Ideias do Milênio

"Existem armas nucleares no Paquistão para evitar a guerra"

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28 de novembro de 2014, 16h00

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Mohsin Hamid [Reprodução]Entrevista concedida pelo escritor paquistanês Moshin Hamid ao jornalista Silio Boccanera, para o programa Milênio, da GloboNews. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira com repetições às terças-feiras (11h30 e 17h30), quartas-feiras (5h30), quintas-feiras (6h30 e 19h30) e domingos (7h05).

O escritor Mohsin Hamid, nasceu no Paquistão, se educou nos Estados Unidos, passou parte de sua vida na Califórnia, em Nova York e em Londres, até voltar com mulher e filhas para La Roi, maior cidade e centro cultural em seu conturbado país de origem. Os livros de Hamid expõe sobre a forma de ficção a experiência de personagens divididos por geografia, cultura e identidade, entre os mundos da modernidade e da tradição. O fundamentalista relutante foi best seller mundial traduzido em vários idiomas, inclusive português, depois virou filme dirigido pela indiana Mira Nair. O personagem, um jovem paquistanês muçulmano mas não devoto, segue uma carreira de sucesso como operador no mercado financeiro de Nova York, vacinado pelas atrações do capitalismo americano, até que os ataques terroristas de Onze de Setembro abalam sua vida e o empurram relutante para uma trilha radical. A nova obra de Hamid ficção, recém lançada no Brasil, é Como se tornar podre de rico na Ásia emergente. A história se desenrola no Paquistão e poderia ser na China ou no Brasil, onde membros das classes emergentes buscam sucesso. A narrativa e os personagens são inventados mas dá para perceber os pontos comuns com a experiência pessoal de Hamid, formado pelas conceituadas universidades americanas de Princeton e Harvard, depois consultor empresarial, até o sucesso como escritor e a decisão de regressar ao Paquistão.  Como Hamid o personagem encontrou em seu país na volta um novo palco de extremismo religioso, corrupção no poder e ataques militares. Vive entre 180 milhões de pessoas espremidas no Paquistão, vizinho do conturbado Afeganistão e da quase inimiga Índia, além de China e Irã, um país pobre mais com arsenal nuclear.

Silio Boccanera — O título do seu novo livro recém-lançado no Brasil é Como ficar podre de rico na Ásia emergente. Ele é sobre o Paquistão, mas o leitor brasileiro vai encontrar muitas situações semelhantes às do Brasil. Diria que o livro é universal na forma como retrata a situação de um país emergente?
Mohsin Hamid —
Sim. O que eu fiz foi tirar os nomes. Não há nome de um país, de uma cidade e os personagens não têm nome. Tudo é descrito como é, e acho que, quando você faz isso, descobre muitas semelhanças. Existem cidades de 10, 20 milhões de habitantes na América Latina, na África e na Ásia. Pessoas que migram do campo, problemas parecidos de corrupção, falta de recursos, violência etc. Nesse sentido, eu tentei descrever a nova cidade, que é uma ideia bem universal.

Silio Boccanera — O personagem principal do livro faz fortuna e tenta nos ensinar a fazer o mesmo, mas ele fica rico vendendo água de forma desonesta, porque a água é contaminada. Você escolheu isso como um simbolismo do mal na sociedade atual, de fazer de tudo para enriquecer?
Mohsin Hamid —
As pessoas fazem de tudo para enriquecer. E ele se esforça para ferver a água antes e depois passa a vender água não contaminada. Mas ele começa, como você disse, pegando garrafas usadas, reenchendo com água da torneira e vendendo como água mineral. O que achei interessante na ideia da venda de água é que mais da metade de nosso corpo é água. Se um ser humano fica 2 ou 3 dias sem água, morre. Pode-se viver um mês sem comida, mas não sem água, principalmente num lugar quente. Portanto, nosso corpo é feito de água e precisamos de água. E isso, que era um bem comum, como o ar, agora está sendo comprado e vendido no mundo todo.

Silio Boccanera — Sendo privatizado.
Mohsin Hamid —
Exatamente. O que isso mostra é que o mercado atingiu um aspecto básico do necessário para sobrevivermos. E a penetração do mercado nessa área é dramática.

Silio Boccanera — Essa questão da água da torneira é uma tradição. Era uma área na qual o povo sempre pôde contar com a ajuda do Estado e de repente o Estado não a fornece mais. É preciso achar uma solução individual para um problema social.
Mohsin Hamid —
Com certeza. O comum está desaparecendo. Em alguns países, o sistema de educação pública é tão ruim que quem pode tira os filhos da escola pública, a polícia não faz seu trabalho, então quem pode contrata segurança, as estradas não são boas, então quem pode compra um jipe ou um SUV para não se preocupar com o estado das estradas. Esse afastamento dos bens comuns — e não só no Brasil e no Paquistão, nos EUA também acontece — está mudando nossa relação com o Estado. Não podemos contar com ele para quase nada. E, nesse ambiente, as pessoas ganham dinheiro como podem.

Silio Boccanera — Você fez referência à escrita e à vida cultural, e destaca que o paquistanês médio talvez não saiba os nomes de políticos, reis e rainhas, mas ele conhece os poetas. O povo conhece mesmo a poesia tanto assim?
Mohsin Hamid —
O povo conhece bem a poesia porque ela ainda cumpre sua função antiga no Paquistão: numa sociedade na qual, historicamente, grande parte do povo é analfabeta, a poesia cantada é a forma dominante de literatura, a música. Assim como todo brasileiro conhece Jorge Ben, João Gilberto e outros músicos, ou Bob Dylan nos EUA, temos poetas como eles no Paquistão, que talvez não fossem músicos, mas cuja poesia é cantada, apresentada e improvisada. Alguns deles já morreram há séculos. Isso faz parte da estrutura cultural, e não se trata da definição moderna de poesia: algo refinado, sofisticado e impresso, mas uma poesia como letra de música. Mas não letras de música pop, são letras sofisticadas. E elas são cantadas em tradições diferentes. Algumas tradições paquistanesas são como a música gospel. Outras se assemelham mais à música clássica. A minha mulher é uma cantora clássica do Sul da Ásia. E cada tradição encara a poesia de uma forma. Algumas são mais extáticas, outras mais refinadas, mas graças a isso é muito popular.

Silio Boccanera — Falávamos da imagem do Paquistão no exterior. Até que ponto a população paquistanesa — não só a elite, mas a população em geral — é exposta ao resto do mundo? Ela é informada através da imprensa?
Mohsin Hamid —
Sim. Ela é muito bem informada. Há cerca de 100 canais de TV no Paquistão. Ao menos 20 canais de notícias. E esses canais estão sempre veiculando informações sobre o resto do mundo. Infelizmente, muitos noticiários são tão parciais quanto o Fox News e outros nos EUA, e têm uma linha editorial antiestrangeira, muito nacionalista e uma postura reacionária. Não todos, mas vários. E temos celulares no Paquistão. A maioria das pessoas tem celular, são cerca de 150 milhões de usuários no Paquistão. Alguns têm smartphones, mas mesmo quem não tem recebe mensagens de texto com as últimas notícias, piadas sobre políticos etc. Nesse sentido, somos uma sociedade moderna conectada, não no nível da elite, mas no nível do povo. Se conversar com um taxista ou com um lojista, ele lhe dirá sua opinião sobre o uso de drones pelos americanos, sobre o que está acontecendo em Gaza e sobre o que acha do primeiro-ministro. O povo está conectado.

Silio Boccanera — O seu livro anterior, O fundamentalista relutante, também lançado aqui no Brasil, mostra a perspectiva de um jovem paquistanês muçulmano dividido entre os EUA e o Paquistão no período anterior, durante e posterior aos ataques de Onze de Setembro. Sabemos que não é autobiográfico, mas há semelhanças com a sua experiência. Então, a minha pergunta é: levando em conta seu nome, sua religião e sua aparência, o que mudou na sua experiência, na sua rotina? Como foi a sua experiência depois do que aconteceu?
Mohsin Hamid —
Acho que a principal consequência do Onze de Setembro foi tornar a existência de pessoas como eu muito mais problemática. De repente o mundo não queria mais pessoas como eu. E estou me referindo a quem é metade oriental, metade ocidental. Metade paquistanês, metade americano. Eu tinha 30 anos e tinha passado metade da vida nos EUA e metade no Reino Unido. Desde então, morei na Europa e hoje moro no Paquistão, mas, àquela altura, era meio a meio. E essas pessoas “híbridas”, que não necessariamente pertencem totalmente a um lado ou outro, ou que não acreditam em um só ponto de vista, acho que são elas que tanto pessoas como Osama bin Laden como políticos reacionários da Europa e dos EUA julgam ameaçadoras. Passaram a querer que essa mistura cessasse. Encaramos o Onze de Setembro como uma violência contra os EUA, mas também foi uma violência contra a americanização de países como o Paquistão. Nossas crianças crescem usando jeans, fazendo sexo e todo tipo de coisa, e querem deter esse processo. Então, cria-se uma tensão entre o Paquistão ou o Afeganistão e os EUA, ou entre os muçulmanos e os EUA. E tenta-se deter esse processo. Para mim, depois de anos viajando para os EUA, passei a ser parado no aeroporto, revistado, às vezes até retirado de voos. O Paquistão passou a ter homens-bomba, ataques, o terrorismo decolou. O mundo inteiro mudou. Mas não acho que seja sustentável. É muito mais difícil manter muros de pé do que destruí-los. Acho que essa mistura vai continuar e que esse momento vai passar, mas ele já casou muito mal.

Silio Boccanera — Acha que a chamada guerra ao terror acabou se transformando numa guerra aos muçulmanos?
Mohsin Hamid —
Acho que há um esforço para que isso não aconteça, mas ficou confuso, porque o que é o terrorismo? O americano médio não sabe bem, então os muçulmanos viraram o inimigo, apesar do esforço legítimo para que isso não acontecesse. E muitos conhecidos meus com formação ou nomes muçulmanos que moram nos EUA estão muito à vontade. Não são perseguidos. E, para ser justo, minorias religiosas no Paquistão são muito mais maltratadas do que os muçulmanos nos EUA, então não vou alegar que os muçulmanos são muito discriminados nos EUA. A discriminação existe, mas as minorias religiosas sofrem muito mais no Paquistão. Então isso acontece, mas os EUA estão mudando. Daqui a 50 anos, será muito diferente do que é agora. Terá uma população imensa falante de espanhol, provavelmente a maior parte não branca, terá muito mais asiáticos e muçulmanos, e talvez o país que eu achava que conhecia há 20 anos seja o que vai existir daqui a 50 anos.

Silio Boccanera — Você mencionou a percepção em relação a muçulmanos, asiáticos, paquistaneses em geral e, pegando o título do seu livro O fundamentalista relutante, tente nos dar uma ideia do que faz não um fundamentalista relutante, mas fundamentalistas comprometidos e ativistas entre jovens no Paquistão.
Mohsin Hamid —
Eu já viajei bastante, e muitas vezes vemos coisas parecidas com nomes diferentes acontecendo em lugares diferentes. Sejam os cartéis de traficantes do México ou as Farc na Colômbia, ou guerrilhas maoistas na Índia ou grupos paramilitares na África, em muitas sociedades numerosas, em geral pobres e muito desiguais atuais, existem gangues organizadas. Muitas vezes elas têm uma agenda política, mas o fato de existirem em países tão diferentes — o México é muito diferente do Paquistão, que é muito diferente de Angola ou do Congo, que é muito diferente da Nigéria —, mas isso acontece em todos eles. Eu acho que, de certa forma, os homens jovens, principalmente, neste mundo desigual de hoje, se filiam a causas que permitem que realizem algum impulso heroico, que permitem que lutem contra uma grande injustiça e, muitas vezes, essas causas se transformam em violência, extorsão, tráfico de drogas etc. No Paquistão, acho que é isso que acontece. Muitas pessoas que são atraídas para o fundamentalismo violento não eram particularmente religiosas. Aliás, as pessoas mais religiosas não se tornam fundamentalistas. São pessoas levemente religiosas, geralmente homens entre a adolescência e os 20 anos, que são atraídas. E acho que os homens jovens estão enfrentando uma crise no mundo de hoje. No caso do Paquistão, se juntamos essa crise à sensação de vitimização, de que o Islã e os muçulmanos estão sendo atacados, esses jovens se revoltam contra isso. Acho que o fenômeno é esse. Não acho que ele nasça da crença religiosa. Não acho que a religião tenha tanta ligação. E em O fundamentalista relutante, eu escrevi sobre um personagem que não é muito religioso para mostrar que, de certa forma, é possível seguir esse caminho sem a presença da religião. O protagonista do livro, até onde sabemos, é ateu ou agnóstico, mas ele deixa a barba crescer, age de certas formas e achamos que ele é fundamentalista. E fiz isso porque eu queria tocar na questão, que acho verdadeira, de que não se trata de uma questão religiosa. É uma questão sociológica e política.

Silio Boccanera — Todos nós nos acostumamos a ler sobre o Talibã no Afeganistão e a transferência para o Paquistão, para fugir das coisas. Mas agora existe um Talibã paquistanês, nascido e criado localmente.  É uma preocupação no país?
Mohsin Hamid —
É, sim. De certa forma, o Estado paquistanês há muito tempo apoia grupos paramilitares no Afeganistão para atingir um certo grau de controle sobre o Paquistão. E agora há o Afeganistão e talvez a Índia apoiando grupos paquistaneses, inclusive o Talibã. É uma guerra por procuração travada ao longo da fronteira, mas conforme ela atinge o Paquistão, cada vez mais pessoas ficam cansadas desses grupos. E é possível que uma sociedade mude de atitude com o tempo, assim como os militares e o governo. Espero que mudem no caso do Paquistão.

Silio Boccanera — Você mencionou o apoio a grupos paramilitares ao longo dos anos e também os militares. O governo no Paquistão é civil, mas o verdadeiro poder, como aconteceu na América Latina por muitos anos, está na mão dos militares.
Mohsin Hamid —
É muito interessante. O verdadeiro poder… De certa forma, parte muito importante do poder está com os militares, mas os militares não deixaram os governos da América Latina ou do Paquistão por benevolência. O fato é que hoje nossas sociedades são muito numerosas. Os exércitos não cresceram o suficiente comparados à população dos países. É muito mais difícil para os militares controlarem o Paquistão hoje do que era há 30 anos, em parte porque a população cresceu, em parte porque a situação é muito mais complicada — os grupos estão mais armados — e em parte porque, através da imprensa, dos telefones e outras tecnologias, o povo está mais bem informado. E os militares acham muito mais fácil influenciar nos bastidores do que assumir a dor de cabeça de governar um país, o que é uma forma de progresso. Os militares continuam importantes, mas raramente tomam o controle. E, quando tomam, como no Egito — que acho muito diferente do Paquistão e do Brasil, porque não tem uma tradição democrática forte —, o resultado é muitas vezes um banho de sangue. Não é como era há 50 anos, quando tomavam o poder num golpe, todo mundo os saudava e pronto.

Silio Boccanera — O resto do mundo se preocupa com o fato de o Paquistão ter armas nucleares, assim como a Índia e vários outros países, mas a preocupação é com o perigo disso. E quanto aos paquistaneses? Eles se sentem ameaçados ou orgulhosos dessa conquista?
Mohsin Hamid —
Claro que há um grau de orgulho, mas é preciso ter em mente que existem armas nucleares no Paquistão para evitar a guerra. O Paquistão vive uma espécie de guerra fria com a Índia. A Índia é um país muito maior, e é bem possível que graças às armas nucleares Índia e Paquistão evitaram travar uma guerra terrível recentemente. Não sou fã de armas nucleares, mas não acho que sejam tão ruins assim no Sul da Ásia. Talvez evitem que indianos e paquistaneses se matem. O outro aspecto disso é que o que vimos acontecer com países que não têm armas nucleares não é muito bom. O Iraque não tinha armas de destruição em massa e foi destruído. O Afeganistão também não e foi destruído. A Síria nunca teve armas nucleares e foi destruída. A Líbia também. Os países que renunciam às suas armas nucleares não são bem-vindos de volta à comunidade internacional como irmãos e a paz passa a reinar. Acho que os paquistaneses, de forma muito pragmática, acham as armas nucleares algo positivo. Pessoalmente, acho que não é tão simples assim. Acho que um conflito entre Índia e Paquistão pode se intensificar e as armas podem ser usadas. Se acontecesse, seria o conflito mais sangrento da história da humanidade. Não acho impossível. Acho até possível. Uma atrocidade terrorista pode precipitar uma série de retaliações que eliminaria todos nós. Mas a maioria das pessoas prefere assumir esse risco e manter essa intimidação, da mesma forma que o Ocidente quis se prevenir contra o Pacto de Varsóvia e a URSS na Guerra Fria.

Silio Boccanera — É uma lição que pode estar motivando o Irã.
Mohsin Hamid —
Com certeza.

Silio Boccanera — Todos estão sendo atacados, a não ser quem tem armas nucleares.
Mohsin Hamid —
Certamente. Acho que o princípio que deveríamos estar discutindo é o de ninguém ter armas nucleares. Eu não acho que um mundo hierarquizado no qual os EUA e a Rússia têm armas nucleares e o resto do mundo não tem faça sentido, porque os EUA invadiram muito mais países do que o Paquistão. Não quero dizer que os EUA são um país terrível. Não são. Se outros países fossem tão poderosos, provavelmente seriam piores em relação às invasões. O Paquistão seria muito pior, se tivesse o poder, mas não confio em ninguém com armas nucleares. Mas, se não adotarmos o desarmamento global, veremos a corrida armamentista que está acontecendo.

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