Direito de defesa

Delitos de agentes da repressão não têm natureza política (Parte I)

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23 de setembro de 2014, 8h15

Spacca
O debate sobre a Lei de Anistia continua em aberto. Ainda que exista sobre o tema uma decisão do Supremo Tribunal Federal (ainda não transitada em julgado), da Corte Interamericana de Direitos Humanos (caso Gomes Lund), e diversos pronunciamentos de tribunais pelo país, segue a indagação: a Lei 6.683/79 — posteriormente limitada pela EC 26/85 — anistiou os crimes praticados pelos defensores do regime militar contra os insurgentes? Ou limitou-se a excluir a punibilidade dos delitos praticados por opositores do regime, resistentes a um governo de exceção?

Pego carona em recente artigo publicado na Revista Eletrônica Conjur por Araujo Pinto e outros professores, mas para enfrentar o tema sob uma outra perspectiva. Não tratarei aqui da prescrição dos crimes em questão, ou da ausência de controle de convencionalidade pela Suprema Corte. 

Minha abordagem é mais modesta, e limita-se a analisar os termos da lei de Anistia, o texto explicitado na lei, para perguntar se os crimes dos agentes da repressão estavam — desde o inicio — abrangidos pela norma, ou seja, se algum dia foram passiveis de anistia.

A Lei 6.683/79 (Lei de Anistia) limita o beneficio aos crimes políticos e conexos, nos seguintes termos:

É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta ou Indireta, de funções vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.

Assim, a superação de debate exige definir o conceito de crime politico e de crime conexo. Se os delitos praticados pelos agentes da repressão estiverem contidos nestes termos, estarão anistiados, sob uma perspectiva técnica.

Comecemos a análise pelo conceito de crime politico.

Há muito a doutrina bate-se para fixar os contornos dogmáticos destes delitos, posicionando-se os autores em torno de três acepções: (i) teoria objetiva; (ii) teoria subjetiva; (iii) teoria mista[1].

Entende-se por objetiva a teoria que atrela a natureza política dos crimes unicamente aos bens jurídicos violados: modelo de Estado, ordem política e social, soberania, ou a estrutura organizacional de determinado regime. A teoria subjetiva remete a definição aos aspectos motivacionais do agente. A teoria mista, por sua vez, aponta como políticos os delitos contra bens jurídicos essenciais à ordem legal e constitucional, mas exige a caracterização da motivação política, a intenção de transformar as bases que sustentam determinado modelo de organização pública. Não basta a simples motivação, nem a afetação objetiva de bem jurídico político. Será a soma dos aspectos objetivo e subjetivo que caracterizará o delito em tela.

Como já oportunamente defendemos[2] a teoria mista/eclética parece a mais acertada, e acolhida pela jurisprudência pátria (STF, Rc 1468, Rel. Mauricio Correa, DJ 16/08/2000, sem grifos no original, STF, HC 73451, rel. Min. Mauricio Correa, DJ 06/06/1997, sem grifos no original, ROC 1470, rel. Carlos Velloso, HC nº 73.451-RJ, in DJU de 06.06.97 / Rel. Min. Mauricio Correa).

Assim, se assentada a compreensão de que crimes políticos se caracterizam pela afetação objetiva da ordem instituída, com a intenção de alterar um regime político, ficam evidentemente excluídos os crimes praticados por servidores desta mesma ordem instituída, com o objetivo de garantir sua manutenção e a vigência de seus valores.

Se crimes políticos objetivam “predominantemente destruir, modificar ou subverter a ordem política institucionalizada (unidade orgânica do Estado)” [3] por meio da turbação da segurança nacional e do modelo de Estado vigente, como apontar que os defensores oficiais desta mesma segurança, agindo para supostamente protegê-la, teriam praticados delitos desta natureza?

Em se tratando de crimes praticados por agentes de Estado no exercício de atividades repressivas, ilustrativo é o voto do ministro Célio Borja, ex-integrante desta Corte, nos autos da Extradição 446:

“Se verdadeiras as imputações, o extraditando teria causado a morte e torturado prisioneiros confiados à sua guarda, quando no exercício de funções públicas de relevo, em seu país. Tal conduta é punível pelo direito comum, não se constituindo em crime político, mas em abuso de autoridade, conduta arbitrária, ou em agravante da pena cominada” (Ext. 446, Rel. Min. Célio Borja, DJ 07/08/1997).

Assim, os delitos praticados pelos agentes da repressão não têm natureza política.

Resta saber se podem ser considerados conexos àqueles, tema que trataremos na próxima coluna. 


[1] PRADO, Luiz Régis; CARVALHO, Érika Mendes. Delito político e terrorismo: uma aproximação conceitual, RT, ano 89, v.771, janeiro 2000, p.425; SILVA, Carlos Canedo Gonçalves, Crimes políticos, Del Rey, 1993. 
[2] BOTTINI, P.; TAMASAUSKAS, I. Lei da Anistia: um debate imprescindível. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.77, p. 102-127, abr. 2009.
[3] PRADO, Luiz, Regis, op.cit., p.429

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