Memória e Verdade

Não há anistia para crimes contra a humanidade (Parte I)

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15 de setembro de 2014, 13h45

A justiça de transição brasileira atravessa um momento de extrema importância. Anos depois do estabelecimento do Estado Democrático de Direito com a Constituição de 1988, o Poder Judiciário brasileiro se transformou em arena de permanentes debates sobre o sentido e a extensão da Lei de Anistia (Lei 6.683/1979). No centro dos debates, a existência e a ilegitimidade de uma auto-anistia aos agentes da repressão. Se, nas primeiras décadas de nossa democracia, o Judiciário foi poucas vezes demandado a discutir o tema, após 2008 foi sucessivamente chamado a enfrentar a questão: o que o direito tem a dizer sobre violações tão graves, praticadas de modo sistemático pelo Estado aparelhado para torturar, matar, desaparecer, sequestrar, violar os seus opositores? Como nosso Poder Judiciário interpreta a demanda pela responsabilização de agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade, cujas consequências ultrapassam as pessoas das vítimas diretas e golpeiam toda a sociedade e suas futuras gerações?

De um modo geral, a resposta tem sido decepcionante, ainda que, necessário registrar, já tenham começado a brilhar algumas fissuras na monolítica muralha judicial brasileira. O foco deste artigo — que será dividido em duas partes — é evidenciar alguns absurdos que têm sido lançados a título de fundamento das decisões judiciais e que têm buscado na anistia o que ela tem de esquecimento e impunidade. Mas antes não podemos deixar de assinalar a grande vitória que representou para o aprofundamento democrático brasileiro a recente decisão da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, decisão que negou o habeas corpus pedido pelos denunciados pela morte e desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, com o fundamento de que os crimes contra a humanidade não estão abrangidos pela Lei de Anistia. É a primeira vez que se conseguiu romper a barreira da segunda instância do Judiciário para que finalmente se possa levar adiante no Brasil a responsabilização judicial por esses crimes, imprescritíveis por natureza, como bem reconheceu o magistrado de primeira instância Caio Márcio Guterres Taranto, da 4ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, seguindo o entendimento da juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, da 6ª Vara Federal Criminal da mesma seção judiciária, que dias antes havia aceitado a denúncia relativa ao caso Riocentro.

Foram necessários 50 anos após o golpe de Estado de 1964 para que o Poder Judiciário brasileiro começasse a cumprir adequadamente o seu papel na justiça de transição do país. Mas o que temos é apenas o início, pois a balança ainda pende desafortunadamente para a negação judicial da apuração dos crimes da ditadura. Apesar de não ter encerrado o debate, já que não fez coisa julgada (pendem embargos declaratórios), a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153 ainda continua a influenciar negativamente a atuação judicial sobre este tema. Vivemos, em verdade, um novo debate para o direito democrático: até onde vão os limites do poder de anistiar em um Estado Democrático de Direito?

Lembremos que tornando este cenário ainda mais polêmico e incerto está a justa condenação sofrida pelo Brasil no caso Gomes Lund e outros (caso Guerrilha do Araguaia) junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos. E isto no mesmo ano em que o STF decidiu pela permanência da interpretação da Lei de Anistia que bloqueia a investigação e responsabilização dos crimes da ditadura. O fato é que a decisão da Corte Internacional veio após a decisão do STF, a ela fez referência e expressamente a censurou, afirmando que: “não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do direito internacional”.

Importante ter claro que a controvérsia suscitada não é em relação a todo histórico da Lei de Anistia. Apesar do contexto autoritário que assistiu ao surgimento da Lei 6.683/79, tal lei foi mesmo um importante marco de início do processo de abertura e redemocratização, permitindo a volta dos exilados e dando o pretexto para a libertação dos presos políticos, mesmo dos que não foram formalmente anistiados, já que condenados pela participação nos chamados “crimes de sangue”. O que afirmamos, em acordo com o posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é que a anistia não pode ser válida para agentes que praticaram crimes contra a humanidade, ou seja, quaisquer interpretações que busquem estendê-la para esses casos, para usar os termos da decisão da Corte Internacional, “carecem de efeitos jurídicos”.   

Enquanto não acontece o necessário controle de convencionalidade por parte do STF, persistem os efeitos perniciosos da decisão tomada na ADPF 153, perniciosos por três motivos: pelo erro dos seus fundamentos[1], pelo resultado ao qual chegou e por ter servido de pretexto e de fundamento explícito a outras decisões judiciais que vêm colecionando um verdadeiro caleidoscópio de argumentos desprovidos de consistência e coerência.

Anistia e direito à memória e à verdade
Uma das decisões mais recentes foi tomada pelo Superior Tribunal de Justiça, e que já conta com dois votos. Trata-se de recurso especial (RESP 1.434.498) interposto por Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante da OBAN e número um nas listas de denúncias de tortura formuladas por ex-perseguidos políticos, para reformar a decisão da justiça paulista que o condenou, para efeitos declaratórios e na esfera cível, a ser reconhecido como torturador perante os membros da família Teles.

A ministra Nancy Andrighi, relatora, deu provimento ao recurso, no que foi seguida pelo ministro João Otávio de Noronha. O voto lançado pela relatora apresenta sérios problemas em quatro pontos principais. Primeiramente, repete o falseamento histórico que esteve presente em alguns votos na ADPF 153 ao afirmar que os agentes da ditadura “foram legitimamente perdoados pela sociedade”. Ora, a incrível mobilização popular em prol da anistia entre os anos de 1974 e 1979 em nenhum momento pediu a anistia a torturadores, pelo contrário, constava expressamente dos resultados das plenárias dos Comitês Brasileiros de Anistia a investigação e responsabilização dos crimes praticados pelos agentes da ditadura. A anistia “ampla” era para alcançar os presos políticos que participaram da resistência armada e que, no fim, não foram mesmo anistiados. Estender a anistia aos torturadores foi uma imposição do governo ditatorial, ainda que na forma da expressão esotérica dos “crimes conexos”. Como perdoar o que não foi apurado e conhecido?   

Em segundo lugar, a decisão da Ministra, pelos seus argumentos, assume a existência de uma “anistia em branco”. Assim procedendo, o Judiciário sequer analisa se a suposta conduta delitiva está ou não enquadrada na hipótese de anistia: ela incide sobre crimes desconhecidos, que sequer foram investigados. Os que foram tidos pela ditadura como criminosos políticos, e que na democracia devem ser considerados resistentes, além de toda a violência ilegal e bárbara que sofreram, foram objeto de denúncias, investigações, julgamentos e sanções, para então poderem obter a anistia. Assim como a sanção penal, a anistia é necessariamente individual e concreta, daí a anistia em branco ser uma afronta à legalidade.

Em terceiro lugar, não há nenhum elemento na lei de 1979, na Constituição, ou na decisão do STF, que dê suporte à extensão de efeitos da anistia penal à esfera civil. O que está em questão é o próprio sentido do que seja uma decisão judicial em sede de ação declaratória: conhecer e certificar uma situação jurídica preexistente à própria decisão, visando à certeza jurídica. Como tal, e nesse sentido, essa situação jurídica, enquanto estado de coisas preexistente, está na base de qualquer outra decisão, seja administrativa ou judicial, em qualquer processo de conhecimento. E mesmo na base de processos administrativos ou judiciais, de caráter cognitivo, que visem à reparação pelo Estado às vítimas, atingidas em decorrência de sua motivação política, por atos de exceção, praticados por meio de ação, omissão ou com a tolerância de agentes estatais, no período que vai de 1946 a 1988, nos termos do ADCT. Afinal, para a autoridade administrativa ou judicial decidir acerca da reparação, em consequência da anistia, perante o Estado, é preciso conhecer em sentido jurídico, ou seja, certificar com efeitos declaratórios se o requerente foi atingido, por conta de sua motivação política, por ações praticadas por agentes de Estado, fundadas em atos de exceção.

Recusar-se a declarar se os autores sofreram, com fundamento nos atos de exceção, por ação, omissão ou tolerância de determinado agente do Estado, em determinada situação, etc., viola a Constituição, em seus artigos 8º e 9º do ADCT, além de configurar recusa de jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV). Do mesmo modo, tal recusa viola as leis federais referentes ao direito à reparação constitucionalmente previsto, ou seja, Leis 9.140/1995 e 10.559/2002. O fato de o Estado assumir para si o dever de reparação nesses casos não impede, quanto menos proíbe, averiguar em que circunstâncias alguém alega ter sofrido, nos termos do ADCT e da legislação vigente, com os atos de exceção e suas consequências.

Ao contrário do que disse a ministra Nancy Andrighi em seu voto, o conhecimento dessas circunstâncias e a certificação delas, com efeitos declaratórios, é condição para o Estado cumprir seu dever constitucional de anistia e de reparação. Assim o quarto ponto problemático dos fundamentos da sua decisão é o que invoca o “direito ao esquecimento”. Se ele existe, certamente não se refere ao conhecimento das graves violações contra os direitos humanos. Ao contrário, tanto a Constituição quanto a legislação posterior, com especial ênfase as leis de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) e de criação da Comissão Nacional da Verdade (Lei 12.528/2011), afirmam a existência de um direito à verdade e à memória histórica (artigo 1º da Lei 12.528/2011), e estabelecem restrição a vedação de acesso a qualquer documento ou informação relacionado a violações contra os direitos humanos (artigo 21, parágrafo único, Lei 12.527/2011). Conhecer tais fatos é algo que não se separa do conhecimento de quem foram os agentes envolvidos — assim como suas responsabilidades — e as suas vítimas. Invocar o “direito ao esquecimento” em um caso como este cria um perigoso precedente que pode ser utilizado para quaisquer outras graves violações de direitos humanos que venham a ser praticadas, e que, pela sua própria natureza demandam a sua memória, não para a perpetuação do ressentimento ou para o alimento da vingança, como insinuou a Ministra em sua decisão ao apontar a anistia como o que “nos libertou das amarras da vingança”, mas sim para que, ao mesmo tempo, se faça a justiça (não vingança) a crimes imprescritíveis  e para que não se repitam.


[1] Para uma exploração mais detalhada desses equívocos ver: MEYER, Emilio Peluso Neder. CATTONI, Marcelo. Anistia, história constitucional e direitos humanos: o Brasil entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In CATTONI, Marcelo (org.). Constitucionalismo e História do Direito. Belo Horizonte: Pergamum, 2011, p. 249-288. MEYER, Emilio Peluso Neder. Ditadura e Responsabilização – elementos para uma justiça de transição no Brasil. Belo Horizonte: Arraes, 2012; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito – perspectiva teórico-comparativa e análise do caso brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2012; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira. In: Wilson Ramos Filho. (Org.). Trabalho e Regulação – as lutas sociais e as condições materiais da democracia. Belo Horizonte-MG: Fórum, 2012, v. 1, p. 129-177; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; CASTRO, Ricardo Silveira. Justiça de Transição e Poder Judiciário brasileiro – a barreira da Lei de Anistia para a responsabilização dos crimes da ditadura civil-militar no Brasil. Revista de Estudos Criminais, n.53, p.50-87; VENTURA, Deisy. A Interpretação judicial da Lei de Anistia brasileira e o Direito internacional. In: PAYNE, Leigh; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo (orgs.). A Anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011. p.308-34; PAIXÃO, Cristiano. The protection of rights in the Brazilian transition: amnesty law, violations of human rights and constitutional form (01. September 2014), in forum historiae iuris http://www.forhistiur.de/en/2014-08-paixao/.

*A segunda parte do artigo foi publicada na terça-feira (16/9)

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