Leis comparadas

Juristas italianos discutem Código Civil brasileiro de 2002 em Roma

Autor

  • Andreia Scapin

    é advogada doutora em Direito Tributário pela USP professora convidada da pós-graduação da Universidade Mackenzie e pesquisadora do Centro Didático Euro-Americano sobre Políticas Constitucionais da Università del Salento Itália/Furb (Brasil).

17 de novembro de 2014, 11h17

Em 31 de outubro, na biblioteca da Câmara dos Deputados em Roma, juristas das principais Universidades da Itália reuniram-se para comentar o estudo feito por Sabrina Lanni — pesquisadora do Istituto di Studi Giuridici Internazionali (ISGI) — a fim de analisar a contribuição do Código Civil brasileiro de 2002 durante a primeira década de sua vigência, o qual originou a obra Dez anos. Contributi per il primo decennio del nuovo codice civile brasiliano, publicada pela Edizioni Scientifiche Italiane spa (ESI) em 2014.

Trata-se do terceiro volume que compõe a coleção Roma e America. Sistema Giuridico Latinoamericano: Studi, produzida a partir das pesquisas feitas pelo ISGI, dos quais o primeiro foi dedicado à análise do inadimplemento das obrigações no Código Civil Argentino e o segundo aos direitos da população indígena da América Latina.

O ISGI é órgão científico do Conselho Nacional de Pesquisa da Itália (CNR) [1], que atua no desenvolvimento de atividades no âmbito do direito internacional e europeu, com particular atenção ao setor dos direitos humanos, da proteção ao meio ambiente, do direito do mar, do espaço e da bioética. Sua função é promover a conscientização cada vez maior sobre a importância da dimensão jurídica internacional para afrontar os problemas da sociedade contemporânea e do mundo globalizado. [2]

O interesse em investigar a contribuição do Código Civil brasileiro de 2002 nos primeiros anos de sua vigência resulta da íntima e visível relação que há entre o Direito da Europa e o da América Latina — ambos construídos num sólido alicerce romanístico, o qual pode ser comprovado nos textos de suas codificações —, como também devido ao propósito de estimular a maior integração e cooperação internacional entre seus países, ampliando a possibilidade de produzir um Direito sempre mais uniforme. 

Os princípios e as características fundamentais do Direito Romano aparecem substancialmente estáveis em vários sistemas normativos, especialmente na cultura jurídica ocidental. Isso explica a razão pela qual, passados tantos séculos, ainda ser considerado o Direito por excelência, base jurídica de importantes civilizações, o que permite colocar os múltiplos ordenamentos lado a lado, num contexto de comparação, em busca de unidade.

Luigi Labruna, professor de Direito Romano da Università di Napoli Federico II, em artigo publicado pela Revista da FDUSP intitulado Tra Europa e America Latina: principi giuridici, tradizione romanística e ‘humanitas’ del diritto, esclarece que a tradição romanística foi fortemente assimilada pelos países latino-americanos, em especial no que se refere ao constitucionalismo romano, que se distinguiu pelo favor da liberdade republicana, mediante práticas de independência e republicanismo, pela necessidade de igualdade absoluta, bem como pela liberdade entre os homens e as nações. Além disso, por ver restabelecido o conceito constitucional romano de res publica e res populi. [3]

Na construção desses sistemas, se observa a relevância das formas tradicionais de justiça romana: honeste vivere, neminem laedere e suum cuique tribuere. É como um renascer dos sinais romanos, perceptíveis na realidade jurídica contemporânea, que marca o estudo histórico da América Latina e garante a continuidade do sistema romanístico. [4]

No Brasil, a aplicação prática do Direito Romano surge com as Ordenações de Portugal, as quais foram elaboradas a partir do sistema romanístico e continuaram vigentes até a promulgação do Código Civil de 1916, que também foi construído sob o mesmo alicerce, visto que Clóvis Beviláqua era reconhecidamente um romanista. [5]

O pensamento romanista influenciou fortemente a formação jurídica brasileira, reforçando-se pela passagem de renomados juristas italianos em diversas Faculdades de Direito no Brasil, a exemplo de Ascarelli, Betti, Liebman e Lousano. Interessante notar que alguns tiveram maior destaque no Brasil do que na própria Itália.

Para Antonio Saccoccio, professor de Direito Romano da Univesità di Brescia, a primeira contribuição do CC/02 foi reforçar a ideia da Codificação como um instrumento ativo no Direito numa época em que se defendida, na Europa, a Descodificação. Com a promulgação do Código Civil Argentino de 2014, esse fortalecimento foi ainda maior.

Na visão de Claudio Scognamiglio, professor de Direito Civil da Università di Roma –“Tor Vergata”, o CC/02 é uma lei visivelmente complexa, que tem como principal característica o recurso excessivo ao standard normativo, provavelmente dado o interesse do legislador em facilitar a adequação da lei às necessidades econômicas brasileiras.

Apesar do acentuado uso de cláusulas gerais como técnica da construção da regra jurídica ensejar um aumento do poder do juiz, pois lhe dá maior mobilidade, os participantes do evento concordaram que, no Brasil, o modelo adotado funcionou bem em todos esses anos de vigência.       

Ademais, para Scognamiglio, o CC/02 demonstra maior avanço em relação ao Direito Europeu ao regular o instituto do abuso de direito como regra de boa-fé relacionada à Responsabilidade Civil, tal como efetuado no artigo 187, ao passo que a Carta Fundamental da União Europeia o faz apenas de forma genérica em seu artigo 54.

David Fabio Esborraz, pesquisador do ISGI, afirma que o CC/02 possui um alto valor técnico e científico. Embora seja estruturalmente semelhante ao Código anterior, adequou-se às exigências e transformações da sociedade brasileira atual, destacando-se de modo positivo por introduzir uma nova principiologia dirigida à disciplina dos contratos.

Além disso, corrobora que o CC/02 teve seu papel fortalecido por concretizar a unificação do direito privado em âmbito civil e empresarial, como já proposto por Teixeira de Freitas no ano de 1867, porém sem êxito. Não se tratou de uma inovação brasileira, pois Argentina e Paraguai efetuaram a unificação em momento anterior.

Esborraz recorda, também, a existência do Projeto de Lei 1.572, de 2011, o qual tem dividido opiniões entre os juristas, propondo um novo Código Comercial que contém a regulamentação detalhada de diversos princípios, tal como o princípio da função econômica e social do contrato, prometendo viabilizar um ambiente negocial propício para estimular investimentos internacionais e aumentar a segurança jurídica no país.  

Destacou-se o relevante papel da Constituição Federal de 1988 para o sistema brasileiro, uma característica da cultura jurídica dos países latino-americanos, muito mais expressiva do que nos países da Europa, que determinou a criação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o qual foi apontado pelos juristas italianos como a maior conquista do ordenamento jurídico brasileiro dos últimos tempos.

Ao final, Giuseppe Palmisano, diretor do ISGI, ressaltou que um encontro entre juristas, como o realizado naquela tarde na Biblioteca da Câmara dos Deputados em Roma, para discutir a aproximação entre sistemas jurídicos, colocando-os lado a lado, num rico contexto de comparação e integração, confere o verdadeiro sentido à existência do Instituto Romanístico, sendo um de seus objetivos a criação de mecanismos para que seja produzido um Direito dotado de cada vez mais uniformidade entre os países da América Latina e da Europa.


[1] Consiglio Nazionale delle Ricerche (CNR). Para maiores informações sobre o CNR, consultar o sitio www.cnr.it. Último acesso em 13 nov. 2014. 

[2] Para maiores informações sobre o Istituto di Studi Giuridici Internazionali, consultar o sitio www.isgi.cnr.it

[3] LABRUNA, Luigi. Tra Europa e America Latina: principi giuridici, tradizione romanística e ‘humanitas’ del diritto.  Disponível em www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67619/70229 Último acesso em 13 nov. 2014. 

[4] Idem

[5] SALERNO, Marilia; ZEMUNER, Adiloar Franco. A importância do Direito Romano na formação do jurista brasileiro. Semina: Ciências Sociais e Humanas, Londrina, v. 27, n. 2, p. 125-133, jul./dez/2006. Disponível em www.uel.br/revistas/uel/index.php/seminasoc/article/viwe/3744/3005 último acesso em 13 nov. 2014.  

Autores

  • é advogada, pesquisadora do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professora-convidada da pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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