Isonomia Tributária

Desagregação pela tributação Norte-Sul no Brasil

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

13 de novembro de 2014, 14h11

Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no NEF/FGV Direito SP. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Dia 28 de outubro, depois da quarta vitória consecutiva do PT nas eleições presidenciais, o editorial do jornal O Globo foi contundente: “Fica evidente que o país que produz e paga impostos — pesados, ressalte-se —, deseja o PT longe do Planalto, enquanto aquele Brasil cuja população se beneficia dos lautos programas sociais — não só o Bolsa Família —, financiados pelos impostos, não quer mudanças em Brasília, por óbvias razões” — constou.

Enquanto isso, as redes sociais compartilhavam mapas trazendo um Brasil metade vermelho, as regiões Norte e Nordeste, onde a candidata do PT teve maioria, e a outra metade azul, as regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste, onde a oposição venceu.

Há várias formas de dividir um povo. Índia e Paquistão foram divididos pela religião. O eterno presidente Robert Mugabe partiu sua gente ao meio no Zimbábue pela cor da pele. Há dois Méxicos, um moderno e um arcaico. O apartheid separou a África do Sul. O editorial de O Globo fala em "Brasis” divididos pela tributação.

Contudo, o que tem nos dividido, antes de tudo, é a concretização sectária da Constituição Federal de 1988. Por achar que a temática social não se harmoniza com o desenvolvimento econômico, elege-se o primeiro como herói e o segundo como vilão, reeditando-se a luta ignorante e antiquada do bem contra o mal.

Desenvolvimento econômico compreende o direito que, nós brasileiros temos, de enriquecermos juntos.

Segundo a Constituição, quando o presidente e o vice-presidente da República tomam posse, prestam o compromisso de promover o bem geral do povo brasileiro (artigo 78). O artigo 19, inciso III, inclusive, veda aos entes da Federação criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

O preâmbulo fala em desenvolvimento. Tanto é fundamento da República a dignidade da pessoa humana, quanto os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Dentre os objetivos fundamentais, está o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o “desenvolvimento nacional”.

Ao tocar no tema da pobreza, a Constituição não falou em remediar. A expressão foi “erradicar”, por saber os efeitos cruéis que a dependência gera. O artigo 23, inciso X, remete aos entes da federação a missão de combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização. A falta de desenvolvimento econômico é uma dessas causas.

O desenvolvimento pretendido pela Constituição não é só o social. Basta ler o artigo 21, inciso IX, que diz competir à União elaborar e executar planos nacionais e regionais de “desenvolvimento econômico e social”.

Ignorar esses comandos, impondo à temática social um divórcio não pretendido pela Constituição, mostra a incapacidade de conviver bem com democracias constitucionais.

Primeiro, vamos conhecer o Brasil que trabalha no vermelho. Vou ilustrar com o meu estado natal, o Piauí, um lugar rico, mas cujas praticas políticas provincianas empobreceram boa parte de sua gente.

No interior, a luz elétrica chegou com o programa “Luz para Todos”. Com o “Minha Casa Minha Vida”, além da casa, veio a geladeira, a televisão e a máquina de lavar. O governo federal também instalou cisternas que armazenam a água das chuvas. Nas secas, os reservatórios são reabastecidos pelo Exército, sem a interferência dos políticos locais. O programa “Caminho da Escola” leva as crianças em ônibus escolares. Há o “Bolsa Família”. Também o “Seguro Safra”, que em anos de colheita fraca efetua pagamentos mensais às famílias. Com o “Brasil Sem Miséria”, cada família recebeu R$ 2,4 mil para investir em atividades rurais. Isso sem falar nos convênios com a União.

É fabuloso. Não há como buscar a felicidade quando se dorme embaixo de uma tapera de barro coberta de palha, sem luz, com fome, sem água, sabendo que quando o galo cantar mais um dia de exploração virá. Contudo, temos de devolver para o guarda-roupa algumas fantasias.

A redução da miséria e o acesso a bens materiais é um fenômeno mundial. Percorro o continente africano há anos. Mesmo lá os países estão mais ricos do que na década de 1980.

Em todo o planeta, exceto em nações em guerra, as pessoas vivem melhor, há menos fome e mais prosperidade. As casas têm mais eletrodomésticos. Não foi só no nordeste que houve aumento da classe média, foi no globo. Não são só os nordestinos que viajam mais de avião, é o mundo. É um fato.

Na realidade, o lado duro é que o mercado de trabalho no Estado continua frágil. As oportunidades são escassas. No Piauí, não há infraestrutura. As grandes companhias não se interessam. Não há portos, nem malha férrea, nem grandes rodovias, nem aeroportos. Não há refinarias. Nem metrô ou VLT.

O potencial dos jovens não é explorado. Há muita bebida alcoólica e, agora, drogas ilegais. Segundo o IBGE, 21,1% da população com mais de dez anos é analfabeta. Em 2012, o Estado teve a menor redução no nível de desigualdade.

Há uma das maiores taxas de mortalidade infantil. São quase 21,7 bebês até um ano de idade a cada mil nascidos vivos. Eles morrem pela desnutrição, fraca infraestrutura hospitalar e saneamento básico precário.

Esse é o Brasil ao qual faz alusão o editorial de O Globo, que trabalha no vermelho por ser alvo de um governo da União que acredita num desenvolvimento suportado por uma fonte inesgotável de recursos capaz de possibilitar todos os mais criativos programas sociais que a demanda humana é capaz de almejar.

É claro que essa fartura gera efeitos em quem financia. E não são bons.

O economista Paulo Rabello de Castro, no extraordinário O mito do governo grátis (Edições de Janeiro: 2014), aponta que, esse ano, uma companhia do setor de alumínio parou sua produção numa das fábricas porque percebeu, por ser autossuficiente em energia, que seus lucros seriam maiores vendendo a eletricidade, antes adquirida por contrato, do que produzindo alumínio para a venda, como seria seu negócio normal. Para produzir alumínio, ela empregava uma quantidade de pessoas. Para vender energia, não.

Paulo Rabello de Castro nos enche de exemplos. A General Motors (GM) do Brasil tem perdido contratos de exportações para Chile, Colômbia, Equador e Venezuela, cujos mercados passaram a ser abastecidos pela China, Coreia do Sul e Tailândia.

A montadora Renault, por sua vez, deixou de vender para o México 7 mil unidades ao ano do Sandero, produzido no Paraná. A Colômbia passou a ser a fornecedora do modelo. A fábrica da Renault em Medelín recebe as peças do Sandero de diversas partes do mundo, como Brasil, França e Romênia, e apenas monta o carro localmente. Os automóveis produzidos no Brasil vão ficando obsoletos por falta de estímulos competitivos, em relação aos produzidos no México.

É um processo de “desagregação”, fruto de uma compreensão segundo a qual só uma parte da Constituição merece atenção. As causas da desagregação são: alta carga tributária, elevado custo de matérias-primas, custo energético desproporcional aos concorrentes, infraestrutura deficiente, estradas de escoamento ruins, custo crescente da mão de obra, burocracia e juros elevados.

Os estados das regiões Norte e Nordeste têm grande dependência da União em relação à geração de receitas, pela dificuldade na obtenção de receitas próprias, principalmente via tributos.

Segundo Paulo Rabello de Castro, para bancar essa interpretação constitucional, o governo “resolve atuar tributando os mais ricos numa parte de suas rendas e promete, com isso, distribuir a receita do imposto aos mais pobres, realizando transferências de quem tem mais a quem tem menos, por meio de diversas formas de programas”. 

O resultado, para ele, é um “declínio inapelável da capacidade de trabalho e de contribuição dos elementos mais produtivos da sociedade”. Daí explodir cidadãos trabalhadores e criativos com “autoestima no chão, abusado pela tirania da imensa ignorância de seus líderes” — afirma o economista.

Não é exagero. Em 2013, o gasto total do governo cresceu quase 15%, enquanto o PIB tributável aumentou cerca de 8%. O tamanho do setor público, medido pelos gastos, atinge 40% do PIB. 

É difícil frear esse processo de desagregação. Basta recordar que às vésperas da eleição presidencial de 2014, enquanto a presidente convocava cadeia de rádio e TV para anunciar o reajuste dos benefícios do Bolsa Família, o mundo lamentava a entrada do Brasil no quadro de recessão técnica. 

O Brasil é um só porque uma só é a Constituição que lhe dirige. Sectarismos quanto ao modo de concretizar seu texto é uma forma cruel de separar um povo que deveria enriquecer unido. 

O editorial de O Globo foi certeiro ao apontar que a tributação aparece como instrumento de desagregação de um país extraordinário cujo compromisso com o desenvolvimento foi firmado de modo enfático pela Constituição. 

Resta manter viva a esperança de em algum lugar no futuro retomarmos o curso da história, sem revanchismos, derrubando esse muro artificial construído por uma ideologia deturpada e abraçando a compreensão elevada de que é melhor prosperarmos juntos, sempre.

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