Harmonização de direitos

Regras criam limites positivos e negativos à liberdade de programação no Brasil

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2 de setembro de 2014, 6h41

A Constituição Brasileira de 1988 consagra a chamada liberdade de comunicação, que engloba a chamada radiodifusão.

A radiodifusão possui algumas especificidades em comparação com outros meios de comunicação e formas de expressão, como a sua característica de meio passivo de obtenção de informações e a existência de necessária delegação por parte do Poder Público para que particulares exerçam tal atividade.

Essas peculiaridades justificaram a criação de um regramento específico para a radiodifusão, cuja regra é ainda a da proibição da limitação da atividade, mas as exceções em nosso ordenamento jurídico são em número maior em comparação com os demais meios de comunicação (internet, jornais, revistas, livros etc.).

Teremos certamente mudanças fortes no futuro em razão da propagação da internet, mas o incrível alcance do rádio e da televisão na vida das pessoas revela a importância do tema referente aos limites que a chamada liberdade de programação possui em nosso sistema.

Esse o objeto do presente estudo.

A Liberdade de Comunicação
A prestação do serviço público de telecomunicações (art. 21, XI, da Constituição Federal de 1988 (CF/88) é diretamente relacionada com o direito à livre manifestação do pensamento, à criação e à expressão (art. 5º, IX e art. 220, todos da CF/88).

A Constituição Federal de 1988 conferiu à União a competência exclusiva para explorar o serviço público de radiodifusão de sons e imagens, podendo fazê-lo diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão (art. 21, XI).

A prestação de tal serviço público direta ou indiretamente pela União ocorre em consonância com o direito à livre manifestação do pensamento, à criação e à expressão (art. 220 da CF/88), que integram a chamada liberdade de comunicação, assim definida por José Afonso da Silva:

“A liberdade de comunicação consiste em um conjunto de direitos, formas, processos e veículos que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação” (Comentário Contextual à Constituição. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 823).

Com efeito, apesar de não haver uniformidade doutrinária a respeito dessa sistematização, podemos dizer que a liberdade de comunicação abrange a liberdade de pensar, a liberdade de manifestar pensamento, a liberdade de criação, a liberdade de expressão, a liberdade de informar e a de ser informado.

Nesse passo, tem-se que as diversas formas de criação do ser humano, nas suas diversas vertentes, como artísticas, ideológicas, tecnológicas e políticas, integram a liberdade de comunicação.

A comunicação pode ser entendida como um processo pelo qual idéias e sentimentos são transmitidas de indivíduo para indivíduo, tornando possível a interação social.

Portanto, inicia-se justamente com a criação ou surgimento da idéia ou de determinado sentimento.

Para tanto, evidentemente, há que se garantir ao indivíduo que alcance informações por si ou por outrem, bem como que possa justamente exercer pensamento.

Enfim, devem ser permitidas as buscas de informações, os recebimentos de informações e as trocas de informações.

Assim, poderá o indivíduo ter acesso livre ao pensamento próprio e de terceiros, permitindo-lhe, então, a efetiva liberdade de pensar, de criar e de se posicionar.

No entanto, não basta a liberdade de pensar e de criar, já que a eventual impossibilidade de expressar e manifestar o pensamento acabaria por tolher o cerne da sociabilidade humana que é a comunicação.

Nessa esteira, intuitivo é perceber que a falta de comunicação acaba por impedir o exercício de atividade essencial da vida humana.

A liberdade de comunicação, assim, evidencia-se como imprescindível para a garantia da dignidade da vida humana, motivo pelo qual é tutelada amplamente nos ordenamentos jurídicos.

Da liberdade de comunicação surge a chamada liberdade de programação radiotelevisiva ou simplesmente liberdade de programação, que se caracteriza como um dos meios de exercício da liberdade de comunicação.

Vejamos o conteúdo e os limites da chamada liberdade de programação.

A Liberdade de Programação
Liberdade de programação é o exercício livre, ou seja, com autonomia e independência, do direito de definir o conteúdo, a quantidade, a duração e o momento de exibição de anúncios e programas a serem produzidos e transmitidos pelas emissoras de rádio e televisão.

Pelo exercício de tal liberdade, as pessoas podem criar programas para rádio e televisão dos mais diversos tipos como, por exemplo, programas jornalísticos, artísticos, culturais, musicais, educacionais, esportivos, infantis e turísticos. Enfim, todos os programas que a criatividade humana é capaz de desenvolver para transmitir mensagens.

É desdobramento direto da liberdade de expressão, a qual, em suas múltiplas formas, foi uma preocupação constante do constituinte originário de 1988, como forma de reação ao passado de censuras do nosso país.

Com efeito, a Constituição Brasileira de 1988 foi um marco no processo de restauração do Estado democrático de direito e da superação do autoritarismo então vigente no Brasil.

Nesse passo, a Constituição rejeitou fortemente o modelo anterior, no qual a censura, além de exercida normalmente na prática, tinha norma permissiva expressa na Carta de 1969 (art. 8º, VIII, alínea “d”).

Nessa linha, a Constituição Brasileira de 1988 traz uma série de dispositivos com claro objetivo de garantir as diversas formas de liberdade de expressão, incluindo a liberdade de programação. Dentre eles, podemos citar os seguintes: artigo 5º, caput e incisos II, IV e IX; artigo 21, XII, alínea “a”; artigo 48, XII; artigo 49, XII; artigo 216, I; artigo 220 e seus parágrafos; artigo 221; artigo 222 e seus parágrafos; artigo 223 e seus parágrafos e artigo 224.

A análise de tais dispositivos permite concluir facilmente que o constituinte optou pela proteção à ampla liberdade de expressão, tendo, inclusive, proibido a censura sob qualquer forma.

A liberdade de expressão é, assim, verdadeiro princípio constitucional que deve nortear toda e qualquer interpretação normativa em nosso sistema (artigos 5º, IV e 220, caput e § 1º da CF/88).

Portanto, a regra é a da liberdade de expressão, sendo a exceção sua limitação.

Afinal, a natureza de qualquer princípio é admitir restrições em razão de outros princípios ou de exceções pontuais sem que isso altere sua validade.

A Constituição de 1988 estabeleceu limitações ao princípio da liberdade de expressão, em respeito aos demais direitos e liberdades previstos no próprio texto constitucional, como se observa do próprio caput de seu artigo 220, visto acima.

Quanto ao princípio da liberdade de programação, a Constituição determinou parâmetros gerais que devem ser observados (art. 221), bem como autorizou a fixação de limitações diversas a seu exercício, como aquelas relacionadas ao potencial risco à saúde e ao meio ambiente (art. 220, § 3º).

Com efeito, identificamos um verdadeiro regime constitucional da liberdade de programação, no qual observamos a existência de limitações quanto a seu conteúdo, mas também quanto aos meios de atuação do Poder Público para a concretização de tais limitações.

É o que veremos a seguir.

O regime jurídico da liberdade de programação
Analisando o sistema de normas que tratam direta ou indiretamente da liberdade de programação, observamos a existência de regras que impõem uma obrigação de fazer aos que exercem a liberdade de programação, mas também outras que veiculam verdadeiras proibições, ou seja, obrigações de não fazer a tais pessoas.

Assim, para melhor compreensão do tema, podemos dividir tais regras em limitações positivas e limitações negativas da liberdade de programação.

Em nosso ordenamento, as limitações positivas são essencialmente as seguintes:

a – os programas devem dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas (art. 221, I, da CF/88);

b- os programas devem promover a cultura nacional e regional (art. 221, II, da CF/88);

c- os programas devem existir de forma a respeitar a regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei (art. 221, III, da CF/88);

d- os programas devem respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família (art. 221, IV, da CF/88);

e- devem ser transmitidas as chamadas mensagens obrigatórias nos termos da lei (por exemplo A Voz do Brasil – Lei 4.117/1962, art. 38, “e”);

f- o direito de resposta assegurado na Constituição deve ser observado, tal como determinado, inclusive por meio de sua transmissão pelo mesmo meio utilizado na ofensa (art. 5º, V, da CF/88; art. 14, 1, do Pacto de São José da Costa Rica);

g- os programas devem ter sempre uma “pessoa responsável que não seja protegida por imunidades nem goze de foro especial” (art. 14, 3, do Pacto de São José da Costa Rica – art. 223, § 2º, da CF/88).

Tratam-se dos chamados “direito à programação de qualidade” (itens “a” a “d” supra), “dever de transmissões obrigatórias” (itens “e” e “f”) e “dever de responsabilidade” (item “g”).

Com efeito, as telecomunicações são serviços públicos (art. 21, XI, da Constituição Federal de 1988) e, como tal, sujeitam-se a princípios próprios, como os da continuidade e da qualidade (art. 37, § 3º, I, da CF/88), o que é explicitado e detalhado neste particular pelas regras do artigo 221 da CF/88.

De outro lado, as limitações negativas impõem abstenções aos que exercem a liberdade de programação, sendo as principais:

a) vedado o anonimato (art. 5º, IV, da CF/88);

b) não ofender a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X, da CF/88);

c) dever de observar a regulamentação das diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada (art. 220, § 3º, I, da CF/88);

d) não produzir ou veicular propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente (art. 220, § 3º, II, da CF/88);

e) obedecer às restrições legais quanto à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias (art. 220, § 4º, da CF/88).

Como se vê, a liberdade de programação encontra limites previstos diretamente na Constituição, mas também os que emergem da colisão deste direito com outros de mesmo status.

Não há, em nossa Constituição, previsão para que a legislação infraconstitucional possa limitar a liberdade de expressão, tal como faz a Carta Alemã.

No entanto, isso não proíbe a edição de leis com o objetivo de preservar valores constitucionalmente relevantes, que restrinjam a liberdade de programação, uma vez que, como visto, não são apenas aqueles bens jurídicos expressamente mencionados pelo constituinte que operam limites a essa liberdade.

Em outras palavras, qualquer outro bem jurídico albergado pela Constituição pode entrar em conflito com essa liberdade, devendo, nesse caso, haver sopesamento dos valores envolvidos de forma a harmonizá-los.

Exemplificando, a liberdade de programação, num contexto que estimule a violência e exponha criança à exploração de toda sorte, inclusive a comercial, tende a ser proibida em face do previsto no artigo 227 da CF/88.

A análise do eventual conflito entre os direitos deve ser feita à luz da razoabilidade, atendendo-se aos critérios informadores do princípio da proporcionalidade, ou seja, verificando-se a adequação da restrição, sua necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Em suma, a chamada Liberdade de Programação constitui uma das dimensões essenciais da liberdade de expressão, que, por essência e como regra, não aceita limitações.

Certamente, a liberdade de expressão deve ser interpretada de forma ampla a garantir a criação, expressão e difusão do pensamento e da informação sem interferências.

No entanto, como já visto acima, não há liberdade pública absoluta, que se sobreponha às demais.

Nas palavras dos doutrinadores portugueses Canotilho e Machado, “a liberdade de programação não é incompatível com o estabelecimento de algumas restrições, à semelhança do que sucede com todos os direitos, liberdades e garantias” (Canotilho, J. J. Gomes; Machado, Jónatas E. M. “Reality Shows” e Liberdade de Programação”. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 32).

Devem, portanto, ser harmonizados os direitos fundamentais envolvidos num conflito instaurado, sendo o princípio da proporcionalidade o instrumento adequado para tanto.

Nesse sentido, “mutatis mutandis”, também já decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130, relatada pelo ministro Carlos Britto (julgamento em 30-4-09, Plenário, DJE de 6-11-09).

Conclusões
Do exposto, podemos concluir o seguinte:

– a liberdade de comunicação abrange a liberdade de pensar, a liberdade de manifestar pensamento, a liberdade de criação, a liberdade de expressão, a liberdade de informar e a de ser informado;

– da liberdade de comunicação surge a chamada liberdade de programação radiotelevisiva ou simplesmente liberdade de programação, que se caracteriza como um dos meios de exercício da liberdade de comunicação;

– a liberdade de programação é o exercício livre, ou seja, com autonomia e independência, do direito de definir o conteúdo, a quantidade, a duração e o momento de exibição de anúncios e programas a serem produzidos e transmitidos pelas emissoras de rádio e televisão;

– essa liberdade foi tratada com especial destaque na Constituição de 1988, e, como uma das formas de liberdade de expressão, foi inserida num regime jurídico na qual a ausência de limitações é a regra, evidenciando uma reação eloqüente à prática histórica da censura política, ideológica e artística no país;

– o regime jurídico-constitucional da liberdade de programação implica limitações positivas e limitações negativas a seu exercício, que decorrem diretamente da Constituição, mas também da colisão deste direito com outros de mesmo status;

– devem, portanto, ser harmonizados os direitos fundamentais envolvidos num eventual conflito instaurado, sendo o princípio da proporcionalidade o instrumento adequado para tanto.

– a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem seguido justamente essa linha da harmonização dos direitos constitucionais em conflito, partindo dos princípios da liberdade de expressão, liberdade de imprensa e liberdade de programação.

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Bibliografia

CANOTILHO, J. J. Gomes; MACHADO, Jónatas E. M. “Reality Shows” e Liberdade de Programação. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.

LUGON, Luiz Carlos de Castro. Ética na concretização dos direitos fundamentais. Revista do Tribunal Regional Federal 4ª Região, Porto Alegre, n. 65, ano 18, p. 31-53, 2007.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004.

TAVARES, André Ramos. Liberdade de Expressão-Comunicação. In: Direito Constitucional Contemporâneo: homenagem ao Professor Paulo Bonavides. ROCHA, Fernando Luiz Ximenes; MORAES, Filomeno (org.). Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 49-64.

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