Senso Incomum

Cumprir ou não a lei? Dois casos de “antipositivismos” equivocados

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27 de novembro de 2014, 7h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]Anti(ou pós)positivismos “fakes”
Caso 1.
Os leitores sabem de minha luta pelo cumprimento das leis e do Estado Democrático. Por incrível que pareça, isso soa antipático. Tenho sido chamado de positivista exegético (na verdade, chamam-me de positivista assim no geral, porque a malta não sabe sequer que existem vários positivismos — aliás, gostaria de ver como essa gente se viraria numa corte norte-americana, terra dos precedentes, da Constituição multicentenária, da Corte Warren e de Ronald Dworkin, onde ainda predomina, nada obstante, o… positivismo jurídico! Será que os gringos não têm [ou não são] uma democracia? Será que lá ainda se confundem direito e lei? Será que temos lições a ensiná-los? Ou é o contrário? Ou é de aprendizagem recíproca que se trata? Escreverei sobre isso no futuro, não me deixem esquecer. Nesse meio tempo, lembrem: há outros positivismos para além do paleojuspositivismo, ou: o furo é mais embaixo. Mais sobre isso num instante.). Pois eu quero dizer que, do modo como se comportam os juristas e em especial os julgadores em terrae brasilis, mais um pouco e, de fato, transformar-me-ei, com ênclise e tudo, em um pandectista (e da ala mais conservadora). De todo modo, repetindo T.S. Eliot — afinal, sofro de LEER — em terra de fugitivos, quem anda na contramão parece que está fugindo.

Portanto, na contramão, insisto em dizer que aplicar-a-lei-não-significa-positivismo. Querem que eu repita essa obviedade? Pois aí vai: “Cumprir a lei nos seus limites semânticos — entendidos no plano de uma hermenêutica adequada ao Constitucionalismo Contemporâneo — não é uma atitude positivista”.

Pois um bom exemplo da falta de compreensão da teoria do direito e do que seja “positivismo” e “antipositivismo” (as palavras estão entre aspas deliberadamente, porque se trata de positivismo e antipositivismo fakes) pode ser visto na decisão do juiz da comarca de Lageado (RS), que, a pretexto de não cumprir um dispositivo de lei, arvorou-se na condição de antipositivista, criticando o advogado que queria apenas que ele cumprisse um dispositivo legal que determina que ele, juiz, só pode fazer perguntas complementares para as testemunhas (artigo 212 do CPP).

Vamos ao caso e seus detalhes.
Em ação penal (017/2.13.0000435-7), o juiz, confessadamente, não cumpriu o disposto no artigo 212 do CPP. Como ele mesmo diz na sentença, as perguntas foram inicialmente feitas diretamente por ele, embora a lei diga que “as perguntas serão formuladas pelas partes, diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.”. No parágrafo único fica claro que “sobre pontos não esclarecidos, é lícito ao magistrado complementar a inquirição”. Se eu ainda sei ler, quem começa perguntando são as partes e se permite que o juiz faça perguntas complementares.

Na sequência, para justificar seu ato, diz, com todas as letras, que o advento da Lei 11.690/08 não provocou “perfunctória modificação na coleta de provas, nos termos do art. 212, do CPP”. Se eu fosse me firmar no bom vernáculo pátrio, diria que sua Excelência se contradisse já de saída, uma vez que a palavra “perfunctória” quer dizer o contrário do que ele queria dizer. Mas não vou tripudiar em cima disso, porque pode acontecer a qualquer pessoa. Vamos dizer que ele quis dizer que “a nova lei não produziu alterações profundas ou significativas” no modo de inquirição das testemunhas.

Avançando, o magistrado faz uma crítica moral à nova lei, porque, para ele, a previsão de inquirição direta pelas partes representa um “tendencioso questionamento dos atores processuais”. Veja-se. Para ele, o legislador andou mal. E ele, juiz, pode corrigir esse equívoco.

Mas, tem mais. Se deixasse que as partes se portassem segundo o que diz a lei, ele, juiz, transformar-se-ia em figura de “palha” (sic), o que propiciaria — e as palavras são dele — um retorno à ideologia burguesa, “quando do iluminismo”. Em seguida, critica o modelo napoleônico “inaugurado pelo iluminismo” (sic) que separou as funções de legislar e julgar (onde estava localizado o modelo do juiz boca da lei). Esse modelo, aduz sua Excelência,

“vulgarizou a retórica do Estado ideologicamente neutro, alheio às problemáticas subjacentes e mantenedor de uma liberdade bem como de uma igualdade puramente formal. (…). Disso resultou um judiciário inerte no sentido pejorativo, alheado à problemática social, neutro e reprodutor da lei predisposta pelos representantes burgueses no parlamento. Fez-se acordo de cavalheiros no qual, no prisma metodológico da lógica formal subsuntiva, o judiciário intermediou a construção das verdades positivadas, porém eticamente desprovidas da efetiva legitimação social. Primado da segurança abstrata (e abstraída da lei) em detrimento de quaisquer outras diretrizes”.

Consequentemente, segundo se depreende da leitura da decisão, cabe a ele, juiz, alterar esse estado de coisas, saindo do lugar da “neutralidade” e indo buscar a solução para os “reclames éticos da sociedade” (sic). E cita lições de psicologia e neuro-linguística. Mas, indago, no que a psicologia e a neuro-linguística poderiam ajudar nisso? E como aferir o sentido do que seja “reclames éticos da sociedade”?

Em síntese, para ele a lei que estabeleceu essa alteração no artigo 212 do CPP permite 

“deixar a testemunha, desde sua chegada ao recinto da audiência, sob a sugestividade das partes, [o que] significa amealhar à sua consciência humana fatores argumentativos e interesses alheios (por naturais às partes litigantes) à sua condição de prova no processo. Some-se a isto o ambiente do Judiciário, no qual a grande maioria da população brasileira (miseráveis) frequenta sem ter noção do que acontece. Chega-se a temer os símbolos e rituais do fórum: o juiz na altitude de verdadeiro púlpito; a voracidade das partes; etc. Com efeito, jurídica e neuro-linguisticamente, aconselhável que a introdução questionadora e genérica seja desencadeada pelo juiz” (grifei).[1]

Pronto. Com essa argumentação, rechaçou a preliminar de nulidade por falta de cumprimento do artigo 212 do CPP e condenou o réu. E o fez a partir da prova que ele recolheu a partir da inquirição à revelia do que prescreve uma lei democraticamente votada e que jamais teve a sua inconstitucionalidade discutida. Claro, alguém dirá — e provavelmente o próprio magistrado — o STJ e o STF (e os tribunais) também não cumprem a “letra” do artigo 212 do CPP. Afinal, respaldado na doutrina de Luis Flávio Gomes, o STJ entendeu que, em vez de implementar o sistema acusatório — ratio da alteração produzida no artigo 212 — era preferível manter a tradição (sic). Já o STF não enfrentou de frente o problema, apenas dizendo que, se não for demonstrado o prejuízo, a nulidade é relativa. Mas não disse que o dispositivo não deveria ser cumprido.

Aliás — e aqui a ironia fica, na medida do possível, de lado —, esse é o grande mérito do Magistrado-de-Lageado (cujo nome não cito, até, como forma de homenageá-lo; meu objetivo não é criticar a sua figura pública,  mas, academicamente, os fundamentos tornados explícitos em sua decisão, pela qual deve accountability à sociedade): admitir aquilo que o STF e o STJ não tiveram a coragem de dizer: “nego cumprimento a uma lei, independentemente de sua óbvia constitucionalidade, porque não concordo com o legislador”. O juiz está, na hipótese virtuosa, preocupado em fazer justiça, e avalia ser mais difícil consegui-lo se cumpridas as regras construídas pelo legislador. Então, sem qualquer constrangimento, e até afetando alguma indignação, Sua Excelência, explicita-implicitamente deixa transparecer algo como: — não sou neutro, não estou alheio à problemática social e não trabalho com verdades positivadas. E mais: — não deixarei que (minh)a testemunha fique sob a sugestividade das partes; protegerei sua consciência de fatores argumentativos e interesses alheios e, com base até em neurolinguistica (Santo Deus!), resolverei o problema com a minha introdução questionadora e genérica.

Paradoxos e contradições no e do judiciário
Mas, o que importa aqui é uma das grandes perplexidades do direito pós-1988. De pronto, uma constatação: antes de 1988, em que era muito forte o imaginário formalista-positivista (aqui, sim, positivista no sentido tradicional), muitas e muitas vezes era desejável que os juízes fizessem um raciocínio que afastasse a velha tese do juiz-boca-da lei. Mas, lamentavelmente, na maior parte das vezes a crítica do direito ficava a ver navios, com a permanência do judiciário na fé de uma dogmática jurídica adormecida e distante dos problemas representados por um regime autoritário, em que sequer tínhamos uma Constituição (no sentido estrito da palavra). Na verdade, parece que a dogmática ainda não acordou desse sono inquisitorial.

Só que, agora, na medida em que vivemos em um regime democrático, com uma Constituição compromissória-vinculante e um sistema de controle de constitucionalidade dos mais complexos e completos do mundo (com ADI, ADC, ADPF, além do controle difuso), não me parece saudável e/ou desejável que o judiciário se segue a aplicar uma lei que não tem qualquer eiva de legalidade-constitucionalidade.

É o caso “dos autos” em discussão, quando o juiz deixa claro que, se ele cumprisse os ditames do artigo 212 e, portanto, deixasse as partes fazerem o interrogatório das testemunhas, ele estaria tomando uma atitude positivista, típica do Estado napoleônico (as palavras são dele), em que as funções de legislar e julgar estavam separadas. Para o magistrado, andou mal o legislador ao estabelecer o que estabeleceu, porque isso conspurca a vontade das testemunhas ou algo desse naipe, conforme se pode ler na sentença. Mais ainda, se ele cumprisse a lei, estaria fazendo subsunção, o que, ao que parece, seria muito ruim nos tempos atuais…

Falta, parece-me, uma discussão mais aprofundada sobre as lições trazidas pela Constituição para o âmbito do processo. Muito se discutiu sobre os modelos de organização do processo: inquisitivo (pesquisa oficial, ingerência do Poder Público na demanda e nos meios de prova, e tal) versus dispositivo (protagonismo das partes, juiz inerte etc.). Se, no âmbito do processo civil, o arranjo do Estado Constitucional parece apontar para um terceiro modelo, em que se combinam alguns aspectos de cada uma das estruturas precedentes (na verdade, combinam-se aspectos atinentes ao Estado Liberal, com seu liberalismo processual, e ao Estado Social, valendo a lembrança do chamado socialismo processual; chega-se ao tal modelo comparticipativo, que tem, inclusive, fortes reflexos no novo CPC), no processo penal, essa discussão ainda precisa de maior amadurecimento doutrinário e institucional. Mas, de qualquer forma, é certo que se faz necessário um aggiornamento do discurso processual penal. Sempre lembro que o processo penal tem traços historicamente inconstitucionais, justamente, porque inquisitivos. É preciso oxigenação rumo a um sistema acusatório, ainda que haja bastante discussão sobre sua extensão e significado. Assim, retomando o fio do raciocino e resumindo bastante, ainda que não se instaure, do dia para a noite, um sistema completamente adversarial no Brasil (não se sabe como isso se daria), é certo que as inovações legislativas que, pontualmente, apontarem para esta direção, não podem ser consideradas inconstitucionais. E é neste contexto que deve ser lido o artigo 212 CPP, resultado de um devido processo legislativo e que deve, por isso e por seu conteúdo, ser aplicado.

Preocupa-me sobremodo tudo isso. Como me preocupa o fato de, seguidamente o judiciário pretender corrigir a legislação a partir de juízos morais e não constitucionais. Se o juiz ou judiciário lato sensu não quiser aplicar uma lei, deve utilizar os mecanismos que estão a sua disposição, como o controle da constitucionalidade (no caso “dos autos”, difuso), critério de resolução de antinomias, etc, como venho explicitando em Jurisdição Constitucional e Decisão Juridica, quando sustento que o judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei em seis hipóteses. Caso contrário, mesmo a contragosto, o juiz deve aplicar a lei.

Moral não corrige direito, não me canso de denunciar. E não vou cansar os leitores acerca da diferença e cooriginariedade entre direito e moral e as consequências disso tudo. E  antes que alguém venha de novo com o papo de que “quem quis separar direito e moral foi Kelsen”, defiro uma liminar epistêmico-explicitativa como adiantamento de tutela gnosiológica: Kelsen separou a ciência do direito da moral e não o direito da moral. No mais, foi um pessimista e também é culpado de tudo isso que está aí, em face de tese de que “a interpretação que os juízes fazem da lei é um ato de vontade”. Já falei disso aqui, quando alertei para a maldição do oitavo capítulo da TPD.

No mais, quero apenas dizer, de novo, que é preciso estar alerta, porque em tempos de (alegada) indeterminação do direito e de proliferação de teses que se advogam pós-positivistas, corremos o risco de fragilizar a autonomia do direito. É preciso estar atento porque, no mais das vezes, o discurso que se afigura com a aparência do novo, carrega consigo o código genético do velho, reafirmando, no fundo, aquilo que alhures nomeei de “vitória de Pirro” do positivismo jurídico.

Por isso, é extremamente preocupante que setores da comunidade jurídica, por vezes tão arraigados aos textos legais, neste caso específico ignorem até mesmo a semanticidade mínima. [2] O judiciário como um todo ignora o artigo 212 do CPP. 

No mínimo, levemos o texto jurídico a sério! Friedrich Müller nos diz: a norma deve caber no programa normativo que a originou.  Portanto, não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”. Obedecer a lei[3] democraticamente construída (já superada a questão da distinção entre direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda antiga (positivismo primitivo). Não vou explicar isso de novo. Portanto, estamos falando, hoje, de uma outra legalidade (lembro sempre de Elias Diaz).  

Um lembrete para os novos “neo-póspositivistas” ou “neo-anti-positivistas” (para colar na geladeira): é positivista tanto aquele que diz que texto e norma (ou vigência e validade) são a mesma coisa, como aquele que diz que “texto e norma estão descolados” (no caso, as posturas axiologistas, realistas, pragmaticistas, etc.). Para ser mais simples: Kelsen, Hart e Ross foram todos positivistas, cada um ao seu modo. Do mesmo modo que os neoconstitucionalistas, que acreditam na discricionariedade e na ponderação, também o são. E disso todos sabemos as consequências.  Ou seja: apegar-se à lei pode ser uma atitude positivista ou pode não ser. E não apegar-se à lei pode caracterizar uma atitude positivista ou antipositivista. Por vezes, “trabalhar” com princípios (lembremos do pamprincipiologismo) pode representar uma atitude (deveras) positivista. Utilizar os princípios para contornar a Constituição ou ignorar dispositivos legais – sem lançar mão da jurisdição constitucional (difusa ou concentrada) – é uma forma de prestigiar a irracionalidade constante no oitavo capítulo da TPD de Kelsen. Não é desse modo, pois, que escapamos do tal de positivismo. Que existe sob as mais variadas facetas.

Portanto, muito cuidado. O positivismo é bem mais complexo do que a antiga discussão “lei versus direito”… E a jurisdição constitucional é uma garantia para que, tanto as leis inconstitucionais não sejam validadas, quanto às que forem constitucionais sejam efetivamente aplicadas. Simples assim!

Só uma coisa, ainda: o caso sob comento (crime de furto) não é relevante. Provavelmente poderia haver provas para condenação independentemente da preliminar levantada pelo advogado. Não li os autos. O que importa discutir, aqui, é a argumentação utilizada pelo magistrado para afastar a aplicação de uma lei e o que ele entende por “positivismo jurídico”. Esse é o busílis da questão.

Caso 2. E um juiz de Goiás não gosta de formalismos…
No processo 201402005339, de Rio Verde (GO), o juiz condenou o réu a mais de oito anos de prisão, mesmo que não estivesse presente o laudo de constatação definitiva da substância entorpecente. Disse que era avesso ao formalismo processual. E que a hermenêutica deve ir além disso. Consequentemente, como ele não é formalista, passou por cima da lei e condenou o réu. Afinal, cumprir a lei no Brasil é ser positivista! Simples assim. E incrível! O Brasil vai mal.

Post Scriptum: Enquanto isso,
…foi lançado o livro Direito Penal Mastigado. Vejam no Google. Eu avisei que esse dia chegaria. É o armagedom epistêmico. A batalha final. O Brasil não vai bem.  Mas não vai, mesmo.

Faz escuro…mas eu canto. Em terra de fugitivos, andar na contramão dá a impressão de fuga… Pois é. T.S. Eliot tinha razão.


[1] Volta, de novo, a questão da divindade. Essa chatice não tem limites. Faço um chamado para Néviton Guedes e Alexandre Morais da Rosa, ambos juízes, para que contestem. De juiz para juiz pode ser mais eficiente a crítica… 

[2] Permito-me remeter o leitor para vários livros ou colunas aqui do Conjur em que explicito isso nos mínimos detalhes. Se fosse colocar no twitter, seria: #aplicar a letra da lei não é, necessariamente, uma atitude positivista.

[3] O que quero dizer quando me refiro ao cumprimento da lei (e incluo nisso a discussão daquilo que denomino de limites semânticos lidos a partir da hermenêutica)? Isso explico em Verdade e Consenso e na coluna Observatório Constitucional do dia 25 de outubro.

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