Passado a Limpo

Parecer sobre uma possível intervenção federal no Amazonas em 1919

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

20 de novembro de 2014, 7h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Em abril de 1919 o Consultor-Geral da República, Sá Vianna, atendeu a representação do vice-presidente da República, Delfim Moreira Ribeiro, que exercia o cargo de presidente no lugar de Rodrigues Alves, o qual falecera antes da posse. Delfim Moreira questionou o Consultor-Geral a respeito de eventual intervenção no Estado do Amazonas. Ao que parece, os magistrados nesta unidade da federação não estariam recebendo seus vencimentos. Reconhecendo que a situação ensejava intervenção, após longo excurso doutrinário, o Consultor-Geral, num exercício de apaziguamento e de contenção, propôs que se ouvissem as autoridades amazonenses, de modo a se sindicar a veracidade dos fatos. O parecer que segue vale, essencialmente, por seu núcleo conceitual, em tema de federalismo:

Gabinete do Consultor-Geral da República. – Rio de Janeiro, 1º de abril de 1919.

Exmo. Senhor Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores. – Acusando o recebimento da representação que a Sua Ex. o Senhor Vice-Presidente da República dirigiu, por seu Presidente, ao Supremo Tribunal Federal de Justiça do Estado do Amazonas e sobre o qual V. Ex. se dignou requisitar meu parecer, cumpre dizer o seguinte:

A falta de regulamentação o art. 6º da Constituição da República, os termos vagos em que são feitos os raros e sucintos comentários que ela tem tido, criam, sempre que surge algum caso de intervenção federal nos Estados, situações graves em si mesmas, para perfeito conhecimento e definitiva solução dos quais tudo se mostra incerto, vacilante, duvidoso, enfim, sem fundamento, quanto baste para aprender e determinar, com a maior certeza e com toda a segurança, a natureza de cada um dos quatro números do aludido art. 6º e as hipóteses que podem eles abranger e realmente abrangem.

O que cabe saber no caso em exame é se o fato, que motiva a representação do mais alto tribunal de justiça de um Estado da União, pode determinar a intervenção do Governo Federal e com fundamento no nº 2 do citado art. 6º, vejamos:

Efetivamente, Senhor Ministro a expressão – “para manter a forma republicana federal” – à primeira vista, literalmente considerada, parece repelir, desde logo, a intervenção nos temos em que vemos. Mas ocorre, naturalmente, ao espírito conhecer se mantiver a forma republicana federal será apenas evitar, obstar, não permitir que um Estado mude ou modifique o regime político que escolheu e adotou uma vez, com promessa de observar harmonicamente em sua organização e respeitar em suas leis os princípios de ordem e de natureza constitucionais, fixados na Constituição da União, como prescreve o art. 63 do pacto de 24 de fevereiro, de modo a não substituir nem mesmo alterar em parte a forma republicana federal, ou se manter a forma republicana federal não é só isso, porém, muito mais, ou seja, conservar sem que altere, sem que sofra em sua essência o que a essa forma de governo é básico, o que constitui sua própria defesa, condição de vida, de modo a não perecer a forma pelo seu enfraquecimento, pela falta de garantias à sua desejada imutabilidade.

Das duas maiores fontes da nossa Constituição constam dispositivos que visam assegurar sempre a forma republicana de governo. Ambas foram inspiradoras do preceito constitucional, ambas oferecem elementos de interpretação. Embora em ambas esses dispositivos correspondentes ao do art. 6º da Constituição da República tenham se originado de causas diferentes.

Assim vemos que das duas, a mais antiga, a Constituição da União Americana e que “os Estados Unidos garantirão a cada Estado a forma republicana de governo e defenderão cada um deles contra invasões externas, e, mediante requisição da Legislatura, ou do Poder Executivo (quando a Legislatura não puder reunir-se) contra as perturbações domésticas.” O que dominou no espírito do legislador norte-americano foi simplesmente a manutenção da forma republicana, sem maior insistência quanto á espécie dessa forma republicana. TH. Cooley, Princip. de Direito Const. Cap. XI, em poucas palavras explica com a maior clareza, qual a verdadeira Inteligência e extensão do art. IV seção 4ª, que acabamos de citar, da Constituição dos Estados Unidos:

“Ao Governo Federal impõe-se a obrigação de garantir a todos os Estados da União uma forma republicana de governo. Surgiu tal disposição da convicção de que governos de princípios e de formas heterogêneas eram menos adaptáveis a uma união federativa do que aqueles que substancialmente lhe fossem parecidos a ela; e que o governo supremo deveria possuir autoridade para defender o sistema estabelecido contra as inovações que trouxessem consigo princípios discordantes e antagônicos. Os termos desta disposição (e repetem palavras do Federalist, n. 43) – pressupõem um governo preexistente com a forma que há de ser garantida. Por conseguinte, as formas republicanas serão garantidas pela Constituição Federal, pelo tempo que as formas republicanas existentes forem conservadas pelos Estados. Quando os Estados quiserem substituí-las por outras formas também republicanas, tem direito a fazê-lo, e de reclamar a garantia federal a seu favor. A única restrição que se lhes impõe é de não mudarem a forma republicana de suas constituições por outras antirrepublicana.”

Como qualquer mudança adviria de uma das causas que ele aponta – ação hostil de alguma potência estrangeira que militarmente ocupasse o território de um Estado, implantando um governo que não tenha sido estabelecido pelo respectivo povo, ­- ação revolucionária do próprio povo, levantando-se em armas contra as autoridades constituídas, depondo o governo constituído ou tentando fazê-lo, para substituí-lo por outro, – a Constituição dos Estados Unidos assegurou aos Estados a forma republicana de governo, intervindo nos dois casos que determina em um deles diretamente e em outro mediante provocação do Poder Legislativo ou, em sua falta, do Poder Executivo. Essa exclusiva preocupação do legislador constituinte norte-americano, de manter sempre uma forma republicana, embora de tipo diverso, tinha sua razão de ser, razão histórica – o fato “da União não ter, como bem lembrar BARRAQUEROS, Espiritu y prática de La Constitución Argentina, pags. 187 e 180, de reagir senão contra a Monarquia, pois, salvo raríssimas exceções, em nenhum Estado se fortificará o caudilhismo, nas lutas domésticas”, ao ponto de HAMILTON, justificando sua opinião sobre o assunto, citar apenas as convulsões de Massachusetts, pelo que a faculdade de intervir foi dada ao Governo Federal para evitar que o partido monarquista, imperando em algum Estado, convertesse a República em Monarquia. E em que consiste, segundo a Constituição dos Estados Unidos, a forma republicana que devia ser mantida a todo transe? MADISON, sempre invocado neste caso, diz que – em todos os poderes emanarem direta ou indiretamente do povo, cujos administradores não gozam senão do poder temporário, a arbítrio do povo ou enquanto bem procederem, sendo bastante, para que tal governo exista que os administradores do poder sejam dignados diretos ou indiretamente pelo povo, condição sine qua non, qualquer governo popular que se organize nos Estados Unidos, embora bem formado e bem administrado, perderá infalivelmente o caráter republicano. Então, cabe, perguntar se a garantia que a Constituição promete é apenas para a manutenção da forma republicana, materialmente. Não seria compreensível que assim fosse, porque importaria no legislador sofismar a si mesmo e a Constituição ser apenas um simulacro. Como diz Von Holst, Lei Constitucional, pág. 236, “a interpretação aceita da palavra republicana – confere ao Congresso determinar não só se a forma do governo dos Estados é republicana, mas ainda se, in substance, os Estados são repúblicas”.

Na verdade, não haveria maior absurdo do que admitir completo alheamento da União quando nos Estados fossem opostos obstáculos à exceção das leis, tão fortes que, como no caso em estudo, um dos poderes de determinado Estado negasse o outro o que a Lei garante aos que a exercitam e torna-se de indeclinável necessidade para sua própria existência:

A Constituição Argentina, feita em condições diversas da dos Estados Unidos e ainda reformada em condições diversas e especiais, sem dúvida teve maior ação sobre a Brasileira, por isso mesmo que trazia a lição da experiência mais fácil de ser aproveitada por um povo da mesma raça, quase com o mesmo modo, bom ou mau, de encarar os problemas da vida. O legislador argentino de 1860 estabeleceu no art. 5º da Constituição que: “cada província ditará para si uma constituição sob o sistema representativo republicano, de acordo com os princípios, as declarações e garantias da Constituição Nacional, e que garanta sua administração da justiça, seu regime municipal e a instrução primária. Sob estas condições o governo Federal garante, a cada província, o gozo e exercício de suas instituições”.

Logicamente, como complemento natural desse artigo, o art. 6º prescreve que:

“o Governo Federal intervém no território das províncias para garantir a forma republicana de governo ou para repelir invasões exteriores, e á requisição de suas autoridades constituídas, para sustentá-las, ou para restabelecê-las, se houverem sido depostas por sedição ou invasão de outra província”.

Já não se cogita aqui saber em que consiste a forma republicana porque, como bem diz BARRAQUEROS, ob. cit. pág. 186, enquanto a Constituição Americana se limita a dizer que os Estados Unidos garantirão à cada um dos Estados da União uma forma republicana de governo, nos casos que declina. A Constituição Argentina fixa os caracteres da forma republicana que promete garantir. Mas convém agora repetir em relação a esta Constituição a mesma pergunta feita quanto à da União Americana: Se a garantia que a Constituição Argentina afirma é apenas para a manutenção da forma republicana de governo, materialmente. Não é, neste caso ainda, por motivos especiais que decorrem da própria Constituição, do simples confronto dos arts. 5º e 6º que citei. Realmente, se cada província tem sua constituição, harmonia com a nacional em seus princípios, declarações e garantias, capaz de assegurar sua administração de justiça, seu regime municipal e a instrução pública, e o Governo Federal, por sua vez, assegura às províncias o gozo e exercício de suas instituições, – se essa assistência e essa defesa da União em relação a cada uma das suas unidades políticas é uma consequência do regime federal, não pode haver dúvida de que cabe a intervenção , quando as províncias sofrem no gozo e exercício dessas instituições, porque dali resulta manifesto ataque contra a manutenção da forma republicana e governo. Os perigos a que está exposto o regime republicano federal não são apenas os três que, entre outros escritores, cita ARISTIDES MILTON, A Constituição do Brasil, pág. 25: a separação, que pode provir de afrouxamento dos laços federais; o predomínio de um ou de alguns dos Estados sobre os outros e absorção das autonomias locais pelo poder central, quando este, por acaso, exorbita de suas atribuições. Há outro ainda, quando, na própria província, um dos poderes locais enfraquece, corrompe, submete ou absorve lenta e indiretamente, como em geral ocorre, algum dos outros que a Constituição criou e que não pode deixar de ser mantido sem sacrifício, mais do que da forma republicana federal, da própria forma republicana em qualquer dos seus modos de ser. BARRAQUEROS enfeixa assim, em poucas palavras, a diferença entre as duas Constituições, que citei, em relação ao ponto em estudo: O Poder Federal dos Estados Unidos só pode intervir quando se altera a forma republicana, – da Nação Argentina ­ tem, não só o direito, mas o dever de intervir sempre que qualquer província não goze ou não possa exercitar suas instituições. Melhor ainda se exprime outro constitucionalista argentino, José M. Estrada, quando atinge o caso em questão, afirmando em seu Curso de Derecho Constitucional, III, nº 131, que “se a forma de governo não mudou e nem passou de republicana a qualquer outra, procede à intervenção nacional na província, motu próprio, quando tenha sido corrompida ou as instituições estejam abastardadas”, “porque”, acrescenta, “a Nação Argentina ou o Governo garante a cada província o gozo e o exercício de suas instituições locais”. Esta conclusão, a que se chegar em face da Constituição Argentina, é a mesma a que temos de chegar em face da Constituição Brasileira, porque, embora o legislador pátrio, por motivo de método na distribuição das matérias, se apartasse do modo pelo qual aquela Constituição tratou do assunto, grupando-o em dois artigos seguidos – 5ª e 6º o certo é que os arts. 6º e 63 do pacto de 24 de fevereiro são a reprodução do mesmo pensamento e dos mesmos princípios contidos naqueles. Pouco importa que o art. 5º da lei básica argentina, falando da Constituição que cada província ditará de acordo com os princípios, as declarações e garantias da Constituição, aparentemente se apartando da nossa, acrescente “que garanta sua administração de justiça, seu regime municipal e a instrução primária”. Pouco importa, digo, por que: a) o projeto da Constituição nacional que serviu de base á discussão na Constituinte, tinha esta redação: “Art. 63. Cada Estado reger-se-á pela Constituição e pelas leis que adotar, contanto que se organize sob a forma republicana, não contrarie os princípios constitucionais da União, respeite os direitos que esta Constituição assegura e observe as seguintes regras: 1º, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário serão discriminados e independentes; 2º, os governadores e os membros da legislatura local serão eletivos; três não serão eletivas a magistratura, 4º, os magistrados não serão demissíveis senão por sentença; 5º, o ensino será leigo e livre em todos os grãos, e gratuito no primário”, que foi substituída, mediante emenda do Sr. Lauro Sodré, e o art. 63 da Constituição, com a procedente razão de, nesta frase – “respeitados os princípios constitucionais da União” – estar dito do modo o mais compreensível, sem que nada tenha escapado, o fim, a natureza e a extensão das constituições dos Estados; b) não havia necessidade da Constituição nacional declarar que “o Governo Federal garante a cada Estado o gozo e exercício e de suas instituições”, como fez a Constituição Argentina, na 2º alínea do art. 5º, porque a sanção do art. 63 da Constituição pátria, a garantia natural que esse dispositivo reclama, está no art. 6º, onde a intervenção foi estabelecida exatamente para casos em que o gozo e o exercício de instituições provinciais ou estaduais possam ser ameaçados, reduzidos ou negados.

Expostos tais princípios, cabe ainda uma vez repetir esta pergunta – se a garantia que a Constituição assegura é apenas para a manutenção da forma republicana, materialmente. Penso que sim, e penso que bem interpreto o texto constitucional, vendo que do mesmo modo procede, com a autoridade que lhe é reconhecida, JOÃO BARBALHO, nos comentários à Constituição Federal Brasileira, pág. 23, quando afirma que a expressão “forma republicana” não designa simplesmente o aparelho formal da República, não compreende unicamente a existência do mecanismo que constitui o sistema republicano, mas envolve, implícita e virtualmente, também o seu funcionamento regular, a sua prática efetiva e a realidade das garantias que este sistema estabelece.

Ora, Senhor Ministro criar a Constituição de um Estado, respeitando princípios constitucionais da União, o Poder Judiciário, e este não poder manter-se pela falta de pagamento do que a lei garante como condição de sua independência e como condição de vida para aqueles que o exercem, sem que o respectivo Governador proveja com a urgência e com a energia que a situação reclama e que a sua responsabilidade impõe, é certamente opor obstáculos, ou deixar propositalmente que eles ocorram, ao regular e indispensável funcionamento de um alto Poder ao qual a Constituição de 24 de fevereiro consagrou os maiores cuidados para chegar ao fim da sua nobilíssima missão, bastando lembrar: a) que a Constituição Federal no art. 57, § 1º, assegura aos magistrados federais que os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos e, b) o Supremo Tribunal Federal, em diversos acórdãos, declaradamente no nº 431, de 29 de janeiro de 1909, fixou que a irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados é princípio Constitucional da União, que os Estados serão obrigados a respeitar. Não sei como não reconhecer quanto sofre com isso a forma republicana federal que se deseja manter e perpetuar. Tudo caracteriza que o caso, que devemos reconhecer e lastimar, é apenas mais uma manifestação da luta em que não poucas vezes vivem, nos Estados, o Poder Executivo e outros poderes que oferecem resistência à absorção, é de intervenção, mas, Senhor Ministro, considero de tal modo grave essa medida que, se eu tivesse autoridade para aconselhar o Governo, solicitaria permissão para lembrar a conveniência de, preliminarmente, sindicar da verdade dos fatos de maneira e bem conhecê-los, pedindo sobre eles esclarecimentos ao Governador, a quem o Superior Tribunal de Justiça do Amazonas atribui à situação aflitiva, fora da lei, ofensiva da Constituição que determinou o pedido de intervenção. Ele é a parte sobre a qual está pesando tanta responsabilidade e parece que sem tomar como advertência, mas como simples manifestação de interesse do Governo Federal em caso que está afetando princípios constitucionais, esse pedido, que não pode ser desatendido, terá assim oportunidade para melhor considerar a situação e dar por si mesmo e de pronto a solução única que é dada esperar, por ser conforme os ditames da justiça e os princípios de Direito. V. EX., em sua sabedoria, suprindo todas as minhas deficiências, como peço, resolverá com a habitual elevação. Apresento a V. Ex. os protestos da maior consideração. – Dr. M. A. de S. Sá Vianna.

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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