Constituição e Poder

Urgência popular nas proposições aproxima Congresso e sociedade

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

15 de setembro de 2014, 21h29

Já há algum tempo temos presenciado a crise de nossa democracia representativa. Na coluna do dia 16 de junho, procurei demonstrar como a combinação entre presidencialismo de coalização e modelo estatal típico de Bem-Estar Social promoveu forte dominação da agenda parlamentar pelo Executivo. Tudo isso no contexto de um “mundo sem limites”, marcado pelo individualismo onde regras gerais e abstratas apresentam déficits de legitimidade. Terminei propondo que era preciso rearticular as instituições da democracia representativa com mecanismos de democracia participativa, de modo a oxigenar (não negar e muito menos eliminar) a esfera política.

Partindo dessas considerações, a coluna de hoje analisa os principais aspectos da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 15/2013, a qual institui a urgência constitucional no processo legislativo pela via da iniciativa popular, conferindo maior celeridade e efetividade na tramitação de proposições que atendam às demandas populares.

Regime democrático na constituição de 1988
Em contraste com a democracia direta dos antigos, de índole coletivista e indiferente aos direitos subjetivos, marcada por instabilidade política e populismo nas deliberações, a democracia representativa dos modernos é um modo de aprimoramento do próprio ideal democrático. Diante de nações com grande extensão territorial e de uma sociedade com enorme contingente populacional, a representatividade consegue aliar a modernidade social na qual se forma o Estado com a soberania enquanto poder popular[1]. Por meio dela, a noção de mandato foge da contratualística clássica – mandato imperativo – e ganha força enquanto autorização aos eleitos para que exerçam a arte de bem governar, com autonomia e responsabilidade, levando em consideração a complexidade das questões políticas e as exigências de busca de entendimentos.

Essa é, sem dúvida, a primeira face do regime democrático brasileiro. Contudo, para evitar excessivo distanciamento e não recair na concepção de que a soberania popular emana do povo, mas não seria por ele (povo) exercida, a Constituição de 1988, em seu art. 1º, parágrafo único, propõe a conjugação da representação com mecanismos de democracia direta, manifestando com toda força o princípio fundamental do nosso Estado Democrático de Direito: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

O plebiscito, o referendo e a iniciativa popular são os principais mecanismos de exercício direto da soberania popular, conforme previsto nos incisos I, II e III do artigo 14 da CF/88.

Dentre eles, a iniciativa popular tem sua origem em grandes mobilizações sociais com o objetivo de propor uma lei a ser apresentada primeiramente à Câmara dos Deputados e posteriormente votada e aprovada pelo Congresso.

Na forma regulada pelo art. 61, § 2º, o projeto de lei apresentado deve ser subscrito por pelo menos um por cento do total de eleitores brasileiros, com distribuição das assinaturas colhidas em pelo menos cinco Estados, sendo que em cada Estado deve haver ao menos três décimos por cento do colégio eleitoral de cada.

Além do comando constitucional, a Lei 9709/98, que regulamenta as formas de participação direta do povo, previstas no art. 14 da Constituição, determina o limite de um único assunto neste projeto de lei e a impossibilidade de rejeição por vício de forma, devendo corrigir as imprecisões técnicas.

A PEC 15/2013 e sua justificativa
A PEC 15/2013 tem como objetivo ampliar a participação popular na democracia representativa brasileira. De acordo com a justificativa do projeto, é necessária a concretização de uma noção mais complexa de democracia que a mera representação política resultante de eleições livres. A participação popular deve ser mais ampla e devidamente assegurada pelo poder público. A proposta de emenda prevê as seguintes alterações no texto constitucional.:

O art. 61 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 3º e 4º:

§ 3º Admite-se iniciativa popular, com os mesmos requisitos do parágrafo anterior, para solicitar urgência de proposição em andamento no Congresso Nacional ou qualquer de suas Casas, nos termos e prazos dos §§2º, 3º e 4º do art. 64 desta Constituição.

§ 4º A lei regulamentará o exercício da iniciativa popular previstas nos §§ 2º e 3º, inclusive mediante meios eletrônicos.

Os parágrafos a serem inclusos aprimoram a ideia de participação popular e se mostram adequados às demandas contemporâneas de legitimidade e celeridade no processo legislativo. O § 3º amplia a participação popular para permitir que, por meio dela, seja solicitado ao Congresso Nacional (ou uma de suas Casas) que coloque em pauta e vote quaisquer proposições legislativas que estejam paradas/engavetadas.

Por meio desse requerimento, a proposição ganha a mesma urgência constitucional prevista nos §§ 2º, 3º e 4º do art. 64 do texto constitucional, antes própria dos projetos de iniciativa do Presidente da República (§1º, art. 64, CF/88). Isso faz com que, caso as Casas do Congresso não se manifestem sobre a proposição de urgência em até quarenta e cinco dias, todas as deliberações (com exceção das que tenham prazo constitucional determinado) sejam sobrestadas para que o projeto com pedido de urgência seja votado (§ 2º). As emendas a esse projeto do Senado pela Câmara dos Deputados devem ser apresentadas em até dez dias (§ 3º).

A justificativa da PEC 15/2013 procura demonstrar que esse aumento na possiblidade de participação popular é uma tendência na América Latina. A Constituição da Argentina prevê, em seu art. 39, a possiblidade de apresentação de projetos de lei oriundos de inciativa popular para a Câmara dos Deputados, os quais devem ser apreciados em até um ano pelo Congresso. A Constituição colombiana, por sua vez, determina alguns instrumentos de participação popular em seu art. 103, tais quais o referendo, o recall (inexistente no Brasil) e a iniciativa popular.

Para diminuir o alto grau de dificuldade em implementar todos os requisitos da iniciativa popular e tornar o procedimento mais célere, de acordo com as necessidades do mundo virtual, a PEC 15/2013 propõe o acréscimo do § 4º no art. 61 da CF/88, estabelecendo que uma lei ordinária deverá regulamentar a participação popular contemplada no § 2º (iniciativa popular para propositura de lei) e também no § 3º (iniciativa popular para urgência na tramitação), inclusive por meios eletrônicos. O meio eletrônico é a chave para possibilitar que o cidadão possa participar e acompanhar o andamento do procedimento.

Ao invés do colhimento físico e manual de assinaturas, que pode demorar meses devido à dificuldade de divulgação, o cidadão poderá votar pela internet, de seu computador pessoal (com um certificado digital ou mesmo por meio de um servidor público seguro contra fraudes, por exemplo) e em poucos dias a iniciativa popular poderá ser concretizada.

Não são raros os casos das chamadas “petições on-line”, as quais, com um propósito específico, atingem milhares de adesões em poucos dias e, mesmo assim, não encontram respaldo e fundamento no direito brasileiro.

A PEC 15/2013 teve parecer favorável no tocante à admissibilidade e mérito na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal e está pronta para ser pautada e votada no âmbito desta Comissão.

Considerações finais
A democracia participativa não pode ser vista como solução para todos os problemas políticos da Nação. Em sua concepção persistem problemas, tais como o risco de excessivo populismo, especialmente em razão de movimentos gerados por informações deturpadas, que pode ocasionar maior opressão das maiorias ou mesmo dos grupos politicamente mais organizados.

Contudo, também não se pode esquecer, como bem anota Frank Cunningham ao tratar do contexto norte-americano, que os movimentos estudantis, as lutas pelos direitos civis, com destaque para a defesa das mulheres e os movimentos em prol da paz, se fortalecem no começo dos anos de 1960 justamente porque seus membros compreendiam que as instituições então existentes da democracia representativa se revelaram inadequadas para uma efetiva expressão política dos seus interesses[2].

A proposta da PEC 15/2013 é apenas uma medida simples e inteligente de fortalecer o diálogo entre o Congresso e a população, evitando que temas importantes fiquem guardados nas gavetas dos parlamentares sem a devida apreciação. Com ela, não mais será possível se esquivar de temas inconvenientes para o mainstream político. Os mandatários serão chamados à exercer sua responsabilidade perante os anseios populares e terão que justificar suas posições aos eleitores. Ainda, a PEC 15/2013 promove interessante controle da agenda parlamentar diretamente a partir da iniciativa popular, o que é de todo desejável para fortalecer a legitimidade do poder legislativo brasileiro.


[1] URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática?.  Lua Nova, São Paulo, 67: 191-228, 2006.
[2] CUNNINGHAM, Frank. Theories of democracy: a critical introduction. London-New York: Routledge, 2000. p. 141.

Autores

  • é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.

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