Segurança necessária

Sigilo impede eleitor de votar acompanhado de criança e adolescente

Autores

  • Valter Foleto Santin

    é promotor de Justiça do MP-SP mestre e doutor em Direito pela USP professor do programa de Mestrado em Direito da UENP e professor convidado da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisas (GT) Políticas públicas e efetivação dos direitos sociais (UENP).

  • Renato Garcia

    é juiz de Direito de Cambará (PR). Mestrando pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP - Campus de Jacarezinho). Membro do Grupo de pesquisa Políticas públicas e efetivação dos direitos sociais (UENP).

  • Sandra Tamiko Nakai

    é acadêmica do quarto ano do curso de Direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).

24 de outubro de 2014, 8h15

O sigilo do voto é preceito constitucional, que acompanha o processo democrático de escolha dos representantes há séculos no Brasil. Discussão interessante, principalmente em períodos eleitorais, é a permissão ou proibição ao eleitor de ser acompanhado por crianças e adolescentes, normalmente filhos ou parentes próximos, sob o pretexto de incentivo à consciência democrática dos futuros eleitores. A ausência de um disciplinamento uniforme (pelos tribunais regionais eleitorais e pelo Tribunal Superior Eleitoral) tem gerado posturas diversas nas zonas eleitorais pelo país, causando questionamentos e incidentes, muitas vezes mal compreendidos pelos eleitores.

O uso criminoso desse artifício, por candidatos e partidos políticos, para viabilizar a compra dissimulada de votos, deve gerar inúmeras restrições a essa prática. O ponto é controvertido, principalmente diante da inexistência de uma norma clara e uniforme a respeito do sigilo do voto, que tem gerado as mais diversas interpretações. O tema demanda uma reflexão atual em prol da democracia, de forma viabilizar a escolha livre, pelo eleitor, de seus representantes, com o objetivo de se preservar a lisura do processo eleitoral.

Sigilo do voto
A Constituição Federal estabelece no artigo 14, que o voto é direto e secreto, com valor igual para todos. O sigilo do voto é garantido pela Constituição para proporcionar ao eleitor a segurança necessária da livre escolha de seus candidatos e a lisura do processo eleitoral. Veda-se aqui a possibilidade de influência, coação ou mesmo a vinculação do eleitor por quem quer que seja, no momento em que emite o voto, dentro do processo eleitoral. O momento do voto é único no exercício do direito do eleitor e da cidadania, já que é através dele que o eleitor, individualmente, externa a sua opção na escolha de seus representantes, que irão dirigir o futuro da nação. Em última análise definem as políticas que irão beneficiar ou prejudicar o eleitor e a própria sociedade como um todo.

A manipulação desse processo democrático, por artifícios das mais variadas espécies, viola a livre escolha dos candidatos pelo eleitor, propicia a corrupção, a venda e compra de votos e compromete a base do sistema eleitoral. O sigilo do voto garante ao eleitor a prerrogativa de escolha, vinculando-o a interesses imediatos dele e da sociedade. A violação do voto pode favorecer grupos políticos sem compromissos com a sociedade, em afronta ao interesse público. 

O sigilo do voto constitui uma garantia ao eleitor para a escolha de seus representantes de forma livre e sem influências externas, longe de ser uma violação à liberdade de expressão.

Segundo SILVA (2003, p. 358):

A garantia da liberdade do eleitor na emissão de seu voto exige que este seja secreto, como a Constituição prescreve no art. 14. O segredo do voto consiste em que não deve ser revelado nem por seu autor nem por terceiro, fraudulentamente. O eleitor é dono de seu segredo, após a emissão do voto e a retirada do recinto de votação. Mas no momento de votar há que preservar o sigilo de seu voto, nem ele mesmo pode dizerem quem votou ou como votou. É obrigação dos membros da mesa receptora não só oferecer condições para que o eleitor tenha respeitado o seu direito subjetivo ao sigilo da votação, mas também impedir que ele próprio o descumpra.É que o segredo do voto, sendo um direito subjetivo do eleitor, é outrossim uma garantia constitucional de eleições livres e honestas, porque evita a intimidação e o suborno, suprimindo, na raiz, a possibilidade de corrupção eleitoral, ou, pelo menos, reduzindo-a consideravelmente.

A violação do sigilo do voto constitui crime eleitoral capitulado pelo artigo 312 do Código Eleitoral (Lei 9.504/1997). Em tese, o delito deve reprovar a conduta de terceiro que prática violação de sigilo alheio, pois o eleitor pode voluntariamente revelar o conteúdo do seu voto e a ele não se aplica a regra do sigilo do voto. Isso porque, se o eleitor fizer comentário sobre o seu voto e o candidato escolhido “estará quebrando o sigilo do voto, mas não estaria violando o sigilo do voto” (STOCO, 2012, p. 757).

Uma questão essencial é definir se o eleitor poderia ser acompanhado por criança ou adolescente na cabine de votação, fora das hipóteses legais.

A norma eleitoral permite ao eleitor com deficiência ou mobilidade reduzida o acompanhamento de outrem, ao votar, que ele “seja auxiliado por pessoa de sua confiança” (artigo 90, da Resolução 23.399 de 17 de dezembro de 2013). Seria a única hipótese de o eleitor levar companhia para o voto, por razões justificadas de viabilização física do próprio voto pelo eleitor portador de deficiência.

Inexiste previsão legal ou administrativa de voto acompanhado de outrem, exceto o deficiente ou de mobilidade reduzida. Não há permissão de o eleitor ser acompanhado por criança e adolescente, mesmo que seja filho. Assim, em princípio o eleitor deve ir votar sozinho, sem companhia.

Porém, é comum o eleitor levar filho para a sessão eleitoral, para a cabine e até para apertar o teclado da urna eletrônica com número de candidato e confirmar o voto, hipótese em que materialmente quem exercita imediatamente o voto é o filho e não o próprio eleitor. Como o voto é pessoal, a permissão ao filho é irregular e ilícita.

É bom deixar claro que mesmo sendo o voto individual e pessoal, inerente ao direito do próprio eleitor, ele tem conotação de direito coletivo e difuso relativo à democracia, à cidadania e à representatividade pública, devendo atender às normas de ordem pública para preservação da liberdade de voto e lisura da própria emissão da vontade popular. O direito do eleitor, a “festa da democracia”, tem limites impostos pela Constituição Federal. Isso porque a ampla liberdade na concretização do voto coloca em risco o processo eleitoral e a própria lisura das eleições. A escolha dos representantes é um procedimento sério, regrado e que deve ter preceitos uniformes para que não se transforme em situações conflituosas para os mesários, eleitores e todos os agentes do processo eleitoral.

Das condutas ilícitas
Com relação ao fato do eleitor não deficiente ser acompanhado por criança e adolescente, os regramentos do TSE e dos TREs são omissos. Alguns juízes eleitorais têm criado regras próprias, muitas vezes por Portaria, disciplinando a questão, que não está regulamentada.

Embora pareça irrelevante à primeira vista, o fato se mostra importante, principalmente para se evitar condutas ilícitas, por exemplo, quando envolve a compra e venda de votos. Há relatos de que pessoas estariam usando crianças para acompanhar o eleitor no momento da votação e, depois, confirmarem para quem ele teria votado, viabilizando a obtenção de vantagens pelo próprio eleitor e por terceiros com interesses escusos. Ou por constrangimento de traficantes e milicianos, para garantir o voto do morador de favela em candidato imposto por delinquentes (ZAHAR, 2008).

Diante desse risco à democracia, alguns juízes eleitorais têm proibido a prática, por Portaria, o que já gerou inúmeras controvérsias a respeito. Em São Vicente (SP), juízes eleitorais impediram a proximidade de terceiro com a tela da urna, através de uma Portaria Conjunta 2/12, das 177ª e 340ª Zonas Eleitorais, para que crianças “não tenham contato visual com a tela da urna”, como medida de prevenção, por suspeita de que crianças poderiam ser utilizadas em crime eleitoral (MOTTA, 2012).

A proibição é adequada, por interpretação principiológica e pela exceção prevista apenas para a pessoa portadora de deficiência (artigo 90, Resolução 23.399/2013), devendo o eleitor deixar o filho em casa ou se comparecer à sessão eleitoral, aguardar do lado de lado de fora ou longe da cabine de votação e da própria urna.

Como algo razoável e excepcional, a eleitora pode trazer consigo bebê de colo, se não tiver com quem deixar a criança que pela faixa etária não possui discernimento para violar o sigilo inerente ao sufrágio.  A presença de bebê de colo tem sido liberada (BALOGH, 2014).

A falta de uma regulamentação específica e, principalmente, uniforme dá margem a questionamentos e, principalmente, críticas, reclamações e protestos de eleitores, já que a divergência de posicionamentos gera uma insatisfação e até mesmo uma revolta. A situação é controvertida e, embora aparentemente, não se revista de maiores problemas, gera incidentes que, muitas vezes somente são resolvidos com a presença do juiz ou promotor eleitoral. Mas, mesmo não regulamentada especificamente a matéria, os regramentos existentes impedem ou restringem a prática, que deve permitir apenas o acompanhamento de pessoa deficiente ou com mobilidade reduzida por outrem de sua confiança e na hipótese de bebê de colo.

Implicações penais
A quebra do sigilo do voto, ainda que tal violação tenha sido perpetrada com o auxílio de criança e adolescente, pode gerar implicações penais, tanto para o eleitor (no caso da venda de votos pelo artigo 299 do Código Eleitoral) como também para quem se beneficia do fato.

Gera ainda outra situação. Se o eleitor for acompanhado por adolescente, fora dos casos previstos (artigo 90, da Resolução 23.399/2013), em tese, há a prática de ato infracional equiparado a crime, já que presentes os requisitos da conduta tipificada pelo artigo 312, do Código Eleitoral, violação do sigilo do voto.

Note-se que o eleitor, no caso, é o detentor da sua opção eleitoral, mas apenas após deixar o recinto de votação. Logo, ao votar acompanhado de criança (capaz de entender) ou adolescente (que não possa votar) o eleitor viola o sigilo do seu voto, incidindo, em tese, na figura típica analisada, ainda que existam posicionamentos contrários.

Outro ponto que merece debate é a insurgência do eleitor contra a proibição do presidente da mesa receptora de que seja acompanhado de criança e adolescente no momento da votação, ou mesmo que ingresse na cabine de votação com aparelho não permitido. Em tese, viola o disposto no artigo 347 do Código Eleitoral, ou seja, pratica crime de desobediência eleitoral. Note-se que o crime de desobediência eleitoral pode ser praticado por qualquer pessoa (crime comum); o eleitor pode praticar o delito de desobediência, ao recusar atendimento à proibição do ingresso na cabine de votação acompanhado por criança e adolescente (artigo 347 do Código Eleitoral).

Conclusão
Conclui-se que:

1) O voto deve ser exercitado exclusivamente pelo próprio eleitor, não podendo ser delegado para criança ou adolescente, já que escolha e expressão físico-mental da vontade de voto na digitação na urna eletrônica incumbem direta e pessoalmente ao eleitor, em face aos princípios da legalidade, razoabilidade e proporcionalidade.

2) O eleitor não pode ser acompanhado de criança ou adolescente na cabine de votação, por proibição implícita e evidente da medida, para evitar violação do sigilo do voto e eventual corrupção eleitoral (compra e venda de votos).

3) A restrição de presença de terceiro no ato de votação garante a lisura das eleições e a preservação do sigilo do voto, em respeito ao eleitor e ao processo democrático.

4) As exceções para a presença de terceiro na cabine de votação são no caso de eleitor portador de deficiência, para viabilizar o voto, e a mãe com bebê de colo.

Referências

BALOGH, Giovanna. Criança ou bebê pode acompanhar a mãe na urna eleitoral? Saiba mais. In:

http://maternar.blogfolha.uol.com.br/2014/10/03/crianca-ou-bebe-pode-acompanhar-a-mae-na-urna-eleitoral-saiba-mais/ visualizado em 15.10.2014.

MOTTA, Rafael. Suspeitas de "dedurarem" escolha, crianças são proibidas de acompanhar voto em São Vicente. In: http://eleicoes.uol.com.br/2012/noticias/2012/10/03/suspeitas-de-dedurarem-escolha-criancas-sao-proibidas-de-acompanhar-voto-em-sao-vicente.htm. Visualizada em 15 de outubro de 2014.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª ed., Malheiros: São Paulo, 2003. P. 358.

STOCO, Rui. Legislação Eleitoral Interpretada. Doutrina e Jurisprudência. 4ª ed., RT: São Paulo, 2012. P.757. 

ZAHAR, André. Quadrilhas tentam usar crianças para garantir voto em seus candidatos, diz TRE –RJ. In:http://www1.folha.uol.com.br/poder/2008/10/452220-quadrilhas-tentam-usar-criancas-para-garantir-voto-em-seus-candidatos-diz-tre–rj.shtml. Visualizado em 15.10.2014. 

Autores

  • Brave

    é professor do programa de Mestrado em Direito da UENP (Jacarezinho/PR), doutor em Processo (USP), promotor de Justiça em São Paulo e líder do GP Políticas públicas e efetivação dos direitos sociais (UENP).

  • Brave

    é juiz de Direito de Cambará (PR). Mestrando pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP - Campus de Jacarezinho). Membro do Grupo de pesquisa Políticas públicas e efetivação dos direitos sociais (UENP).

  • Brave

    é acadêmica do quarto ano do curso de Direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!