Senso Incomum

“Salvo pela lei, morto pela moral”: como devem decidir os juízes?

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16 de outubro de 2014, 8h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]Há algum tempo escrevi aqui na ConJur (ler aqui) sobre a relação direito e moral, invocando exemplos e fazendo uma crítica à utilização dos dilemas morais propostos por Michael Sandel no campo jurídico. Sandel não pretende que seus exemplos sejam levados ao direito. Os juristas é que gostam de brincar com dilemas, como se a decisão judicial fosse uma escolha do juiz e não um ato de responsabilidade política.

Naquela coluna, falei do caso dos pais, Testemunhas de Jeová, que, consultados, não permitiram que o filho recebesse transfusão de sangue em São Paulo. Como o filho morreu, foram ambos denunciados por homicídio por dolo eventual. O caso foi até o Superior Tribunal de Justiça, que entendeu que os pais não obraram nem com dolo e nem com culpa. Disse eu, então, que o STJ agira acertadamente, embora a decisão devesse ter sido mais bem delineada, para que dela pudéssemos retirar um princípio para casos futuros. Nestas coisas, o acerto não é apenas uma questão de resultado, mas, sobretudo, de fundamentação. Quando não se sabe por que se acerta, erra-se, se é que me faço entender. O Direito é difícil assim.

Qual foi, então, o busílis desse caso? O problema está no fato de que os médicos não deveriam ter consultado os pais. Os esculápios cometeram o erro de buscar a autorização. Eis a questão: se o direito determina que seja prestado socorro e coloca como um dever-ser a não omissão de socorro, o “mundo moral” em que está assentada a convicção dos pais não pode intervir no mundo secular e temporal do direito. São dois campos distintos. Moral não corrige o direito. Se admitíssemos correções morais, o direito deixaria de ser direito. Tenho escrito muito sobre isso. Tenho explicitado o que é moral, o que é direito, o que é decisão e o que é escolha (ver Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão jurídica, além de várias colunas aqui da ConJur). Permito-me, pois, não repetir e me alongar sobre esses conceitos já alinhados à saciedade.

Claro, alguém poderia dizer: mas a o direito a fazer escolhas morais é um direito legitimamente protegido pelo… Direito. É verdade. Um pouco de Dworkin vai ajudar a deixar isso mais claro. O Direito só é legítimo quando seus fundamentos observam os princípios da dignidade humana, a saber: o reconhecimento do valor objetivo de toda vida humana e a garantia da autenticidade, quer dizer, de uma autonomia na eleição daquilo que é valioso para cada um de nós. Traduzindo estes abrangentes princípios morais para o Direito, chegamos a outros dois: a igualdade de tratamento ou o dever de igual consideração e respeito por parte do Poder Público em relação ao membro da comunidade; e o dever de respeitar a responsabilidade pessoal de cada indivíduo pelas suas próprias escolhas, a observância de uma esfera de não intervenção.

Então, retomando: sim, é verdade que o dever de respeitar as escolhas morais, as decisões individuais a respeito de alguns assuntos (em síntese, questões éticas), é algo juridicamente protegido. Mas essa proteção não está solta no ar: ela tem uma história e um contexto a serem, igualmente, levados em consideração quando se faz uma afirmação deste tipo. Não é qualquer escolha moral que conta com proteção jurídica; para merecer esta proteção, a escolha deve, ela também e em primeiro lugar, obedecer as restrições inerentes à dignidade humana. Perdoem a digressão, mas pensem nisto: quando alguém diz “eu tenho o direito de fazer isto”, ele está invocando o… Direito em seu favor. E o Direito é coisa distinta da Moral, é algo que depende não apenas da moralidade privada, mas daquela moralidade política, construída intersubjetivamente.

Pois recentemente li um artigo do escritor Ian McEwan, autor de Serena, Reparação, A lei da Infância, entre outros, em que ele fala de casos jurídicos e sua relação com os argumentos morais. Trato, aqui, de dois:

O caso dos gêmeos siameses
No texto, McEwan fala de um caso de gêmeos siameses, em que um deles definhava de saúde e era mantido pelo outro irmão a ele colado. O frágil praticamente não tinha cérebro e não tinha pulmões para chorar. A solução era fazer a separação, cuja consequência seria a morte do mais fraco. Matar um para salvar o outro. Os pais, por questões religiosas, se colocavam contra e por isso a questão foi para a justiça inglesa. A frase do juiz Alan Ward, constante no início da sentença, diz respeito ao que venho falando de há muito e que está na parte inicial desta coluna:

“Sendo este um tribunal que cuida da lei, e não de preceitos morais, nossa tarefa consistiu em encontrar, como é nosso dever aplicar os princípios  legais relevantes para a situação  com que nos defrontávamos — uma situação de todo excepcional”.

A decisão foi no sentido de fazer a cirurgia, cujo resultado foi a salvação do irmão.

No que Sir Ward estava certo? Em demarcar, de plano, que a tarefa do juiz não é a de fazer escolhas trágicas. Direito não é filosofia moral. Ninguém presta concurso, num Estado Democrático digno deste nome, para fazer este tipo de escolha em nome dos outros (não se faz promessa para os outros cumprirem, entendem?). É claro que isto não quer dizer que o juiz não seja levado a elaborar juízos morais. A fundamentação moral existencializa a decisão jurídica. E isto se dá no seguinte sentido: como diz Habermas, o conteúdo jurídico não pode contrariar a Moral. Mas, por favor — entendam — não há confusão entre estes domínios. A moralidade do Direito é, repito, pública, política e intersubjetiva. Você tem o direito de professar uma fé cuja expressão seja “não matar alguém em hipótese alguma, mesmo em estado de necessidade”? Sim, você tem! O que você não tem é o direito de pautar a vida de uma outra pessoa, sob o pálio do Direito, por esta mesma régua.

O caso da transfusão de sangue forçada
Outro caso relatado por McEwan é absolutamente similar ao que ocorreu em São Paulo e sobre o qual discorri acima. Também se tratava de Testemunhas de Jeová. O filho, com quase 18 anos, sofria de doença que necessitava de transfusão. Os remédios que os médicos deveriam aplicar poderiam matá-lo. A transfusão era condição de sobrevivência.  Os pais negaram autorização e o hospital, para cumprir o dever legal de salvar vidas, foi à justiça. O juiz decidiu determinar a transfusão, fazendo uma diferenciação entre direito e moral, entre direito e religião. A Bíblia não tem valor normativo. Não aqui, ao menos.

O inusitado é que, completada a maioridade (o fato se dera meses antes), o agora moço maior de 18 anos foi novamente hospitalizado. Desta vez, ele não dependia dos pais. Mas, por convicção religiosa, negou-se a fazer a transfusão. Como era plenamente capaz, nem a legislação e nem a justiça poderiam obrigá-lo. Na Inglaterra, um médico que trata o paciente contra a sua vontade comete agressão. A recusa em receber tratamento é um direito constitucional. E veio a morrer por isso. Como são complexos os caminhos do direito… e da vida. Salvo pela lei, padeceu pela moral.

Numa palavra, ainda: os juristas devem se dar conta — apesar de isso ser difícil de explicar — que quando alguém berra "mas eu tenho o direito à liberdade religiosa", ou coisa assim, há uma estrutura pré-concebida, um sistema (Dworkin diria "de princípios") na qual se ajusta, se encaixa, a afirmativa. Do contrário, ela nada significa.  Eu só posso "ter um direito" em um Estado em que os direitos são respeitados; e o fundamento para respeitá-los é, sim, moral. Essa fundamentação é circular. Por perceber isso é que Dworkin trabalha com a metáfora da árvore em detrimento do que ele chama de two systems view, que ele admite ter adotado nos seus primeiros textos. Repito: difícil de explicar; mas é iluminador.

Moral e Direito
Incrível isso tudo, não? Tais questões nos remetem mais e mais a discutir cada vez mais os conteúdos morais a partir de uma cooriginariedade com o direito. Evidentemente que, assim como a lei não abarca todas as hipóteses de aplicação (essa era a pretensão do positivismo clássico), os juízos morais também não. Logo, a complexidade se aprofunda, na medida em que, mesmo que a legislação abranja aquilo que se denomina de forma eudemonial de “ideal de vida boa”, parece que até mesmo a moral, assim como o direito, não consegue de antemão abarcar as diferentes hipóteses da concretude. Mesmo a moral não tem todas as respostas por antecipação.

Mas, como somos falíveis, é melhor que deixemos que o direito (no fim das contas, o Direito reflete aquilo que todos nós, enquanto integrantes de uma comunidade política, comprometida com a dignidade humana, entendemos como correto) cuide dessas coisas. O avanço do Direito nestes tempos de Constitucionalismo Contemporâneo aponta cada vez mais para o seu elevado grau de autonomização. As discussões morais devem se dar antes. A moral, depois, não pode vir a corrigir as “deficiências” do Direito.

Dois corpos do rei, dois corpos do juiz
Com isso tudo também quero dizer que quando vamos ao judiciário não devemos querer que a resposta do juiz seja a resposta que ele, pessoalmente, tenha sobre o caso. Exatamente porque ele não deve (embora na prática, isso seja praxe) dizer-o-direito-a- partir-de-sua-subjetividade — com o que o direito desaparece por baixo desse conjunto de opiniões pessoais — é que a Constituição estabelece a imperiosidade da fundamentação.  Esta funciona como uma espécie de porta de entrada daquilo que na modernidade passou-se a chamar de a doutrina dos dois corpos do rei (embora teorizada somente no século XX por Kantorowicz e com propósitos que não os da minha tese acerca da decisão jurídica). Dizia ele: O juiz não é uma persona gemina. Como o rei depois de 1495 (falo de Henrique VII), ele possui dois corpos. Não estamos mais na metafísica clássica, certo? Até podemos dizer assim, para falar da relação direito-moral objeto desta coluna: a figura institucional do juiz, que possui responsabilidade política, é a que que deve deixar de lado o seu outro corpo, o privado, o da razão prática, o de sua convicção moral. Exemplificando: mesmo que — no limite — o juiz fosse Testemunha de Jeová, ele deveria suspender seu primeiro corpo (o corpo privado, moral) e decidir conforme o direito, para prestigiar o seu segundo corpo, o corpo que possui responsabilidade política, aquilo que venho denominando em minha teoria da decisão de dever de accountabillity.

Escolhas morais ou decisões jurídicas…That’s the question, declamaria o hermeneuta com a caveira na mão tal qual Hamlet. E prontamente responderia: Decisões. Sim, decisões, porque as escolhas são de outra ordem. São da ordem do pessoal, do senso comum, dos gostos, dos defeitos, dos desejos. No Críton, de Platão, vemos o que é uma decisão de princípio. E vemos como Críton representa o senso comum. E em Júlio Cesar, de Shakespeare, vemos como Cássio representa o senso comum.

Pois embora o decisor tenha tudo isso — subjetividades, ideologias, ideias do senso comum, preconceitos (que não devem ser confundidos com a pré-compreensão — a Vorverständnis — de que fala Gadamer), ele possui dois corpos. E mesmo que, no limite, “sua moral” coincida com os argumentos morais colocados em um determinado caso (por exemplo, a convicção religiosa de alguém que não quer fazer a transfusão que pode salvar a vida), ele deve decidir conforme o Direito, enfim, de acordo com o sistema jurídico e não com o sistema moral ou com a moral individual (sua e/ou a do paciente).[1] Eis a complexidade do direito, que, para ser redundante, complexiza-se mais ainda quando olhamos para trás e nos damos conta de que as ordens morais são incontroláveis. São da ordem daquilo que é contingente. Também por isso princípios não podem ser valores. Definitivamente, não!

Post scriptum: E ainda me perguntam por que é que tenho implicância com simplificações…!


[1] O estagiário levanta a placa: por favor, antes de dizer que o Professor é um exegeta ou um pandectista, leiam o seu texto- escrito em 2010 –  que está na Revista da Univali, com o provocativo título indagativo: Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista?

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