Causa comum

Se houver interesse público, ação popular pode ser refeita pelo mesmo autor

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16 de novembro de 2014, 13h20

A Ação Popular está prevista na Constituição Federal Brasileira, em seu art. 5º, inciso LXXIII, como instrumento hábil, à disposição de qualquer cidadão, visando a anular ato lesivo ao patrimônio público (ou de entidade da qual o Estado participe), à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

Da rasa leitura do texto constitucional nota-se, diante da natureza dos interesses tutelados em lume, a indisponibilidade dos bens jurídicos reclamados. Referida característica tornaria, em princípio, descabida a produção do depoimento pessoal no bojo de ações populares.

Isto porque, nos termos do artigo 343 do Código de Processo Civil Brasileiro, o depoimento pessoal é meio de prova requerido pela parte com o escopo de esclarecer fatos discutidos na causa, bem como obter ou provocar confissão da parte contrária. Nessa vereda, destaque-se que, nos dizeres do artigo 351 deste mesmo diploma legal, não se admite como confissão a admissão, em juízo, de fatos relativos a direitos indisponíveis.

Cumpre dizer que, grosso modo, consideram-se indisponíveis os direitos fundamentais do homem, precipuamente os que dizem respeito à coletividade, notadamente os que atingem o patrimônio público, a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural.

Portanto, apresenta-se a ação popular como verdadeiro instrumento de defesa de interesse público, de natureza inegavelmente indisponível. Por conseguinte, não pode ter por objeto a defesa de posições nítida e essencialmente individuais, muito embora a decisão perseguida possa evidentemente refletir sobre posições singulares e destacadas do contexto coletivo.

Esta característica, i.e., a indisponibilidade, por regra afastaria a utilidade da tomada de eventual depoimento pessoal em sede de ação popular, independentemente de se considerar o cidadão como substituto processual da sociedade ou como legitimado autônomo para a condução do processo.

Aliás, a indisponibilidade do interesse veiculado na ação popular é de tamanha importância que, mesmo nos casos em que ela for julgada improcedente por falta de provas, sua repropositura não só é possível como pode ser consumada pelo mesmo autor da ação popular primitiva, conforme aponta EDUARDO ARRUDA ALVIM, em sua obra “Direito Processual Civil”, São Paulo, RT, 2008, p. 644, in verbis:

“A coisa julgada na ação popular opera efeitos erga omnes, salvo se julgada improcedente por falta de provas. O que se pode questionar, entretanto, é se, mesmo tendo sido julgada improcedente por falta de provas, ou seja, sendo possível a repropositura da ação, poderia ser intentada pelo mesmo autor da ação popular.

A propósito, diz com inteiro acerto Ada Pellegrini Grinover: “Em linha interpretativa, tem-se discutido a respeito de o mesmo autor, popular ou coletivo, poder valer-se da faculdade de intentar nova ação, com idêntico fundamento, após a rejeição da demanda por insuficiência de provas. Estamos com Barbosa Moreira, que se manifestou afirmativamente, ao escrever sobre o art. 18 da Lei 4.717/65: se a lei quisesse impedir a renovação da demanda pelo mesmo autor popular teria dito ‘qualquer outro cidadão’ em vez de ‘qualquer cidadão’. O raciocínio aplica-se ao inc. I do art. 103 do Código, que utiliza a expressão ‘qualquer legitimado’ e não ‘qualquer outro legitimado’”. (apud Ada Pelegrini Grinover, Código brasileiro de defesa do consumidor comentado… cit., 8. ed., comentários ao art. 103, item 3, p. 926).

Todavia, nem sempre a produção de depoimento pessoal em sede de ação popular mostra-se de todo inútil, mesmo potencialmente. De fato, o depoimento pessoal afigura-se possível quando em análise a própria legitimidade de seu autor considerando-se o interesse de agir preponderante que o levou ao ajuizamento da ação popular, inclusive para condená-lo, em litigância de má-fé, caso ao final seja a ação declarada absolutamente improcedente.

Antes de se prosseguir no trato do assunto em pauta, oportuna a transcrição do art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal Brasileira:

“LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;”

Destaca-se, da parte final do artigo, que o autor da ação popular fica isento do pagamento de custas judiciais e do ônus da sucumbência, salvo comprovada má-fé. Neste aspecto, esta medida revela-se de razoabilidade e justiça ímpares, posto que o autor da ação popular não age em proveito próprio, mas em favor dos interesses da própria coletividade na qual se insere. Sem dúvida o autor será beneficiado com a procedência da ação, porém de forma oblíqua e indireta.

Entretanto, referida isenção não pode ser utilizada pelo autor que, tendo interesse expressivo e direto na demanda, utiliza-a com o único objeto de evitar eventual responsabilização no caso de insucesso da empreitada judicial postulada, notadamente quando sabedor, já de início, da exígua e rarefeita possibilidade de sua procedência. O benefício concedido pela Constituição tem como premissa o fato de o autor da ação popular despender seus esforços em benefício da coletividade; caso constatado que o esforço do autor preconiza, ao contrário, a satisfação imediata e direta de seu interesse pessoal, descabida a utilização da ação popular.

Aclare-se a situação ventilando-se caso hipotético: Município publica edital de licitação de coleta de resíduos sólidos apondo, como requisito para participação do certame e execução dos serviços, que o licitante conte com veículos de determinada capacidade de carga (por exemplo, 5 toneladas); cidadão ajuíza ação popular questionando a legalidade de referida exigência, posto que a coleta de resíduos sólidos poderia ser realizada por veículos de menor tonelagem (no caso, 3 toneladas), pleiteando a nulidade do certame.

O autor da ação popular, neste caso hipotético, em tese estaria a defender interesse de toda a coletividade: uma vez declarada a nulidade do certame, nova publicação editalícia readequando as exigências nos termos do quanto pretendido na ação popular, permitiria a participação de um número maior de licitantes e, por conseguinte, ampliaria a possibilidade de o Município licitar o mesmo serviço por preços menores.

Contudo, há de se convir: eventual informação técnica sobre a capacidade de tonelagem de caminhões de coleta de resíduos sólidos, bem como sua eficiência no cumprimento do contrato licitado pela Municipalidade não é de fácil obtenção, muito menos conhecimento difundido no ramo profissional respectivo.

De outra parte, se houver empresa que decida discutir a legalidade do certame em juízo, por considerar que seus veículos, mesmo com capacidade de carga inferior à do edital, para tanto deverá suportar inúmeros custos. Por primeiro, contratos de coleta de resíduos sólidos desta estirpe normalmente revelam valores contratuais de altíssima monta. Portanto, não fazendo jus a empresa aos benefícios da gratuidade judiciária, somente para distribuir a ação ordinária de impugnação em testilha já deverá recolher custas processuais em patamares consideráveis (isto sem contar com os honorários advocatícios contratados). Se pretender a realização de perícia no curso da ação, também deverá proceder ao recolhimento dos honorários periciais bem como custear eventuais provas técnicas correlatas. Ao final, se a ação for julgada improcedente, a empresa será condenada ao pagamento de honorários advocatícios em favor da Municipalidade, também em patamares altos diante do valor da causa em discussão, sem prejuízo das custas e demais despesas remanescentes.

Percebe-se, portanto, que se a empresa decidir pelo ajuizamento de ação em defesa de direito próprio, os custos de sua empreitada revelar-se-ão extremamente altos.

Por tais razões, referida empresa jamais poderá se utilizar de pessoa interposta, no caso cidadão que ajuíza ação popular, para, esquivando-se dos custos da demanda, pleitear direito próprio ‘pseudodenominado’ coletivo.

E por que tantas divagações sobre este caso hipotético? Qual a relação destas circunstâncias com o depoimento pessoal em sede de ação popular?

A resposta é evidente: a produção do depoimento pessoal, em situações desta natureza, apresenta-se como o meio processual mais eficaz para aferição dos reais propósitos do autor da ação popular, com o objetivo de aferir se o interesse tutelado é realmente da coletividade ou, de outra parte, é nitidamente particular.

No exemplo hipotético, durante o depoimento pessoal poderia ser aferida a formação profissional do autor da ação popular; se engenheiro, se sua atividade profissional é afeta aos serviços de coleta de resíduos sólidos, bem como para quem trabalha, posto ser possível laborar, inclusive, para empresa que pretendia participar do certamente licitatório, mas não preenchia os requisitos técnicos ora impugnados; se leigo na matéria técnica, quem lhe forneceu referidas informações, a que título e com qual propósito, etc.

Portanto, há hipóteses em que o depoimento pessoal em ação popular não se mostra inútil; ao contrário, representa medida essencial para a correta condução do processo, análise de seus pressupostos processuais (notadamente a legitimidade e o interesse processual, subdividido nos interesses de agir e de adequação) e, por fim, condenação do autor, se o caso, ao pagamento das custas judiciais e do ônus da sucumbência, caso reste, ao final, manifesta sua má-fé com a propositura do feito.

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