Defesa do consumidor

Edição legislativa não é suficiente para corrigir supereendividamento

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12 de outubro de 2014, 13h25

Em 30 de setembro de 2014, novamente pautada na preocupação com o crescimento quase que incontrolável do fornecimento de crédito e do consequente número de inadimplentes e de superendividados, a Serasa Experian, através de seu novo modelo de segmentação do mercado consumidor nacional chamado Mosaic Brasil, divulgou o mais completo estudo de segmentação sobre a população brasileira acima de 18 anos e seu comportamento referente à renda e crédito[1].

Uma das conclusões obtidas na pesquisa revela que os jovens adultos (pessoas até 35 anos) residentes em periferia respondem por 20% do crédito concedido em todo país, o que nos leva a crer que, por via de consequência, acabam por deter maior parte de sua renda comprometida, figurando, assim, dentre os mais elevados índices de inadimplemento, levantando-se, novamente, a bandeira da crescente preocupação com o superendividamento do consumidor.

E é daqui que parte a crítica à boa e velha panaceia legislativa que se mostra sempre presente em nossa cultura tupiniquim. Afinal de contas, para tudo que nos dá uma dor de cabeça qualquer, na falta de um bom analgésico, sempre vai bem uma “leizinha”, não é verdade?

E assim, como não poderia ser diferente, ante a dor de cabeça do crédito e inadimplemento sem freio, vamos ao comprimido descrito no PLS 283/2012 que visa reformar o Código de Defesa do Consumidor através da adição e alteração de diversos dispositivos legais visando à prevenção do superendividamento.

Critérios históricos e culturais a parte, fato é que ao invés de se existir qualquer tipo de investimento concreto em efetivas políticas públicas visando à educação ao consumo e conscientização ao crédito (o que desde 11 de setembro de 1990 já se mostra presente no texto do artigo 4º, V do Código de Defesa do Consumidor), torna-se mais fácil (para não dizer cômoda), à alocação de tal responsabilidade ao outro lado da relação de consumo, ou seja, ao fornecedor, através da imposição de deveres legais e informacionais que, ainda que de certa forma viáveis (e de outra, extremamente questionáveis por excessivamente intervencionistas ou repetitivos ao já previsto na atual redação do CDC), em absoluto resolvem, sequer em parte, o problema.

Evidente que para propiciar qualquer tipo de mudança, seja ela qual for, necessária se faz a educação do consumidor, mas imputar tal conduta ao fornecedor do crédito (leia-se bancos e demais instituições financeiras), como determina o artigo 54-D do projeto de lei em questão, é minimamente preocupante ante a evidente contradição à própria atividade econômica por eles desenvolvida.

Ainda que se imputem consequências severas ao fornecedor que se recuse a prestar este cívico dever educacional tão negligenciado pelo Estado desde os tempos de Dom Pedro como, por exemplo, a inexigibilidade ou a redução de juros e encargos (artigo 54-D, parágrafo único), não se pode esquecer que o dever de educação se mostra completamente subjetivo, afinal, o texto fala em educar adequadamente (artigo 54-D, inciso I), e aqui se pergunta: O que é uma educação adequada?

A resposta é minimamente subjetiva, e, para provar esta colocação, convido o leitor a fazer uma breve reflexão sobre se sua opinião a respeito de uma educação adequada é a mesma de nossos queridos candidatos em seus depoimentos no rádio e televisão.

A par destes pequenos detalhes, o que realmente chama a atenção por ser minimamente pitoresca é a denominada “Conciliação” no Superendividamento que se mostra regulamentada pelos artigos 104-A, B e C do PLS 283/2012.

Por este procedimento, o qual muito se assemelha à recuperação judicial de empresas transcrita no artigo 47 e seguintes da Lei 11.101/2005, por requerimento do consumidor, poderá (falando-se aqui em um poder-dever) o magistrado instaurar um procedimento “conciliatório” para realização de uma audiência, na qual, diante de todos os seus credores (exceto os alimentares, fiscais, parafiscais, financiamento imobiliário e crédito rural, afinal, as crianças, o Fisco e os bancos, é claro, devem ter o que comer — artigo 104-A, parágrafo 1º), o consumidor apresentará um plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos (artigo 104-A, caput).

Mencionado plano deverá conter as medidas de dilação dos prazos de pagamento, da redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, dentre outras medidas destinadas a facilitar o pagamento das dívidas; a referência sobre a suspensão ou extinção de eventuais ações em curso; a data de remoção dos dados cadastrais do consumidor dos sistemas de proteção ao crédito; o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento (artigo 104-A, parágrafo 4º), além de imputar ao acordo força de título executivo e coisa julgada (artigo 104-A, parágrafo 3º).

Até aí sem muitos problemas, mas e se o credor não quiser comparecer? Simples! O artigo 104-A parágrafo 2º dá a solução ao determinar a suspensão de exigibilidade do débito (sem fixar qualquer termo final) e interrompe (e não suspende, frise-se) os encargos moratórios.

E como desgraça pouca é bobagem, se o credor recusar a proposta, o consumidor será declarado insolvente como semelhantemente ocorre com a recuperação judicial com a decretação da falência do devedor? Óbvio que não! Além da vedação expressa do artigo 104-A, parágrafo 5º, pelo artigo 104-B, caput, o juiz responsável pelo caso procederá, também a pedido do consumidor, a citação de todos os credores para que se instaure um plano judicial de pagamento compulsório (e agora as aspas no “Conciliação” se justificam).

“Ah, mas isto está certo! O consumidor é um pobre coitado que se vê vítima do crédito ofertado de modo descontrolado e os bancos tem condições de suportar estas imposições legais em prol deste que é vulnerável!”

Aos meus caros românticos que pensam desta forma peço apenas uma breve reflexão ligada ao bom (e velho) senso: O projeto de lei e o plano de recuperação do consumidor superendividado por ele proposto, abarca apenas os bancos? Mostra-se ele apenas e tão-somente restrito aos grandes fornecedores?

A resposta é negativa, ou seja, nesta mesma audiência e a este mesmo plano de recuperação (conciliado ou compulsório) estarão sujeitos tanto o banco A, como o plano de saúde B, como também a Quitanda do Seu João, o Armazém do Seu Antônio, o Buffet da Dona Gilda, a Marmoraria do Seu Valmir, e tantos outros pequenos e médios fornecedores que, a par do prejuízo do inadimplemento, terão também de contar com despesas judiciais decorrentes da contratação de serviços advocatícios para o tal procedimento “conciliatório” sendo certo que deverão abrir mão de parte de seu direito de crédito, afinal, por bem ou por mal, sairá um acordo.

Além destes problemas que assolam o campo do razoável, não podemos nos esquecer daqueles que se verão presentes no mundo empírico, pois diante deste projeto, parece um pouco evidente que o mundo habitado pelo legislador brasileiro não é o mesmo que o nosso (ou ao menos não é o mesmo que o meu).

Afinal, começando do mais simples, a audiência de conciliação de que trata o artigo 104-A, caput deverá ser realizada na presença de todos os credores, além do consumidor superendividado, obviamente.

Bem, e de quantas pessoas presentes aqui falamos? Dez… Quinze? Afinal, não podemos esquecer que cada credor comparecerá com seu advogado.[2] Têm-se salas de audiência suficientes para comportar tanta gente reunida? E mais, para quando serão agendadas ante ao já afogado Poder Judiciário?

Ademais, como não se pode exigir do magistrado qualquer conhecimento em matemática financeira e economia familiar, o artigo 104-B, parágrafo 2º autoriza ao juiz a nomeação de um administrador para elaboração do plano de pagamento compulsório, porém, quem o remunerará? O Projeto é omisso, e o mais sensato seria a atribuição de tais despesas ao Estado (afinal, o consumidor superendividado, certamente, será beneficiado pela Justiça Gratuita). Porém não se pode ignorar que, ante a tendência protecionista presente dentro de nosso Poder Judiciário diante de casos de consumo, certamente poderemos contar com o surgimento de um ou outro entendimento no sentido de embutir tais despesas aos fornecedores credores fundados na vulnerabilidade do consumidor, a qual, de maneira bastante equivocada, vem sendo largamente utilizada como uma verdadeira “desculpa para tudo”, ao ponto de ver-se confundida, em alguns casos, à incapacidade.

Por fim, e talvez o ponto mais alarmante desta judicialização necessária para tentativa de “composição”, seja ela voluntária ou compulsória, está no avassalador número de demandas que virão a tumultuar o Poder Judiciário, afinal, estaremos diante de quantas pessoas em condição de superendividamento? Ainda que possamos estar diante de 1% da população nacional (e aqui a abordagem se dá desprovida de qualquer dado empírico, e também de maneira extremamente otimista, afinal de contas este número deve ser bem maior), falamos da possível existência de quantas novas demandas? Duas ou três milhões?

Precisa-se dizer alguma coisa a respeito ou estamos livres para poder imaginar os quadros da magistratura de primeira instância dando “pulos desta altura” (como diria minha avó) ante a enxurrada de novos processos e audiências que estão por vir, ainda que haja atuação concorrente aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor quanto à realização das audiências prévias de “conciliação” (artigo 104-C)?

Quando a tendência é tentar afastar demandas do Poder Judiciário, ou, ainda, de uma maneira ou de outra, propiciar a célere finalização das demandas em curso (lembra-se, inclusive, do Projeto do Novo Código de Processo Civil que vai bem neste sentido), o PLS 283/2012 parece ir contra este movimento, ao passo que, ao invés da submissão do crivo judicial, poderiam ver-se criadas câmaras extrajudiciais de conciliação, que ainda que subsidiadas pelo Poder Público (Procon e Ministério Público), se veriam capazes de satisfazer muito bem a demanda, desde que houvesse o investimento e planejamento adequados, palavras estas, infelizmente, tão raras no cotidiano político-governamental brasileiro.

Não se pode negar que a preocupação do Estado com o superendividamento é presente, afinal da análise do último relatório envolvendo a reunião dos PLS 281, 282 e 283/2012, o termo é mencionado 76 vezes, todavia, não podemos ser ingênuos a ponto de acreditar que uma mera (e imperfeita) edição legislativa seja suficiente para corrigir um problema que assola diversas camadas sociais de maneira cada vez mais presente e preocupante[3].

O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 5º, desde 1990 traz um rol exemplificativos de instrumentos para viabilização da Política Nacional das Relações de Consumo descrita no artigo 4º do mesmo diploma legal, instrumentos estes que, mesmo após quase duas décadas e meia, sequer saíram do papel, e que, se fossem aplicados, ainda que minimamente poderiam corroborar com a solução ao problema do superendividamento, afinal, não podemos esquecer que a educação ao consumo (o que envolve, evidentemente, o uso do crédito consciente), também ocupa nesta política, um local de destaque.

Agir é preciso! Já legislar, nem sempre.


[1] A pauta completa e maiores informações sobre esta interessante e inédita pesquisa pode ser consultada no site: http://www.maxpressnet.com.br/Conteudo/1,706277,Estudo_inedito_da_Serasa_Experian_revela_os_novos_perfis_da_populacao_brasileira,706277,7.htm – acesso em 01/10/2014.

[2] Lembra-se que ainda que o artigo 104-A, § 3º do PLS nº 283/2012 dê a entender que a presença de um procurador, no caso, um advogado com poderes para transigir, poderá comparecer isoladamente, fato é que a experiência prática nos traz que tal comparecimento isolado é bastante raro.

[3] Relatório conjunto dos projetos, cuja leitura é aconselhada, se mostra acessível na íntegra através do link: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=148162&tp=1 – acesso em 02/10/2014. 

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