Licença-maternidade

Estado e município não podem disciplinar relação de emprego público

Autor

  • Gustavo Filipe Barbosa Garcia

    é livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidad de Sevilla.

20 de setembro de 2014, 7h47

Os direitos sociais, de natureza fundamental, englobam o direito de proteção à maternidade e à infância, nos termos do artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil.

Nesse sentido, o seu artigo 7º, inciso XVIII, assegura o direito de “licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias”.

O artigo 201, inciso II, por sua vez, determina que a previdência social deve atender “a proteção à maternidade, especialmente à gestante”.

No plano infraconstitucional, a Consolidação das Leis do Trabalho, no artigo 392, disciplina a licença-maternidade, com duração de 120 dias, a ser concedida pelo empregador, enquanto a Lei 8.213/1991, na esfera previdenciária, no artigo 71, dispõe sobre o salário-maternidade, o qual é devido durante o mesmo período.

Os direitos em questão, embora previstos constitucionalmente, podem ser ampliados por meio de norma jurídica infraconstitucional, que vise à melhoria da condição social das empregadas urbana ou rural, atendendo ao disposto no artigo 7º, caput, da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, a Lei 11.770/2008 institui o Programa Empresa Cidadã, que se destina a prorrogar por 60 dias a duração da licença-maternidade prevista no inciso XVIII do artigo 7º da Constituição Federal de 1988[1].

Especificamente quanto ao tema aqui estudado, cabe salientar que o artigo 2º do referido diploma legal autoriza a administração pública, direta, indireta e fundacional a instituir programa que garanta prorrogação da licença-maternidade para suas servidoras.

Com isso, há casos em que a lei é aprovada, por exemplo, por um estado ou município, estabelecendo o direito de prorrogação da licença-maternidade para as servidoras publicas com regime estatutário.

Discute-se, assim, quanto à possibilidade de se assegurar esse mesmo direito também à servidora pública regida pela legislação trabalhista, estendendo o comando normativo decorrente de lei estadual ou municipal.

A respeito dessa importante questão, na jurisprudência, cabe fazer menção ao seguinte julgado do Tribunal Superior do Trabalho:

“LICENÇA MATERNIDADE. 180 DIAS. LEI COMPLEMENTAR 1.054/2008. EMPREGADA CONTRATADA PELO REGIME DA CLT. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. OFENSA. A Lei Complementar nº 1054/2008 prevê a concessão de licença maternidade de 180 a funcionárias gestantes, submetidas ao regime estatutário (art. 4º). Ocorre que a distinção estabelecida no artigo 2º da LC 1.054/2008 fere o princípio da isonomia e o art. 2º da Lei 11.770/08, que não traz tal distinção. Não há, portanto, como dar efetividade a norma que contém tal discriminação, pois possibilita ao reclamado conceder tempos de afastamento diversos pela mesma modalidade de licença, em relação a empregados sob regime da CLT e sob regime estatutário, tendo em vista que a finalidade da licença-maternidade é a mesma nas duas modalidades de contratação, a proteção da criança. O direito fundamental à saúde, em conjunto com a proteção à trabalhadora mãe e à criança, torna inviável se entender que norma municipal alcance apenas um espectro de mães e filhos, já que tal entendimento não se suporta diante da leitura, ainda, dos arts. 7º e 37 da Constituição Federal. O direito, inclusive, não deve ser considerado tão-somente como um direito da mãe, e sim da criança, de ter ao seu lado, pelo período que a norma legal entendeu apto à proteção de sua saúde, a presença daquela que lhe proverá a necessidade alimentar como também a psicológica, que por certo torna a sociedade mais equilibrada e justa. Recurso se revista conhecido e provido.” (TST, 6ª T., RR – 71-08.2013.5.02.0085, Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, DEJT 01.07.2014).

Apesar dos louváveis objetivos de assegurar a igualdade e também de afastar a discriminação entre servidoras públicas regidas por estatuto e pela legislação trabalhista, deve-se lembrar que, consoante o artigo 22, inciso I, da Constituição da República, compete privativamente à União legislar sobre Direito do Trabalho. O que se admite, conforme o parágrafo único do artigo 22, excepcionalmente, é que a lei complementar autorize os estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas no mencionado dispositivo.

Desse modo, no caso de servidores públicos regidos pelo Direito do Trabalho, a rigor, salvo a exceção mencionada, não há competência legislativa para o estado ou o município disciplinar a relação de emprego público.

Sobre a matéria, destaca-se a seguinte decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal:

“Direito do Trabalho: Legislação federal sobre reajuste de salário (‘gatilho salarial’): incidência direta sobre as relações contratuais trabalhistas do Estado-membro e suas autarquias. No âmbito da competência privativa da União para legislar sobre Direito do Trabalho – que abrange as normas de reajuste salarial compulsório – a lei federal incide diretamente sobre as relações contratuais dos servidores dos Estados, dos Municípios e das respectivas autarquias: uma coisa é repelir – por força da autonomia do Estado ou da vedação de vinculações remuneratórias –, que a legislação local possa atrelar os ganhos dos servidores estaduais, estatutários ou não, a vencimentos da União ou índices federais de qualquer sorte. Outra coisa bem diversa é afirmar a incidência direta sobre os salários de servidores locais, regidos pelo Direito do Trabalho, de lei federal sobre reajustes salariais: aqui, o problema não é de vinculação; nem de usurpação ou renúncia indevida à autonomia do Estado; é, sim, de competência da União para legislar sobre Direito do Trabalho” (STF, Tribunal Pleno, RE 164.715/MG, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.06.1996, DJ 21.02.1997).

Logo, é possível entender que a própria Constituição impede a extensão do direito, previsto em lei estadual ou municipal, para empregados públicos, regidos pelo Direito do Trabalho.

Ademais, não caberia ao Poder Judiciário, no exercício da jurisdição, ao decidir o conflito social em concreto, por meio da aplicação do Direito em vigor, ampliar o preceito legislativo (estadual ou municipal) que, de modo expresso, disciplina apenas a relação jurídica entre a Administração Pública e os servidores estatutários (estaduais ou municipais).

Ou seja, mesmo sob o fundamento de se pretender concretizar a justiça, e com base em princípios, não haveria legitimidade democrática na decisão judicial que, ao final, acaba assumindo o papel do legislador, ao assegurar o direito em favor de sujeitos não previstos na lei própria.

Como se pode observar, a questão possui nítido enfoque constitucional, podendo envolver aspectos do ativismo judicial, bem como dos limites da jurisdição em face de outros poderes da República, merecendo, assim, o aprofundamento de seu debate.


[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 1045-1051.

Autores

  • é livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidad de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira nº 27. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Professor Universitário em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Advogado e Consultor Jurídico. Foi Juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, Procurador do Trabalho do Ministério Público da União e Auditor Fiscal do Trabalho.

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