Licença para matar

EUA discutem doutrina do uso de força policial após revolta em Ferguson

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25 de novembro de 2014, 17h43

As imagens na televisão da noite desta segunda-feira (24/11) em Ferguson, Missouri, eram incendiárias. Não só pelos carros de polícia e prédios em chamas, mas pela revolta da população negra, apoiada por parte da população branca, depois que um grand jury do estado decidiu não denunciar o policial branco que matou um adolescente negro, desarmado, com nove tiros.

Um grand jury é um organismo que se exerce a dupla função, separadamente dos tribunais, de “investigar possíveis condutas criminais”, produzindo documentos, e de denunciar ou se recusar a denunciar suspeitos de crimes. Na manhã desta terça, diversas entidades e publicações americanas começaram a discutir os aspectos jurídicos desse tipo de episódio que, normalmente, acaba em impunidade dos policiais. 

Garantias legais
A impunidade não se deve a desrespeito à lei. Ao contrário, é resultante de legislações estaduais, que abrigaram a chamada “doutrina do uso da força” – uma espécie de “licença para matar”, quando o policial acredita que está em perigo de vida ou de ferimento grave. Os jornais The Wall Street Journal, USA Today e outras publicações trazem o texto da lei de Missouri. Esse tipo de lei varia de estado para estado, porém a de Missouri é a mais “amigável aos policiais”, dizem as publicações.

A lei diz que o uso de força letal é justificado quando um policial, ao efetuar uma prisão ou tentar impedir uma fuga, “razoavelmente acreditar que o uso de tal força letal é imediatamente necessária para efetuar a prisão e também razoavelmente acredita que a pessoa a ser presa: a) cometeu ou tentou cometer um crime; b) está tentando escapar com o uso de arma letal; c) pode, de outra forma, colocar sua vida em perigo ou infligir ferimentos físicos graves, a não ser que seja preso imediatamente”.

Com essas garantias, o policial não precisa se preocupar com alternativas de defesa pessoal, como o uso de armas de eletrochoque, sprays, tiros nas pernas ou mesmo confronto físico, se é melhor treinado do que o suposto criminoso. Isso não causaria a revolta que se estendeu para várias cidades americanas, se os casos sucessivos de confronto não fossem entre policiais brancos e suspeitos negros.

“A decisão do grand jury não nega o fato de que a trágica morte de Michael Brown faz parte de uma tendência nacional alarmante de policiais usando força excessiva contra pessoas de cor, frequente durante encontros de rotina”, disse ao USA Today o diretor-executivo da American Civil Liberties Union (ACLU) em Missouri, Jeffrey Mittman.

“Na maioria dos casos, os policiais e os departamentos de polícia não são responsabilizados. Embora muitos policiais façam seu trabalho com respeito às comunidades que servem, precisamos enfrentar a profunda desconexão e desrespeito que muitas comunidades de cor experimentam com suas polícias locais”, acrescentou.

Transparência
Algumas organizações criticaram a Promotoria por levar o caso a um grand jury, em vez de levá-lo ao tribunal do júri. Um grand jury opera em segredo para que as testemunhas não se sintam ameaçadas. Mas, por operar em segredo, lhe falta transparência. Por isso, não é bem visto por algumas entidades, quando têm de decidir casos como o de Ferguson. O presidente da Conferência de Prefeitos dos EUA, Kevin Johnson, disse aos jornais que a entidade acredita que o caso de Ferguson deveria ter ido ao tribunal do júri, não ao grand jury.

“Os prefeitos da nação têm a forte convicção de que os procedimentos deveriam ocorrer em um tribunal aberto nesse caso, de forma que as provas pudessem ser apresentadas em um fórum público e um veredicto pudesse ser pronunciado por um júri”, declarou o presidente da Conferência dos Prefeitos dos EUA.

Pelo que vazou do grand jury, as provas testemunhais não foram consistentes, em alguns casos contraditórias. Artigos nos Washington Post e no Jornal da ABA (American Bar Association) discutem a alta falibilidade das provas testemunhais. Segundo os jornais, já está mais do que comprovado que a memória humana não é confiável.

Um estudo da Universidade da Califórnia apresentou a antigas testemunhas histórias verdadeiras, baseadas em seus testemunhos anteriores, e histórias inventadas, embora consistentes. Muitos participantes do estudo confirmaram a história inventada como se fosse a verdadeira. No caso de Ferguson, isso poderia explicar os testemunhos contraditórios. Prevaleceu no grand jury, como a Promotoria declarou em entrevista coletiva, o testemunho favorável ao policial.

Na esfera estadual, o caso está encerrado na Justiça. Mas não está oficialmente encerrado na esfera federal, uma vez que o Departamento de Justiça continua a investigar o caso. Mas, já se sabe que será uma investigação infrutífera. “O Departamento de Justiça terá de provar que o policial usou força excessiva com o intuito de violar os direitos civis da vítima. Mas essa é uma missão quase impossível”, disse aos jornais o professor de Direito da Universidade de Pittsburg David Harris.

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