Aplicação abrangente

Lei Anticorrupção pode retroagir parcialmente para redução de penas

Autor

  • Filipe Coutinho da Silveira

    é advogado criminalista e sócio fundador do escritório FS Advocacia especialista em Direito Penal & Criminologia pela PUC-RS em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) em Ciências Criminais pela UFPA em Direito Penal Tributário pelo Ibet/IBDT e vice-presidente da Abracrim-PA.

26 de outubro de 2014, 7h45

A denominada Lei Anticorrupção surgiu no ordenamento jurídico brasileiro como reforço, administrativo e judicial, ao combate contra a corrupção e de outros atos considerados lesivos à administração publica nacional e estrangeira, prevendo, prioritariamente, a punição das pessoas jurídicas e, subsidiariamente, a punição de pessoas físicas que atuem como dirigentes e/ou administradores das empresas envolvidas nos ilícitos tipificados na nova lei.

Ao lado de diplomas legais como a Lei 8.429/1992 e Lei 8.666/1993, a Lei Anticorrupção constitui-se em uma forma concorrente de proteção de objetos jurídicos já tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro. Destaque-se, inclusive, que a Lei 12.846/2013, dispõe, expressamente, no artigo 30, que a aplicação das penalidades que estabelece não interfere nos processos de responsabilização e inflição de penalidades decorrentes da Lei de Improbidade Administrativa e da Lei das Licitações, confirmando, portanto, a relação de identidade entre os objetos jurídicos a serem tutelados.

Nesse cenário, interessante questão é saber se as disposições existentes na Lei Anticorrupção poderão retroagir no tempo, alcançando fatos ocorridos anteriormente à sua vigência.

A princípio parece claro que as disposições punitivas e sancionatórias existentes na Lei Anticorrupção não poderão retroagir aos fatos praticados antes de sua vigência, já que se constitui princípio basilar do Direito Punitivo (Administrativo ou Criminal) que o acusado somente pode ser responsabilizado pelas condutas que, à época em que foram praticadas, já seriam, expressamente, proibidas, conforme as disposições previstas no art. 5º, II, XXXVI e XL da CF/88.

Aliás, sobre essa temática, o próprio Direito Administrativo Brasileiro — estruturado a partir de princípios como a supremacia do interesse público sobre o interesse privado, bem assim pelo princípio da eficiência — impede a retroatividade da interpretação da norma administrativa que melhor garanta o atendimento do fim público, ex vi da Lei 9.784/99, art. 2º, parágrafo único, XIII.

Por outro lado, a lei mais nova (Lei 12.846/2013), ao mesmo tempo em que proíbe comportamentos e estipula penas mais graves que as previsões existentes em textos legislativos anteriores e correlatos — como a Lei das Licitações — também possui conteúdos mais brandos, tais como causas de diminuição (decorrente da existência de programas de compliance) e causas de isenção de penalidade (como o acordo de leniência), havendo, inclusive, previsão expressa pela possibilidade da administração pública utilizar-se do acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei 8.666/1993, com vista à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus artigos 86 a 88, conforme dicção do artigo 17.

Em sendo assim, haveria alguma objeção para a retroatividade apenas dos conteúdos mais benfazejos da Lei Anticorrupção?

Na literatura penal o controverso tema sobre a possibilidade de combinação de leis no tempo sempre dividiu a doutrina[1] e a jurisprudência[2], determinando a formação de dois posicionamentos a respeito do assunto. A primeira corrente de pensamento sempre defendeu a impossibilidade de combinação de leis penais, sob o argumento de que, ao operar a retroação parcial de um determinado regulamento, o intérprete estaria criando uma terceira lei (lex tertia),  o que implicaria em violação ao primado da separação dos poderes.

A segunda corrente, diferentemente, defende a possibilidade de combinação de leis, sustentando que esse fenômeno proporcionaria a integração normativa do ordenamento jurídico, ou seja, o intérprete não estaria a confundir normas ao proceder com a interpretação retroativa parcial, mas apenas se movimentando dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente possível.

Em que pese os entendimentos em sentido contrário, não nos parece que a melhor interpretação aponte para a impossibilidade de “combinação de leis” no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, especialmente no que diz respeito às disposições da Lei 12.846/2013 e da Lei 8.666/1993.

Em primeiro lugar, não se trata, efetivamente, de combinação de diplomas legais antagônicos ou substancialmente diversos que, de seu processo integrativo, surja uma terceira lei (lex tertia). Basta observar que, na definição dos atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, o legislador optou, conscientemente, pela utilização de tipos abertos, nos quais estão contidos, por exemplo, todas as infrações administrativas previstas na Lei 8.666/1993.

Assim, a lei nova (12.846/2013), ao prever a possibilidade de causas de diminuição ou de isenção de penalidade para os atos lesivos contra a administração pública não o faz por dispor sobre condutas substancialmente novas, mas sim por revelar uma nova compreensão social sobre o tema, bem como uma nova estratégia estatal para o combate de situações que já estavam anteriormente previstas, buscando, com isso, maior eficiência administrativa contra aquilo que considera potencialmente lesivo.

Não fosse assim, não haveria qualquer razão para o artigo 17 da Lei 12.846/2013 determinar, no tocante as licitações, que “a administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88”.

Nesse sentido, se para os ilícitos administrativos licitatórios futuros será possível, por exemplo, a celebração de acordo de leniência, não há qualquer razão que impeça a adoção do mesmo instituto ou de outras causas de diminuição ou isenção de penalidade para os fatos que tiveram ocorrência antes da entrada em vigor da Lei Anticorrupção.

Para além disso, o caráter penal que circunda a Lei 12.846/2013 justifica que se atue com prudência ao se tratar de possível relativização de direitos e garantias fundamentais. Nesse talante, com base no princípio da máxima efetividade[3] deve-se conferir às garantias previstas no artigo 5º, II, XXXVI e XL da Constituição Federal de 1988 o máximo de capacidade de regulamentação de forma a permitir a retroatividade parcial da nova lei, em casos tais, como ocorre nas disposições relativas às licitações e contratos.

Sem a pretensão de tentar esgotar o tema, as inquietações aqui lançadas dependem de maior aprofundamento, mas, e sobretudo, acenam para a possibilidade de se buscar um tratamento mais isonômico e eficiente para eventos ocorridos anteriormente à vigência da Lei 12.846/2013, com fundamento em medidas jurídicas harmônicas e ajustadas aos postulados do Estado Democrático de Direito. Assim, quid juris?


[1] Pela impossibilidade de combinação de leis, v. o escólio de Nelson Hungria. No sentido oposto, Damásio de Jesus defenda a possibilidade de combinação de leis no tempo.

[2] O plenário do Supremo Tribunal Federal constituiu precedentes nos dois sentidos, cf. RE 596.152 e RE 600.817. Também no STJ há precedentes em ambos os sentidos, muito embora, recentemente, a 3ª Seção tenha decidido no sentido da impossibilidade de combinação das leis penais, sendo esse o atual posicionamento majoritário, cf. EResp n. 1.094.499/MG, REsp 1112348/MG e HC 173.139/SP. Há também precedentes no sentido oposto cf. HC 107.451/RS.

[3] Por todos v. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Coimbra: Coimbra ,  2ª. Edição, 1983, p 229.

Autores

  • é advogado, coordenador da área criminal do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff. É especialista em Ciências Criminais pela Universidade Federal do Pará e pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra.

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