Justiça Tributária

As razões pelas quais Joaquim Barbosa pode e deve se tornar advogado

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

6 de outubro de 2014, 7h25

Spacca
Tributaristas devem ser capazes de olhar para a floresta sem ignorar as árvores. Temos o dever de examinar fatos que possam afetar nossa profissão, mesmo que de forma indireta. Tudo o que acontece no Supremo Tribunal Federal obriga-nos a reflexões que ultrapassam os limites das questões tributárias. Ao recebermos nossa carteira de advogado fizemos o solene juramento:

“Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da Justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.”

Assim, a discussão em torno do deferimento ou não da inscrição do ex-presidente do STF na Ordem dos Advogados do Brasil,  embora nos pareça apropriada, vem maculada por um viés ideológico que não deveria inspirar discussões jurídicas.

Qualquer pessoa, advogado ou não, pode impugnar inscrição ante suposta inidoneidade de quem deseja ser advogado, como se vê pelo parágrafo 3º do artigo 8º da Lei 8.906.

Neste caso, não é qualquer pessoa ou uma pessoa qualquer quem apresenta a impugnação: trata-se do presidente da OAB-DF e um advogado respeitado, que não precisa de factóides para nada. Isso é o que mais nos espanta.

Examinando-se a questão de forma isenta, conclui-se que Joaquim Barbosa deve ter sua inscrição aceita pela OAB e na remota hipótese de que, acometidos por insanidade coletiva, os conselheiros brasilienses  decidam de forma contrária, o Judiciário obrigará nossa entidade a concedê-la. Teríamos a entidade desprestigiada.

Vamos um pouco além: Joaquim pode e sobretudo deve ser advogado.

O ex-ministro, embora tenha agido como ali descrito — o que está comprovado e é público e notório — não pode ser legalmente impedido de tornar-se um de nós. A inicial da impugnação ofertada no caso invoca afirmação feita em desagravo feito a quem fora ofendido pelo que deseja ser um de nós. Isso não autoriza a negativa da inscrição, nos termos da lei vigente.

O fundamento da impugnação está correto: suposta falta de idoneidade moral, requisito exigido pelo inciso VI do artigo 8º da Lei 8.906.  O conceito do que se exige não é subjetivo, mas sujeito a variações ao longo do tempo, do lugar e dos costumes. Trata-se, assim, de norma sujeita a interpretação.

Idoneidade moral é “o conjunto de virtudes ou qualidades morais da pessoa que faz com que esta seja bem conceituada na comunidade em que vive, em virtude do reto cumprimento dos deveres e dos bons costumes”. (Enciclopédia Saraiva de Direito).

Os fatos praticados pelo nosso futuro colega Joaquim Barbosa em nenhum momento fizeram com que ele se tornasse pessoa que gozasse de mau conceito na comunidade em que vive.  Mesmo que a maioria dos advogados não goste dele, a comunidade não é composta apenas de advogados e há muitos que o adoram.

O maior pecado de Joaquim foi dizer o que pensa, fórmula eficaz para conquistar inimigos. Um advogado paulistano certa vez ouviu de uma colega: “Você pegou pesado. O que o juiz vai ficar pensando a seu respeito?” A resposta foi esclarecedora: “Espero que não seja o mesmo que eu penso dele!”

Felizmente os advogados não somos perfeitos. Muitas pessoas que integram a comunidade de que fazemos parte apontaram o ex-ministro e nosso futuro colega como presidenciável. Isso é relevante: poucos advogados receberam essa manifestação de apreço social.

Dentre os requisitos para se tornar advogado encontra-se a idoneidade moral, que a lei não define, mas da qual menciona uma espécie: a prática de crime infamante.

Infamante, na definição do léxico, é o que infama, que é capaz de infamar, que tira a fama. Rodrigo Fontinha (Dicionário Etimológico da Língua Portuguêsa, Editorial Domingos Barreira, Porto, Portugal, sem data) registra que infame é “Sem (boa) fama; que perdeu a reputação honrosa; vil; repugnante; abjecto; que pratica infâmias”. Registra, ainda, que “infamar” , do Latim  “infamare”, significa “Tirar ou procurar tirar a fama a (uma pessoa ou coisa personificada); difamar; desacreditar; vexar com infâmias; tornar-se infame, pelas más acções praticadas; desacreditar-se; perder a boa reputação; desonrar-se.

Se infamante é o crime que faz alguém perder a boa fama, a honra, a idoneidade moral, sempre é bom lembrar que a literatura já registrou:

“Que a boa fama, para o homem, senhor, como para a mulher, é a jóia de maior valor que possui. Quem furta a minha bolsa me desfalca de um pouco de dinheiro. É alguma coisa e é nada. Assim como era meu, passa a ser de outro, após ter sido de mil outros. Mas o que me subtrai o meu bom nome defrauda-me de um bem que a ele não enriquece e a mim me torna totalmente pobre.” (Shakespeare, “Otelo, o Mouro de Veneza”, ato III, cena 3, palavras de Iago a Otelo)

Orlando de Assis Corrêa e outros, advogados no Rio Grande do Sul e ex-Conselheiros Federais e também da OAB-RS escreveram que:

“…não existe, em nosso Direito Penal, a qualificação de infamante, para qualquer delito. Fala-se, e muito, em crime infamante, mas não há tipificação alguma que conduza a uma certeza quanto a esta qualificação….Pensamos que dificilmente algum Conselho Seccional possa negar a inscrição a algum interessado com base neste dispositivo. Melhor fora dizer-se simplesmente  “condenado por crime a cuja pena deva ser cumprida em regime de prisão fechada, etc.”  – Poderá, entretanto negar-se a inscrição sob a alegação de inidoneidade moral, configurada pela prática de crime pelo qual o interessado foi condenado.” (“Comentários ao Estatuto da Advocacia…”, AIDE EDITORA, Rio de Janeiro, 1997, páginas 65/66).

Pode ser considerado como infamante o crime praticado pelo advogado quando paga propina a servidor público com objetivo escuso. Tal situação está descrita na decisão do TRF-2 – AMS 200651010243872 RJ (DJU 22/06/2011) de cujo acórdão destacamos:

“O apelante .pagou a importância de R$ 200,00 (duzentos reais) a servidor do TRT da 1ª Região para que subtraísse processo judicial da Secretaria com o fim de beneficiar seu cliente evitando-se a execução em prejuízo do reclamante no citado processo trabalhista. Consta da Decisão que em virtude de prática de crime infamante, o impetrante tornou-se moralmente inidôneo para o exercício da advocacia.  Não obstante a alegação do apelante de que o conceito de crime infamante é indeterminado, ao se analisar a sentença condenatória do Juízo Criminal, verifica-se que o fato criminoso praticado pelo impetrante se enquadra no conceito da doutrina pátria, que considera como infame o crime praticado por advogado, profissional de direito, que repercute contra a dignidade da advocacia, atingindo e prejudicando a imagem dos advogados. O controle judicial do ato administrativo deve ser restringir aos aspectos formais e à legalidade da instauração do processo administrativo. .Não apontada qualquer irregularidade na instauração do processo administrativo em que foi aplicada a sanção de exclusão do impetrante dos quadros da Autarquia Profissional, há que se manter a sentença que denegou a segurança e manteve a decisão da OAB/RJ”.

Sem dúvida ficou demonstrado o desapreço de Joaquim à advocacia. Mas juramos defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça…”. Não podemos aceitar que tal desapreço tenha reduzido a dignidade da advocacia, atingindo e prejudicando a imagem dos advogados.

A dignidade da Advocacia — que o acórdão deveria grafar com A maiúsculo face ao disposto no artigo 133 da Constituição Federal — não é atingida com destemperos de magistrados que se julgam superiores a outras pessoas. Todos os que são mantidos com o dinheiro do Povo deveriam decorar, como se fosse texto de livro sagrado, estas palavras:

"Quem serve ao Estado serve ao público em geral. Ninguém dentre nós, no serviço público, é inimigo de ninguém. Bastam os inimigos do Povo, só por isso, também, nossos inimigos. Contra eles é que devemos estar fortes em nossa união. O Padre Antonio Vieira dizia que os sacerdotes são empregados de Deus. Assim, da mesma forma, o dinheiro que paga o salário do Presidente da República e dos seus Ministros, dos Deputados e dos Senadores, dos Ministros dos Tribunais é o mesmo que paga o salário de todos os outros servidores, do porteiro ao assessor mais graduado, do cabo ao general. Esse dinheiro vem de um único patrão para o qual trabalhamos, do qual somos empregados. Esse patrão é o contribuinte que paga impostos. Somos empregados do Povo brasileiro." Ministro Edson Vidigal, presidente do STJ  ,(in www.serpro.gov.notícias, 13.04.2004)

Ao afirmar que advogados levantam às onze da manhã, não cometeu ele qualquer ato que o tornasse inidôneo. Foi só uma brincadeira, ainda que sob a proteção daquela capa ridícula que usam os magistrados, como se fossem vampiros.

Ora, advogados podem levantar no horário que lhes aprouver, pois seus honorários  não são pagos pelo povo. Em São Paulo isso é ótimo, pois podemos almoçar em casa, reduzir o stress do transito e fazer nossos estudos e petições à noite. Expediente rígido deve ser observado por assalariados e mesmo para estes já há a possibilidade do trabalho em casa ou qualquer outro lugar. Advogado que não usa a tecnologia deveria ir ao museu e lá permanecer. Não me ofende quem disser que levanto a qualquer hora. Isso é problema meu.

Essa história de tentar impedir de advogar quem tenha ofendido a Advocacia é um grande engano e grave falta ao juramento: devemos defender a Justiça, não promover vinganças.

Por outro lado, a negativa de inscrição deve ser por maioria qualificada do Conselho Secional e sujeita-se a  recurso perante o Conselho Federal, além das medidas que o rejeitado deve impetrar no Judiciário. Salvo casos excepcionais como o já citado, a Justiça ordena a inscrição, face à garantia constitucional ao trabalho. Não importa que o cidadão tenha ou não aposentadoria e menos ainda seu valor. Trabalhar é direito inviolável de qualquer cidadão em qualquer lugar do mundo.

Afirmar que servidor aposentado possa cometer ilícitos aproveitando-se de seu status é admitir que haja cúmplices. Simplificando: dizer que juiz aposentado pode traficar prestígio nos tribunais, é admitir que existam meliantes a beneficiar-se desse tráfico e criminosos travestidos de advogados que concordam com tais safadezas. Simples assim. Imaginar que alguém quer ser advogado para agir de forma errada é comportamento aético, mesquinho, medíocre. E isso não é simples: é complicado.

Também parece-nos que o assunto vem sendo tratado de forma errada pela imprensa. Vem sendo publicada a rejeição como se fosse coisa decidida. Jornalistas possuem razão para odiar Joaquim Barbosa. Muitos advogados também. Jornalistas também não são as pessoas mais queridas do planeta.

A tentativa grotesca de colocar lado a lado numa foto de revista José Dirceu e Joaquim, afirmando que o primeiro, já condenado, é advogado e este não pode ser, apenas revela que o meu saudoso colega Aloysio Biondi tinha razão ao dizer: A falta de ética da imprensa chega a tal ponto, que se chega a inverter completamente  a informação para enganar o público.” (Caros Amigos, agosto/2000)

Acredito e espero que o conselho da OAB-DF rejeite a impugnação. Pelo que sei é excelente a atual administração da OAB-DF, cujo presidente tem seu trabalho reconhecido por todos. Não seria razoável que uma decisão equivocada coloque em risco esse justificado prestígio.

Quanto ao colega Joaquim: seja bem-vindo! Venha ver o que é bom para a tosse ou para a coluna! Venha para a trincheira, irmão! 

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  • é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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