em sua obra Investigações filosóficas ele rompeu com suas conclusões anteriores e passou a defender a inversão da tese fundamental contida no Tractatus. Na nova perspectiva, não é mais a linguagem que é limitada pelo mundo, mas o mundo pela linguagem.

Seguindo a tese defendida pelo casal Hintikka, essa mudança na linguagem primordial da filosofia wittgensteiniana fez com que, no período de transição de seu pensamento, fosse necessário reforçar o papel das definições ostensivas, isto é: mostra-se o objeto para que o falante diga o que ele é.

Ao dizer o que o objeto é, na verdade, o falante diz o que ele compreende em um dado contexto de fala. Ao fazê-lo, ele enuncia regras fundamentais que determinam o uso desse objeto. Essas regras seriam, assim, a ponte entre linguagem e mundo, intermediárias no processo de representação[7].

Muitos problemas surgiram desta nova concepção, entre eles o da natureza e observância das regras, isto é, como era possível aferir se uma regra fornecida ostensivamente era cumprida?

A solução parece estar presente em seu pensamento maduro, especialmente no parágrafo 560 da obra Investigações filosóficas, no qual está presente a ideia de que o significado das expressões se revela em sua explicação, onde residem suas possibilidades de compreensão: se você quer compreender o uso da palavra ‘significação’, então verifique o que se chama de ‘explicação da significação’, diz o filósofo alemão[8].

Desse modo, quando uma explicação sobre algo é pedida para alguém, supõe-se que ele compreenda esse algo e, ao transmitir a significação de modo intersubjetivamente compreensível, acaba deixando evidente o uso que se faz da expressão linguística. O comportamento do interlocutor permite, ainda, que se diagnostique as regras que norteiam o uso dos atos de fala.

De maneira mais abrangente e realçando o caráter social da linguagem, Wittgenstein vislumbra que outro critério de referência para a observância ou não do uso de determinada regra linguística em uma comunidade está no amplo conjunto de atividades comuns dos homens dessa comunidade, conforme ele propõe no parágrafo 206 das Investigações Filosóficas.

Essa reflexão indica a ligação entre linguagem e ação – dizer e fazer – revelando o caráter dialógico e acional dos proferimentos linguísticos, bem como a ocorrência dos jogos de linguagem, elementos centrais que possibilitaram a chamada “reviravolta pragmática” na filosofia da linguagem[9].

O caráter acional dos proferimentos linguísticos é assumido porque o significado passa a depender de como os vocábulos são utilizados na linguagem, ou seja, a análise da significação das palavras deve levar em conta o contexto global da vida e dos usos das palavras[10].

Por sua vez, o contexto em que se desenvolve o discurso é determinado pelos jogos de linguagem ou formas práticas de vida, que se tornam o novo elo linguagem-mundo e equivalem a uma rede oculta, doadora de sentido e suporte para o significado das expressões linguísticas durante a comunicação, sendo compartilhada em uma comunidade de fala historicamente localizada. A possibilidade de uma comunicação eficaz depende de um consenso preliminar entre os falantes acerca da significação dos vocábulos e seu emprego, mesmo quando eles não são ditos (p. ex.: a afirmação de que um carro é vermelho só faz sentido porque se conhece as características da cor vermelha em um dado contexto de vida e também porque se sabe que ela não se confunde com a cor verde, azul ou amarela. Esse conjunto de significações não-ditas mas compartilhadas entre os interlocutores é que permitem a compreensão da ideia de “vermelho” também a partir do que ele não é).

Nessa perspectiva, os nexos entre significado e sua validez não estão relacionados à ligação linguagem-mundo, mas sim às conexões comparativas entre a validez das convenções e a validez social dos costumes, ou, ainda, à equiparação entre as regras gramaticais dos jogos de linguagem a normas de práticas sociais[11].

Sem ignorar a importância das contribuições da filosofia analítica e da lógica no estudo das estruturas normativas e sua interpretação, são muitas as implicações dessa virada paradigmática na teoria do direito. Primeiro porque caem por terra discursos processuais baseados na “verdade real”, marcados por nítida influência da semântica realista anterior à primeira virada lógico-analítica.

Depois porque se rompe definitivamente com as tradicionais teorias da interpretação fundadas em métodos que buscam justificar retoricamente o resultado alcançado. Desde então o sentido da lei é fundado nos jogos de linguagem prévios e presentes no contexto prático em que os falantes vivem.

Outra contribuição inestimável diz respeito à possibilidade de exercer certo controle do significado a ser atribuído ao texto normativo sem recair na artificial tentativa – das escolas positivistas exegéticas – de buscar um exato e real sentido da lei. Isso quer dizer que deve haver o controle da discricionariedade judicial e a vinculação do jurista às palavras da lei – sem que essa observância do texto legal signifique a adoção de um ponto de vista positivista – muito pelo contrário. Ora, na práxis jurídica atual isso se mostra imprescindível.

Wittgenstein deu um passo fundamente rumo à teoria da significação com o diagnóstico dos jogos de linguagem. Contudo, a negação do status teórico da filosofia e a ausência de um pensamento sistemático dos atos de fala deixaram importantes lacunas, mesmo no seio da pragmática. De outro lado, a problemática relacionada à decisão judicial é bem mais complexa, envolvendo o entendimento de premissas hermenêuticas. Temas para colunas vindouras.


[1] Cf. HINTIKKA, Jaakko; HINTIKKA, Merrill. Uma investigação sobre Wittgenstein. Trad. Enid Abreu Dobránsky. Campinas: Papirus, 1994. p. 21 e 32.
[2] Ibidem, p. 73-78 e 209.
[3] Ibidem. p. 163.
[4] WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. p. 111.
[6] Nesse sentido: TUGENDHAT, Ernest. Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem. Trad. Ronai Rocha. Ijuí: Unijuí, 2006. p. 185.
[7]  Ibidem, p. 247.
[8] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 146.
[9] HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos.  Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. (Col. Biblioteca Tempo Universitário).  p. 111.
[10] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta…, p. 139.
[11] HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico…, p. 118. 

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  • Brave

    é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.

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