Direito Comparado

A fabulosa descoberta de que existe um paraíso dos juristas (parte 1)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

24 de setembro de 2014, 14h33

Spacca
O Paraíso dos Juristas, ou simplesmente PJ, como é mais conhecido, localiza-se na ala ocidental, setor noroeste, nível dois dos territórios celestiais. Há outros prédios no nível 2, os quais se acham ocupados pelo Paraíso dos Economistas, dos Cientistas Sociais, dos Filósofos e de outros grupos ligados ao que, na Terra, se convencionou chamar de Humanidades, embora de entre os economistas haja um grupo dissidente que prefere se mudar para o nível 3, onde ficam as Exatas. O Paraíso dos Médicos situa-se no nível 1, juntamente com os religiosos e os filantropos. No nível zero estão as legiões de santos, mártires, anjos e arcanjos, enfim, as coortes celestes em permanente adoração ao Altíssimo.

A situação particularmente confortável dos médicos inspira alguma maledicência nos níveis mais baixos. Diz-se que houve uma intervenção pessoal de São Lucas em  favor de seus colegas de profissão. Os juristas apresentaram petição contra esse suposto privilégio da classe médica. Fundamentaram o pedido com o versículo da Primeira Epístola de São João (II:1) que diz ser Jesus Cristo o advogado dos homens junto ao Pai, o que, por interpretação analógica, lhes seria muito mais favorável do que a identidade profissional dos médicos com um dos apóstolos. Não é preciso dizer que a petição foi indeferida. Posto que o Todo Poderoso não precisasse prestar contas de Seus atos a ninguém, Ele resolveu fundamentar a decisão com a ausência de humildade dos peticionantes e com excesso de malícia de sua parte.

Muito bem, mas voltemos ao Paraíso dos Juristas e deixemos de lado as intrigas que, mesmo no céu, ainda se sucedem.

A edificação onde está sediado o PJ é enorme, mesmo para as dimensões celestiais. Como quase tudo no céu, não é possível identificar um único estilo arquitetônico. Cada geração deixou sua marca nos padrões construtivos. Há de tudo no edifício: barroco, rococó, maneirismo, neoclássico, gótico, Tudor e outros estilos mais modernos. Divisa-se uma construção principal, chamada carinhosamente de “A Mansão”, e outra, mais antiga e menor, que é conhecida por “Tribunal dos Mortos”, uma evidente homenagem aos juristas romanos Gaio, Papiniano, Paulo, Ulpiano e Modestino. Além de recordação da Lei das Citações, dos imperadores Teodósio II e Valentiniano III, esse nome tem um outro sentido: à semelhança do que descrevera Dante, n’A Divina Comédia, este é um espaço para os juristas que nasceram antes da revelação do Cristo  e que não conheceram, em vida, a graça. No entanto, por força de seus méritos e por suas virtudes, eles não poderiam ter sido lançados no Inferno e receberam o direito de frequentar um anexo do Paraíso. É lá que residem Cícero,  Quinto Múcio Scevola,  Lúcio Cássio Longino, Aulo Gélio e outros.

As dimensões gigantescas d’A Mansão contrastam com o número pequeno de ocupantes. As causas dessa pouca afluência de juristas ao Paraíso são várias. Citam-se algumas: a proximidade com o poder, a participação em eventos históricos nebulosos, a vaidade e um gosto muito acentuado por celebrar uma compra e venda  cujo objeto é ilícito (registre-se, no PJ prevalece a tese de Antonio Junqueira de Azevedo no sentido de que a licitude não é elemento essencial dos negócios jurídicos). Antes que o leitor pergunte sobre esse negócio ilícito, já se responde qual ele é: trata-se da compra e venda da alma.

A organização interna do PJ segue os padrões antigos e seguros da administração celestial. Cada paraíso conta com um administrador especialmente designado pela cúpula celestial.  O PJ é um caso único. Diferentemente de outros paraísos, há dois administradores: Santo Ivo de Kermartin, um franciscano de Ordem Terceira, nascido na Bretanha, que foi advogado dos injustiçados, e São Thomas Morus, outro advogado, Lord Chanceler de Henrique VIII, decapitado por se manter fiel a suas crenças religiosas. No caso de Morus, sua morte foi heroica, mesmo que ele tenha usado das melhores lições de Direito Civil sobre o silêncio para não ser condenado. O veto aos alienantes de alma, segundo dizem alguns, foi sugerido por ele. Seu veredicto só pôde ser dado porque uma testemunha, seu ex-assessor Richard Rich, cometeu perjúrio para condená-lo. Em troca da venda de sua alma, Rich ganhou o cargo de procurador-geral do País de Gales. Morus foi homenageado com um bom filme do ano de 1966, de Fred Zinnemann, que ganhou em português o título muito apropriado de O homem que não vendeu sua alma.

Os juristas do PJ possuem uma rotina não muito metódica. Em razão das diferentes denominações religiosas dos habitantes d’A Mansão, Morus e Ivo eliminaram as exigências de um rito de orações. Mas, é preciso reconhecer que a religião não é um tema dos mais empolgantes n’A Mansão. Ah, o que eles gostam mesmo de fazer é discutir suas teses, expor seus argumentos, rir de suas disputas passadas, ridicularizar antigos inimigos e a si próprios, agora que a eternidade está diante de todos. Eles também adoram passar o tempo (uma expressão bem contraditória em se tratando da dimensão onde se acham) na Biblioteca, uma imensa ala do prédio, com infinidade de obras dos últimos 2.400.

Todos, sem exceção, dedicam-se intensamente a escrever. Esse é um ponto que aproxima os juristas mortos de seus colegas vivos, que ainda caminham pela terra, enquanto não lhes vem tocar o ombro a Pálida Operária. O engraçado é que tanto os mortos quantos os vivos acreditam piamente que seus escritos serão lidos e que farão alguma diferença na vida das pessoas. Os vivos sentem a angústia de não conhecer se isso será realmente verdade. Bem, alguns dos mortos sabem qual era a triste resposta.

Nas quintas-feiras, na sala principal, com imensos sofás, algumas otomanas e mesas de carvalho maciço, os mais importantes juristas de Direito Privado reúnem-se semanalmente em pequenos grupos para discutir, bebericar néctar e degustar iguarias que só o espírito conhece. Cada dia da semana, é bom que se diga, é dedicado a um ramo do Direito. Em uma ocasião recente, houve um conflito entre os habitantes do PJ. Eles consideravam que os dias destinados a suas disciplinas eram insuficientes e desejavam ampliar seu tempo de ocupação da ala central d’A Mansão. O alvo predileto dos mais revoltados era, como sempre, a turma do Direito Civil. Os rebeldes consideravam que se dedicava tempo demais a essa matéria, em detrimento de outras muito mais importantes. Como não há ainda nos territórios celestiais a nova geração de civilistas, que consideram ser sua disciplina a culpada de todos os males do mundo e a responsável pelo atraso social, os habitantes atuais resistiram com energia e venceram a disputa. A quinta-feira ainda é dos civilistas.    

Eventualmente, um convidado de outro paraíso é recebido no PJ. Afinal, é preciso haver alguma interação entre juristas e não juristas, como sempre defende um dos mais  respeitados moradores do PJ, o austro-húngaro Hans Kelsen.  Outro dia ele foi contestado por um colega mais jovem, que disse ter sido ele o responsável pelo fechamento do Direito em si mesmo, sem estudar Filosofia, Sociologia e outras disciplinas não jurídicas. Kelsen sempre foi muito pacato e educado. Mas, além do gosto nada platônico pelas mulheres (ele era um namorador infatigável), outra característica pouco conhecida dele é sua dureza nos debates. Ele se divertia (e se diverte) com as discussões acadêmicas.  Nesse dia, ele desmoralizou o oponente e mostrou-lhe a introdução de sua Teoria pura do Direito, na qual está escrito que:

“A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. (…) Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito. Quanto a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. Isto parece-nos algo de per si evidente. Porém, um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como se  desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe ela está de satisfazer à exigência da pureza. De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quanto a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do

Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto”.[1]

Como um gesto de cordial vingança, Kelsen ofereceu ao colega um exemplar do livro Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito, de autoria de um brasileiro chamado Gabriel Nogueira Dias. Kelsen, que não teve tempo de concluir adequadamente uma teoria da interpretação, sofre muito com o que dizem sobre o que ele não disse…

Essas visitas interdisciplinares sempre foram bem recebidas no PJ. Na semana passada, o convidado foi Karl Kautsky, filósofo e teórico político marxista, que nasceu em Praga, no ano de 1854, então parte do glorioso Império Austro-Húngaro. Ele morou em Londres, onde conheceu Friedrich Engels e dele se tornou grande amigo. Kautsky foi um dos fundadores do Partido Social Democrata da Alemanha, o famoso SPD, e criou a famosa revista Die Neue Zeit, um dos mais importantes periódicos marxistas de todos os tempos.

A presença de Kautsky no Paraíso é mais um dos exemplos da insondável e sublime vontade do Todo Poderoso pois, apesar de comunista e ateu, Kautsky foi admitido nos territórios celestiais. Segundo fontes autorizadas do nível zero, Deus teria gostado muito de seu livro A origem do Cristianismo, no qual ele examinou com extremo rigor a figura do Cristo histórico.

Kautsky sempre foi um homem muito angustiado. Com seus óculos ovalados e a ampla calva, seu olhar traduz uma certa melancolia, que não passa despercebida até mesmo por um observador  menos atento. Seus amigos mais íntimos dizem que tudo isso acentuado pela ruptura com os colegas do SPD, em 1917, por discordar da participação alemã na Primeira Guerra Mundial. E, posteriormente, por sua luta com Vladmir Ilich Ulianov, o Lênin, que publicou um panfleto, que é um clássico da literatura comunista, intitulado A Revolução proletária e o renegado Kautsky. Embora Lênin tenha dito posteriormente que ele foi um “verdadeiro historiador marxista” e que sua obra é “um patrimônio do proletariado”.

Ao entrar no PJ, Kautsky foi bem recebido na roda de von Savigny.  O velho barão gostava de Kautsky, por considerá-lo autêntico e coerente. Ao lado de Savigny estavam suas companhias de sempre, seu ex-discípulo Rudolf von Jhering, o tímido Bernhard Windscheid, Georg Friedrich Pucht, um blac block da Escola Histórica de Savigny, e o germano-russo Andreas von Thur.

Era comovente observar a amizade de Windscheid e von Jhering, juristas tão diferentes, mas tão próximos. Ambos morreram em 1892, como se Deus não quisesse separá-los.

Von Jhering estava feliz ao exibir aos colegas as colunas escritas sobre ele pelo brasileiro Arnaldo Godoy, em uma certa revista eletrônica. Tobias Barreto, que também se encontrava na roda, as havia traduzido e lido para seu colega alemão. Humilde, Barreto omitira que também ele fora referido pelo conterrâneo em outras colunas.

Próximos ao sofá em estilo Chesterfield,  estavam o alemão Otto von Gierke e o austro-húngaro Anton Menger von Wolfensgrün, acompanhados do italiano Enrico Cimbali e de alguns juristas brasileiros, espanhóis e argentinos.

Gierke, nascido Otto Friedrich Gierke, foi transformado nobre (Adel) e elevado ao pariato prussiano em 1911, graças a seus esforços pelo fortalecimento dos valores germanísticos. Após isso, ele mudou seu nome para Otto von Gierke, como é mais conhecido em todo o mundo.

Já Menger pertencia à nobreza da Galícia (região que hoje pertence à Polônia e à Ucrânia) e ocupou importantes cargos na burocracia da Monarquia Dual, como membro da Dieta Imperial (o Parlamento austro-húngaro), reitor da Universidade de Viena, onde lecionou Processo Civil e Filosofia do Direito.

O debate seguia acalorado na roda de von Gierke e Menger. Os assuntos se sucediam. Um jurista espanhol comentava que deram o nome do austro-húngaro para o departamento de Direito Civil  de uma universidade de seu país. Um civilista brasileiro comentava como era enorme o número de citações a seu livro O Direito Civil e as classes populares despossuídas: uma crítica ao Projeto de Código Civil para o Reich

Alemão, que é mais conhecido por sua tradução espanhola (El Derecho Civil y los pobres).

Tudo caminhava bem até que Kaustky voltou seus olhos para Menger e o reconheceu. Pedindo licença aos interlocutores, ele se aproximou bruscamente de Menger e o interpelou: — “Meu caro  Anton Menger von Wolfensgrün, que surpresa encontrá-lo por aqui!”

A reação de Menger, que perdera o hábito de usar o sobrenome aristocrático, precedido do “von”, foi imediata. Sobre o que ocorreu em seguida, pede-se a paciência dos leitores. Na próxima semana, a história continuará.

 


[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p.1-2.

 

Autores

  • é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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