Mudança de conceitos

Uma nova legislação para todas as formas de famílias

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14 de novembro de 2014, 5h20

O projeto de lei PLS 470/2013, em tramitação no Senado Federal, visa garantir direitos a todas as formas existentes de famílias. Não cabe mais, na sociedade contemporânea, que se condene ao esquecimento e ao desamparo do Estado, famílias que fogem ao modelo arcaico de formação patriarcal e patrimonialista. O Estatuto das Famílias foi apresentado pela senadora Lídice da Mata em 2013 e está amparado pelos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, responsabilidade, afetividade, convivência familiar, igualdade das entidades conjugais e parentais, do melhor interesse da criança e do adolescente e do direito à busca da felicidade e do bem-estar.

O Estatuto das Famílias já é reconhecido pela comunidade jurídica como de notável avanço legislativo, especialmente porque incorpora vitórias permanentes obtidas na Justiça no Brasil graças à evolução do pensamento jurídico em todos os tribunais. O Projeto de Lei reúne, num só instrumento legal, toda a legislação referente ao Direito de Família (a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso) além de modernizá-la, tendo em vista que o sistema jurídico rege as questões familiares com base no Código Civil de 2002 concebido no final dos anos 60 e, portanto, não representa as necessidades atuais da família brasileira, cada vez mais plural em seus formatos. A proposta amplia o conceito de família para assegurar o amparo legal a todas as suas representações sociais.

O Estatuto foi elaborado pela comunidade jurídica do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que tem entre seus membros, os mais respeitados juristas. Paternidade socioafetiva, abandono afetivo, alienação parental, auto curatela e famílias recompostas são alguns dos temas mais importantes tratados. Além da parte material, o Estatuto aborda questões de ordem processual, defendendo, por exemplo, o protesto por dívida alimentar como mais uma possibilidade de cobrança do devedor de alimentos.

Dentre os temas que podem ser considerados polêmicos no Congresso Nacional, está o reconhecimento das famílias homoafetivas (reconhecida como entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal, em 5 de maio de 2011, ao julgar a ADI 4.277 e a ADPF 132) e das famílias formadas fora do casamento. Afinal, é justo condenar à invisibilidade tantas famílias já estruturadas e que estão à nossa volta? E tantas mulheres que viveram relacionamentos por décadas? E muitas delas nem mesmo sabiam que o companheiro mantinha outra família. E os filhos havidos dessas relações? Que futuro lhes é reservado? Que amparo lhes é dado? Pode a justiça ser omissa quanto a essas crianças/jovens? O intuito não é estimular as uniões paralelas, mas exatamente o contrário, responsabilizar seus protagonistas e amparar os que necessitam da proteção das nossas leis.

Simplificam-se as exigências para a celebração do casamento, civil ou religioso, e respectivo registro público, com maior atenção ao momento de sua eficácia. Procurou-se valorizar a atuação do Juiz de Paz, tal como previsto no artigo 98, inciso II, da Constituição Federal. Simplificou-se o divórcio, em face da Emenda Constitucional 66/2010, evitando a interferência do Estado na intimidade do casal. Por isso, é expressamente vedada a investigação das causas sobre o fim do casamento. O que importa é assegurar os direitos da personalidade de todos os integrantes da família, o relacionamento familiar e o modo de convivência entre pais e filhos, atentando ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

O Estatuto das Famílias elimina todas as assimetrias que o Código Civil ostenta em relação à união estável, no que concerne aos direitos e deveres comuns dos companheiros, em relação aos idênticos direitos e deveres dos cônjuges. Quando a Constituição determina ao legislador que facilite a conversão da união estável em casamento, não hierarquiza os dois institutos e nem reconhece a união estável como estágio probatório do casamento. Ao contrário, assegura aos companheiros a liberdade de permanecerem em união estável ou de convertê-la em casamento. Uniformizaram-se os deveres dos companheiros e dos cônjuges.

Sanando o impasse que gera enorme insegurança jurídica, é explicitado que a união estável constitui estado civil de “companheiro”, retomando-se a denominação que tem melhor aceitação na significação do casal que convive em união afetiva. Deste modo, a união estável provoca a alteração do estado civil dos companheiros, que não são nem solteiros e nem casados, sendo obrigatório declinar o estado civil, como forma de preservar interesses de terceiros, em face do regime dos bens que passa a vigorar.

Sobre filiação, a jurisprudência vem reconhecendo novos paradigmas parentais, tratando de modo igualitário as relações de filiação, independente da origem consanguínea ou socioafetiva. A adoção, a posse de estado de filho e a inseminação artificial heteróloga são exemplos de que a família é uma realidade socioafetiva.

Visando evitar contradições presentes em alguns julgados, o Estatuto distingue com clareza: dever de registro do nascimento, reconhecimento voluntário do filho, investigação judicial de parentalidade e a impugnação da paternidade, da maternidade ou da filiação, com prevalência para posse de estado de filhos, com a respectiva convivência familiar. Deixa de existir a presunção da paternidade e da maternidade, que se fundava na necessidade de se apurar a legitimidade do filho. O foco passa a ser a convivência com os pais, sejam eles casados ou não.

Abandonou-se a expressão “poder familiar”, que tem a tônica no poder dos pais sobre os filhos, substituindo-a por “autoridade parental”. Mais do que mudança de nomenclatura, é a afirmação de um dever, no melhor interesse dos filhos. Também ressalta o princípio da solidariedade e da responsabilidade, que devem presidir as relações paterno e materno-filiais.

Quanto à alienação parental, quando os tribunais passaram a identificá-la como práticas que dificultam a convivência de crianças ou adolescentes com um dos genitores, foi editada a Lei 12.318/2010, que além de flagrar estas condutas, indica os meios processuais para identificar, alertar e punir quem assim age. Para eliminar uma legislação fragmentada, a lei foi incorporada ao Estatuto, enfatizando mais a prevenção e o equilíbrio no exercício das funções parentais.

E sobre o abandono afetivo, a absoluta prioridade ao convívio familiar assegurada a crianças e adolescentes dispõe de respaldo constitucional, consubstanciada no princípio da paternidade responsável (CF, artigo 227). Ainda que o amor não tenha preço, é indispensável assegurar o direito a exigir alguma espécie de reparação quando ocorre abandono afetivo. Cabe ser penalizada a negligência parental, cuja indenização pode ter natureza patrimonial ou extrapatrimonial. Para o Direito, o afeto não se traduz apenas como um sentimento, mas principalmente como dever de cuidado, atenção, educação, entre outros.

No que se refere a alimentos, a Emenda Constitucional 64/2010 incluiu no rol dos direitos sociais o direito à alimentação.  Trata-se de direito que integra a garantia ao mínimo existencial, sendo imprescindível à vida e para a realização da dignidade da pessoa humana.

O Estatuto está dividido em duas partes, uma de direito material e outra de direito processual. A providência objetiva evitar a desconexão existente entre o Código Civil, que assegura a constituição, modificação e extinção de direitos e deveres, e o Código de Processo Civil, que não traz os meios procedimentais para assegurar sua eficácia com a rapidez que as relações familiares merecem. O Estatuto estabelece distinções. Chama de processo quando existe contraditório. Não existindo lide ou controvérsia tem-se apenas procedimento.

A doutrina sustenta, há muito, a necessidade de construir regras processuais especiais para as relações de família, que não podem ser as mesmas dos processos que envolvem disputas patrimoniais. Isto porque os conflitos familiares exigem respostas diferenciadas, mais rápidas e menos formais. Daí a existência de regras próprias, com a eleição dos princípios da oralidade, celeridade, simplicidade, informalidade e economia processual, além de ser assegurada preferência no julgamento dos tribunais. O Estatuto privilegia a conciliação, a ampla participação de equipes multidisciplinares e estimula a mediação judicial e extrajudicial. Além da cláusula geral de revogação tácita, são indicadas as leis e os dispositivos legais que restam revogados ou absorvidos na nova legislação.

Enfim, são muitas as mudanças propostas em mais de 300 artigos. O Projeto de Lei recebeu parecer favorável do senador João Capiberibe (PSB-AP), relator na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), e ainda será analisado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). É importante que haja amplo entendimento dos princípios norteadores da construção do Estatuto das Famílias. Não há lugar para apaixonados discursos de uma moral hipócrita e excludente, que expropria cidadanias. Não podemos repetir as injustiças históricas de ilegitimação e condenação à invisibilidade social, o que seria um retrocesso legal e cultural na sociedade contemporânea. Se assim procedermos, teremos que voltar à época dos filhos bastardos, filhos ilegítimos, amantes, concubinas, patrimônio exclusivo do marido, e tantas outras aberrações sociais impostas por uma época de obscuridade legal no amparo às famílias.

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