Direito de Família

Mantenho a tese: é inconstitucional repristinar a separação

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25 de novembro de 2014, 14h10

Os ilustres juristas Lauane Volpe Camargo, Luiz Henrique Volpe Camargo e Dierle Nunes publicaram repto ao meu artigo no qual defendi a tese de que a tentativa de ressuscitar a separação judicial feria a Constituição. Dizem eles, em resumo, que a EC 66 não baniu a separação judicial do mundo jurídico. Dizem que o sistema dual obrigatório foi substituído pelo sistema dual opcional, facultativo. Assim, segundo os meus críticos, o casal pode optar, desde logo, por se divorciar, como também optar por apenas de separar. Para eles, ao que entendi, a EC 66 serviu apenas para dizer que não há mais a proibição do imediato divórcio. Mas se alguém quiser só se separar, pode.

De minha parte, fico com a minha posição anterior, baseada no constitucionalismo. E, de pronto, invoco o cabeçalho da EC publicada no DOU lê-se (como todos sabem, sou adepto da hermenêutica filosófica, pela qual “se queres dizer algo sobre um texto, deixe que este te diga algo antes):

Dá nova redação ao parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de um ano ou de comprovada separação de fato por mais de dois anos.

Por isso, entendo que a separação foi varrida do mapa. Estava na Constituição e agora foi expungida. Qual seria o sentido da EC 66? Não esqueçamos que, como já referi, um pouco de interpretação história por vezes é importante, pelo menos para, no limite, “desempatar” o jogo interpretativo. Vejamos o que diz a justificativa da EC 66:

“Como corolário do sistema jurídico vigente, constata-se que o instituto da separação judicial perdeu muito da sua relevância, pois deixou de ser a antecâmara e o prelúdio necessário para a sua conversão em divórcio; a opção pelo divórcio direto possível revela-se natural para os cônjuges desavindos, inclusive sob o aspecto econômico, na medida em que lhes resolve em definitivo a sociedade e o vínculo conjugal.”

Não fosse isso suficiente, fico com o que restou do texto da Constituição. E como ficou o texto constitucional depois da EC 66? Simples. Ficou assim:

“O casamento pode ser dissolvido pelo divórcio”.

O que isto quer dizer? Quer dizer que, na medida em que a família e a dissolução do casamento está na Constituição (não por culpa minha — na verdade, por mim, isso seria matéria de lei ordinária), tem-se que a única maneira que existe para fazer uma dissolução do vínculo matrimonial é o divórcio. Isso exsurge de uma hermenêutica da Constituição, porque sequer o texto constitucional estabelece algo como “lei ordinária pode estabelecer outras formas de dissolução”.

Daí minha indagação: banir a separação judicial do sistema normativo significa — mesmo — afrontar a privacidade das pessoas? Qualquer que seja a opção teórica defendida — banimento ou manutenção da separação —, a verdade é que o problema não se situa no plano pretendido pelos articulistas justamente em vista da EC 66, que implodiu o sistema dual obrigatório. Antes, havia sim afronta à liberdade da vida familiar (que decorre da privacidade), pois o Estado, mediante lei, criava embaraços para a obtenção do divórcio e realização de novos casamentos. Isso acabou. Algo bem diferente é o Estado eliminar a separação judicial: fazendo isso tão-só exorcizou o sistema dual obrigatório, além de facilitar e robustecer o divórcio, já que agora por meio dele sociedade conjugal e vínculo conjugal dissolvem-se mutuamente.

Não há aí, com a devida vênia, qualquer atropelo à liberdade da vida familiar ou aos demais desdobramentos da privacidade. O sistema normativo, ao contrário do que sugerem os articulistas, não estabelece a “ditadura do divórcio obrigatório”: podem muito bem, seguindo a sua própria autonomia da vontade, optar por simplesmente se afastarem um do outro pelo tempo que reputarem necessário para repensar a relação. Alternativa que além de menos burocrática — nada de escrituras públicas ou ações judiciais para terminar com a sociedade conjugal — , pauta-se na economia e sensatez, essa última uma qualidade que se presume incorporada ao caráter daqueles que, por alguma razão, não se sentem ainda preparados para o divórcio.  

Aliás, é preciso permanecer vigilante para que não tenhamos um modelo interpretativo que deprecie um dos mais evidentes corolários da supremacia constitucional que é a interpretação conforme à Constituição. No caso, cuida-se de rejeitar formulações que impliquem uma interpretação da Constituição conforme as leis cuja ideia motriz, segundo Canotilho, está na premissa de que o processo de concretização da Constituição poderia ser auxiliado pelo recurso a leis ordinárias. É certo que existe um diálogo entre constitucionalidade e infraconstitucionalidade. Mormente nos casos de reserva de lei, algo que não ocorre no caso em tela. Aqui, o espaço de conformação legislativa foi encurtado severamente pelo texto constitucional. No caso, a futura lei — caso venha a ser aprovada — estará introduzindo, ela própria, um sentido inconstitucional. Admitir isso, como bem diz o mestre português, seria admitir que a legalidade da constituição sobrepor-se-ia à constitucionalidade da lei.[1]

De todo modo, quero dizer que minha preocupação foi com relação à Constituição e ao constitucionalismo. Não quis discutir a (in)pertinência do instituto da separação judicial para o nosso direito privado. Sem embargo de que, para mim, a possibilidade de “escolher” pelo antigo modelo dual ou pelo divórcio direito, não implique, necessariamente, maior deferência à autonomia privada e, consequentemente, menor intervenção do Estado na vida dos casais. Ao contrário, o corriqueiro é que, no decorrer do processo de separação judicial, o Estado intervenha a todo momento, para dar vazão aquilo que virou certo consenso no direito de família de que, durante tal processo, deve-se privilegiar a reconciliação do casal em detrimento da dissolução da sociedade conjugal. Entre outras coisas. Parece-me que, no caso, há muito mais Estado intrometendo-se na vida conjugal justamente quando existe a possibilidade da separação. De todo modo, a discussão sobre a separação e o divórcio foram apenas pano de fundo para uma discussão maior. Minha preocupação é com o precedente que pode ser aberto. Se a moda pega, qualquer matéria que esteja na Constituição e que venha a ser expungida via Emenda pode vir a ser “rediviva” por lei ordinária. Pensemos no seguinte exemplo: por emenda constitucional, retira-se da Constituição um inciso sobre competência de legislar sobre determinado tributo. Dois ou três anos depois, na feitura de um novo Código Tributário, a matéria volta, desta vez por lei ordinária. Com isso, estaríamos acabando com a rigidez da Constituição.

Por tais razões, respeitando as opiniões de meus três inteligentes interlocutores, mantenho minha tese acerca da matéria, por entender estar mais adequada ao constitucionalismo contemporâneo.


[1] Cf. Canotilho, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 1233-1234.

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