Defesa prejudicada

Lei institui política de leniência, mas não protege pessoas envolvidas

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18 de novembro de 2014, 11h51

[Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo desta terça-feira (18/11)]

Causam perplexidade as notícias de acordo para livrar corruptos e corruptores das malhas da Justiça. Será possível? A que ponto chegamos?!

No mensalão não houve acordo, e sim condenações por corrupção, peculato, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, com penas que passaram de 20 anos de prisão, além de multas milionárias. Muitos não acreditavam, mas até alguns poderosos foram apanhados.

Pode a corrupção — sinônimo de apodrecimento e decomposição, em latim — ficar impune? Não só pode, como muitas vezes fica. O vocábulo designa atos ilícitos, na definição de Deonísio da Silva, praticados sobretudo por políticos, os corrompidos, e empresários, os corruptores: "É tradição brasileira a impunidade de uns e outros, com uma ou outra exceção" (A Vida Íntima das Palavras, ARX, 2002).

Alguns fatores podem estar mudando essa perspectiva. Um deles é a chamada política brasileira de leniência, que se inspirou em padrões norte-americanos. O tratamento mais benevolente prometido ao infrator que colabora traduz um endurecimento do sistema em busca de maior eficácia. Um peixe escapa da rede, mas pega-se todo um cardume. Procura-se assim reverter o quadro de fracasso das formas tradicionais de investigação, descrito por Nelson Hungria já em 1959: "Os processos penais, iniciados com estrépito, resultam, as mais das vezes, num completo fracasso, quando não na iniquidade da condenação de uma meia dúzia de intermediários deixados à sua própria sorte. São raras as moscas que caem na teia de Aracne. O estado-maior da corrupção quase sempre fica resguardado".

Hoje, mecanismos internacionais visam a controlar a corrupção e a lavagem de dinheiro, quase sempre associados. O cherchez la femme, das histórias de detetive, foi substituído pelo cherchez l’argent. Traçando a rota e os esconderijos do dinheiro, chega-se com facilidade à organização criminosa, que, sem recursos, morre sufocada.

Os mecanismos de colaboração, "espontânea" ou "premiada", das leis de lavagem de dinheiro e de organizações criminosas, que permitem reduzir ou evitar a aplicação de penas, parecem ter estimulado os chamados doleiros a deixar de lado o antigo código de honra e a abrir a caixa-preta de suas operações. A atitude é compreensível, pois até a Itália já reconheceu que nossas prisões não são muito acolhedoras. A Justiça se garante: se o delator mentir, omitir ou prestar falsa informação, de nada adianta o acordo, o que dá, no mínimo, alguma presunção de veracidade às declarações, ainda que por puro interesse.

Com isso, a cada dia aparecem novas evidências de práticas ilícitas no caso Petrobrás, já sob investigação dos severos órgãos americanos — Securities and Exchange Commission (SEC) e Department of Justice (DOJ). "Quando a corrupção se tornou tão pública e os fatos tão notórios que é preciso investigar e processar, as repercussões que acarreta a repressão às vezes colocam o próprio governo em perigo." A frase é dos anos 1950, de Maurice Garçon. Hoje, com relativo otimismo, o também europeu Jacques Rancière afirma que "a Administração não é corrompida, exceto na questão dos contratos públicos, em que ela se confunde com os interesses dos partidos dominantes" (O Ódio à Democracia, Boitempo, 2014, pág. 94).

Nesse quadro, surge um grande número de interessados em escapar às punições, que já parecem inevitáveis. Os fantasmas da Papuda estão assombrando muita gente, mas há um impasse quanto à possível leniência: as empresas envolvidas não querem admitir crimes nem apontar nomes, com justificado receio de confessar delitos e comprometer pessoas; elas prefeririam pagar multas, mesmo elevadas, e até celebrar eventuais termos de ajustamento de conduta (TACs).

O acordo de leniência, normalmente, tem como consequência a imunidade penal dos colaboradores. É o que ocorre na Lei de Defesa da Concorrência, na qual a primeira empresa que propuser o acordo pode obter extinção de punibilidade, até mesmo criminal, para seus diretores e empregados, com a garantia de que o Ministério Público, estadual e federal, também assina o acordo.

A Lei Anticorrupção, entretanto, não contém mecanismos de proteção criminal para as pessoas físicas envolvidas, que serão responsabilizadas "por atos ilícitos na medida de sua culpabilidade". Ela alivia as enormes punições previstas para a empresa, mas deixa os dirigentes e intermediários à própria sorte. E também não prevê nenhum tipo de acordo de cessação ou termo de ajustamento.

Em matéria de cartel, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) pode celebrar compromisso de cessação, quando entender que é suficiente para pôr fim à prática investigada. Como a lei nada diz quanto a eventuais consequências criminais, autores como Pierpaolo Bottini sustentam que não deveria ser exigida confissão, ou então deveria ser alterada a lei para deixar expressa a mesma extinção de punibilidade da leniência. A lógica indica que, nessa hipótese menos grave, o arquivamento da investigação deveria trancar a iniciativa criminal, mas uma regra clara seria bem-vinda.

A Lei Anticorrupção não seguiu esse modelo, numa perspectiva um pouco hipócrita, pois com sua natureza penal mal disfarçada se afirma apenas administrativa e cível. É óbvio que a responsabilidade objetiva nela consagrada é incompatível com a lei penal, o que traria problemas de constitucionalidade. Ficamos, assim, numa estranha situação: o legislador quis instituir a leniência para desvendar a corrupção, mas não incluiu mecanismos de proteção para as pessoas envolvidas, o que causa o impasse.

Vivemos um grande desafio: encontrar meios eficazes de prevenir e reprimir a corrupção, que é exigência de todos, e ao mesmo tempo ter de interpretar e conviver com leis contraditórias, que desafiam princípios éticos e dificultam o exercício do direito de defesa.

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