Diário de Classe

Por que alguns juízes precisam se
sentir deuses e a inspiração laica

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22 de novembro de 2014, 7h01

Spacca
A teoria do Direito contemporâneo criou metáforas para entender a figura do juiz. Quais são elas? François Ost aponta as metáforas de Júpiter, Hércules e Hermes: os três modelos de juízes (leia a coluna Complexo de MacGyver e os modelos de juiz), reiterado por diversas teorias atuais, dentre elas a de Dworkin. Subliminarmente assumem o lugar de deuses, mesmo que por metáfora.  

Daí que é necessário levar a sério o convite formulado por Jacinto Coutinho (A lide no processo penal) para que a psicanálise penetre “definitivamente no processo penal para cumprir uma missão fundamental”. Esse ir ao encontro do um-juiz humano, portador de uma subjetividade que opera dentro da Instituição, para encontrar emoções, desejos, complexos, é um caminho rumo à democratização do ato decisório. Cuida-se de reconhecer a influência do inconsciente do um-julgador no momento do ato decisório, uma vez que, diz Coutinho “não tem sentido manter uma venda nos olhos para fazer de conta que o problema não existe.”

Então, para aproximar os discursos, é preciso desvelar que a eterna luta entre o bem e o mal ainda perdura, sendo pano de fundo inconsciente das práticas penais, cuja abjuração não é, definitivamente, simples, principalmente pelo locus que a Instituição aponta ao um-juiz, portador da palavra Divina, um semideus. Não foi à toa que Pierre Legendre (O Amor do censor) afirmou que procurar adentrar nessa seara é uma atividade clandestina, subversiva do lugar-tenente, justamente por querer discutir até que ponto a consciência plena e objetiva se sustenta, isto é, discutir a legitimidade do mandatário do Outro. A censura – o silêncio – sempre foi e é a palavra de ordem. Afinal, a Instituição precisa realimentar o lugar.

Não se trata de ostentação do lugar do juiz, a saber, de se identificar ou não como divindade. A questão é do imaginário coletivo sobre o fundamento do exercício do poder. E talvez o melhor exemplo dessa linhagem divina, ainda incrustada no inconsciente de parcela dos julgadores, seja a do juiz espanhol Eduardo Rodrígues Cano que julgou Jesus Cristo[1]. Magistrado da Audiência Provincial de Granada, Cano, em 21 de março de 1990, proferiu decisão analisando a constitucionalidade do julgamento de Jesus Cristo, ocorrido no ano 33. Assim é que, julgando a causa de Jesus, o Nazareno, Filho de Deus (como se referia ao então acusado), após narrar a vida do cordeiro de Deus, desde o seu nascimento em Belém, reconheceu, por fim, que o procedimento adotado não respeitou a condição humana do acusado. Confessou aos jornalistas que havia ditado a sentença como se fosse uma oração, como um ato de amor em uma sociedade desumanizada. Considerou-se um blasfemo por não ser apto a julgar Jesus Cristo, embora tenha feito, dizendo que sua intenção era a de reconhecer que Jesus não teve um processo justo e queria, com ela, dar uma lição aos que o julgaram. Anote-se que, por evidente, todos já falecidos, enterrados.

Só faltaram, depois, os delírios de perseguição e a formulação de uma nova raça, como queria o também magistrado Schreber, copulando com Deus[2]. Freud analisou, a partir do livro de memórias do próprio Schreber, as particularidades de sua paranoia[3]. Lacan retomou essa discussão[4], partindo dos dados existentes, segundo os quais, após um delírio hipocondríaco, inicia-se uma crise de estafa irrompida pela nomeação para o cargo de Presidente do Tribunal de Apelação de Leipzig e o desgosto de não ter um filho. A esses fatos seguiram-se diversas internações. Destacando a importância do médico, Dr. Flechsig (apressando o passo aqui nesse escrito), Lacan aponta que os raios divinos são a evidência de que neste caso de delírio avançado se encontra uma, “verdade que lá não está escondida, como acontece nas neuroses, mas realmente explicitada, e quase teorizada”. É importante perceber que entre a primeira crise e a segunda decorreram oito anos em que Schreber exerceu normalmente as funções de juiz, mas a assunção ao cargo de Presidente lhe fez desenrolar o delírio.

Não se precisa ir mais longe. Com o relato desse delírio é possível perceber claramente que o trilhamento do Complexo de Édipo, os significantes constitutivos do aparelho psíquico, influenciam o um-juiz durante toda a sua existência, sem que se possa dissociar o juiz de seu (in)consciente. Durante o período que proferiu decisões no Tribunal em Leipzig, por óbvio, sua construção apareceu nas decisões por ele proferidas.

Em terra tupiniquim, por certo, os Schrebers e outras singularidades, idiossincrasias, existem, mas o lugar encontra-se censurado em nome da objetividade, neutralidade. De qualquer forma, correndo-se o risco de cometer pecado de pensar este lugar, cumpre reconhecer que mesmo que o Estado tenha se separado da Igreja, a estrutura de fazer amar o censor ainda é, na base, a mesma, bem como a prática de adestramento. Tanto assim que Bueno de Carvalho (O juiz e a jurisprudência) aponta essa lógica divina: “Quando o julgador fala de si mesmo emerge discurso efetivamente alienado dando a si próprio ares de divindade. O exemplo palmar desta ótica (aqui manifestada com todo o respeito) é a ‘Prece de um Juiz’, do magistrado aposentado João Alfredo Medeiros Vieira, vertido para quinze línguas. E assim começa a prece; ‘Senhor! Eu sou o único ser na Terra a quem Tu deste uma parcela de Tua onipotência: o poder de condenar ou absolver meus semelhantes. Diante de mim as pessoas se inclinam; à minha voz acorrem, à minha palavra obedecem, ao meu mandado se entregam… Ao meu aceno as portas das prisões se fecham…. Quão pesado e terrível é o fardo que puseste em meus ombros!… E quando um dia, finalmente, eu sucumbir e já então como réu comparecer à Tua Augusta Presença para o último juízo, olha compassivo para mim. Dita, Senhor, a Tua sentença. Julga-me como um Deus. Eu julguei como homem. O texto explica-se por si só. E o que é pior: nós (juízes e povo) acreditamos na idéias do mito juiz-divindade.”

Lídia Prado (O juiz e a emoção) argumenta que diante da dificuldade do lugar de julgador, o magistrado pode tentar ser divino, a Justiça encarnada, com capacidade de ser o representante do outro. O próprio sistema de recrutamento, verdadeiro ritual de passagem, empurra o juiz para o lugar de semideus, uma vez que a realização de concurso público de provas e títulos se fundamenta muito mais na decoreba de regras jurídicas do que em qualquer outra questão, talvez mais importante, impondo o autorreconhecimento (in)consciente de que os eleitos, ou seja, os que lograram êxito no certame, são indiscutivelmente os melhores. Daí para a soberba e postura paranoica é um passo pequeno, uma investidura. Percebe-se corriqueiramente a quantidade cada vez mais crescente de candidatos aos concursos públicos, sendo aprovados somente os, em tese, mais preparados. É verdade, de outra face, que cada tribunal organiza como quiser a prova e os avaliadores possuem imensa liberdade no que perguntar, gerando, não raras vezes, perplexidade sobre o conteúdo indagado, deixando de lado qualquer subjetividade: afinal o juiz é, para eles, neutro. Somente questões objetivas importam, acreditando-se que os juízes, no fundo, precisam é decorar a lei. Argumenta Lédio Andrade (Direito ao Direito, página 36) que: “Decora-se o direito dogmático, e a aprovação é corolário. Desnecessária qualquer sensibilidade e senso de justiça social. Um desumano, de memória fotográfica, pode tirar primeiro lugar.” As entrevistas realizadas, em muitos casos, são meros rituais, dado que o candidato sabe exatamente o que deve responder, sob pena de ser barrado, como afirma José Renato Nalini: “O treino oficial para os concursos faz com que todos os candidatos ofereçam a mesma resposta: Por vocação! Por ideal! Sempre pensei em ser Juiz! Ninguém se atreveria a dizer: Preciso de emprego! Tenho família para sustentar! Preciso me casar e não tenho salário! Não dei certo na advocacia! Estou prestando todos os concursos porque a carreira pública ainda é uma boa opção num Brasil globalizado com incertezas ditadas pelos globalizantes!”[5]

De qualquer forma, a pretensão é de que os melhores na memorização, como diz Nalini, sejam acolhidos, e “aquele que foi escolhido, quando tantos haviam sido chamados e restaram inaproveitados, tende a se considerar quase gênio, aquinhoado com atributos inusitados, um ser muito especial.” O salvador está ordenado e daí em diante pode operar em nome de Deus, porque muitos serão os chamados e poucos os escolhidos.

Então aqui o narcisismo do juiz ganha mais um ingrediente. É que primeiro ocupa um lugar de portador da palavra do Outro, depois assume o papel de Inquisidor na gestão da prova, em busca da verdade real (tão bem criticada por Salah Khaled Jr), e, ainda, pela maneira como se engaja, acaba acreditando que é o escolhido, o mandatário Divino capaz de conceder — com as implicações psicanalíticas do termo — a segurança jurídica, até a aposentadoria, claro. Nesse pensar, juízes se sentem (e precisam se sentir) membros natos, guardiães da verdade ligada à certeza; substituição cartesiana que veio preencher o vazio da verdade verdadeira, mas que não rejeitou seu lugar fundante. Warat (Ofício do Mediador, página 224-225) assinala: “Nos diversos seminários de humanização da magistratura, trabalhamos os diversos efeitos perversos do lugar dos magistrados. É um lugar vivido com uma força muito especial, já que existem magistrados que vivem o lugar como se fosse o templo de alguma divindade. Este é vivido por muitos (mais do que democraticamente dever-se-ia esperar) como o Olimpo, um lugar onde pode se sentir um agregado dos deuses gregos. Eles não sabem que os templos destinados aos deuses gregos estavam sempre vazios em seu interior (inacessíveis para estranhos), nunca se encontrava nada, apenas era um culto ao inacessível. A diferença está em que os deuses gregos tinham consciência desse vazio: nossos magistrados agregados não a têm. O lugar enche os juízes de tristes arrogâncias, que se diluem na aposentadoria. Não existe maior tristeza que a de um juiz aposentado que, em toda sua vida ativa, acreditava ser agregado do Olimpo e agora, tem de passar sua inércia vital pelas gôndolas desertas de um supermercado, sendo as três da tarde um laborioso mártir”.

Nesse pensar, o Outro, por seus porta-vozes, diz mais ou menos o seguinte: “A verdade existe e pode ser conseguida no processo penal se seguido um método interpretativo próprio, conforme lhes ensinarei”. Legendre tinha razão ao vindicar o caráter messiânico dos “Juristas de Ofício”, sempre lotados das melhores das intenções, evidente.[6]. Mas como “Eles não Sabem o que Fazem” (Zizek), alienados que estão pelo que simbolicamente se erigiu em face de seu locus, fomentada desde a graduação, prestam-se a funcionar como juristas do ofício que, para os platônicos, não poderia ser nada mais digno. Com efeito, os juízes manipulam mais eficazmente na medida em que são mais manipulados sem o saber, a violência simbólica (Bourdieu) instalada de forma eficiente no inconsciente. Acreditando que ‘Dizem o Direito’ mordem a isca, e a pescaria está garantida. O poder é exercido em nome próprio, numa perfeita ‘apropriação indébita’ escamoteada, já que adverte o velho Carnelutti (A prova civil, p. 17): “A ilusão não se pode conservar mais que a condição de permanecer dentro dela. E há os que permanecem nela toda a vida. Felizes eles!”

O um-juiz, todavia, é uma singularidade, não existe como sujeito abstrato e único. São diferentes no tocante ao sexo, idade, instrução, ideologia, trilhamento do Complexo de Édipo, experiências pessoais, são neuróticos, obssessivos, paranóicos, psicóticos e esquizofrênicos, capazes de em um processo, então, ao invés de julgar o acusado, estar, na verdade, diz Bueno de Carvalho, condenando “a si, mas quem vai para o presídio é o outro.” Por mais que exista no discurso consciente um processo de secularização, consistente na separação entre mala in se e mala prohibita, no qual o Estado contemporâneo se fundamenta, percebe-se matreiramente a subsistência de um condicionante simbólico-ontológico da ligação do crime com o pecado, estimulado pela Escola Positiva, pelos interesses da mídia e, contemporaneamente, pelos movimentos conservadores de repressão total.

Daí que precisamos, quem sabe, mudar as coordenadas em que colocamos a figura do juiz, dado que a própria teoria do Direito aceita as metáforas divinas para compreensão do lugar e função do magistrado. Repensar a teoria a partir da democracia de iguais é o desafio a se realizar. Enquanto isso não acontece, oremos, quem sabe com Schreber, quando dizia: “Deram-me luzes que raramente são dadas a um mortal.” Abençoado o seja.


[1] VALIENTE, Quico Tomás; PARDO, Paco. Antología del disparate judicial. Barcelona: Random House Mondadori, 2002, p. 115: “El magistrado explicó que la idea de revisar el processo contra Jesucristo desde la Audiencia Provincial de Granada se le ocurrió tras una conversación com un amigo suyo que le encargó el pregón para la cofradía de la Virgem de las Maravillas y el Cristo de la Sentencia. (…) Asseguró que no le costó mucho ‘llegar a la conclusión de que si aquel juicio se hubiera celebrado con todas las garantias (Jesucristo) hubiera sido absuelto, entre otras cosas porque sólo tuvo acusadores y nadie que le defendiera’.”
[2] SANTNER, Eric L. A Alemanha de Schreber: uma história secreta da modernidade. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
[3] FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides). In: Obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 15-89, v. XII.
[4] LACAN, Jacques. O seminário: as psicoses. Trad. Aluisio Menezes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. (Livro 3), p. 30-42.
[5] NALINI, José Renato. Prefácio. In: PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção. Campinas: Millennium, 2003. p. XIV. 
[6] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade…, p. 67: “Desde esta perspectiva a função intelectual é imediatamente política e a função política imediatamente sacerdotal. Recordaremos que Deus se infere do clérigo. Não como maquinação mas como sua condição de possibilidade, o pedestal ilusório do seu poder real. Todo discurso de verdade evoca uma realidade simbólica, que atua como memória coletiva (um sistema de subjetividade coletiva) no seio das relações políticas. É o sentido comum (que não é outra coisa que a subjetividade modelada pela instituição social)”.

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