Acesso a medicamentos

Novo marco jurídico sobre Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo

Autor

  • Elizabeth Alves Fernandes

    é advogada com atuação no setor farmacêutico e de saúde. Doutora e mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre pelo Colégio Europeu de Parma – Itália.

13 de novembro de 2014, 16h21

O Ministério da Saúde publicou nesta quinta-feira (13/11), a Portaria 2.531/2014, que define um novo marco jurídico para as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs).

O tema merece destaque, tendo em vista que as PDPs estão no centro das discussões sobre as políticas públicas de acesso a medicamentos prioritários e de desenvolvimento da indústria nacional. Ademais, as PDPs envolvem relevante interesse econômico público e privado ao definirem os atores que terão acesso ao mercado público de medicamentos considerados prioritários ao Sistema Único de Saúde (SUS) por um prazo de dez anos. Os investimentos em PDPs para 2015 são estimados em R$ 20 bilhões[1].

Mas o que seriam as PDPs?

Elas são um mecanismo jurídico de celebração de parcerias para transferência de tecnologia detida por empresas farmacêuticas privadas para laboratórios públicos e que funcionam como elemento de fomento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (“CEIS”)[2].

Por meio das PDPs, os laboratórios públicos absorvem a tecnologia transferida por entes privados, para, futuramente, fabricar e fornecer medicamentos prioritários para o setor público. Contudo, até que se concretize a transferência de tecnologia — que demanda certa maturação e absorção de “know-how” — o laboratório público compra o produto fabricado pela empresa privada, garantindo-se o abastecimento do medicamento ao SUS.

Em 2011, o CEIS foi incorporado pelo Decreto 7.540/2011 no Plano Brasil Maior — o que indica que o CEIS é uma política de governo para promoção da saúde e do desenvolvimento.

O artigo 196 da Constituição Federal[3] prevê o direito fundamental à saúde e determina que o Estado deve garantir o acesso universal e igualitário a ações e serviços de saúde por meio de políticas sociais e econômicas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já entendeu que o direito fundamental à saúde determina um dever do Estado, conforme transcrição abaixo do voto condutor da decisão proferida no Recurso Extraordinário 393.175:

“O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado”[4].

Ademais, o artigo 218 da CF[5] prevê o dever do Estado de incentivar a ciência e a tecnologia no país. E como o desenvolvimento tecnológico pode ser entendido como espécie do gênero “desenvolvimento nacional”, ele é parte do conteúdo dos objetivos fundamentais da república, conforme previsto no artigo 3º, inciso II da CF[6].

Os artigos 196 e 218 da CF, que estabelecem o direito fundamental à saúde e o mandamento de fomento ao desenvolvimento tecnológico, criam, de um lado, deveres positivos e prestacionais para a Administração Pública, e, de outro lado, direitos subjetivos para os administrados.

Na prática, a política pública do CEIS fundamenta-se nos seguintes eixos principais:

  1. fomento aos laboratórios públicos e privados nacionais, para expansão e modernização de sua capacidade produtiva;
  2. incentivo à produção e inovação em saúde, para aumentar sua competitividade no mercado interno e externo;
  3. aumento do faturamento dos laboratórios farmacêuticos públicos bem como da sua capacidade de inovar e produzir medicamentos de rotas farmacêuticas mais complexas;
  4. redução da vulnerabilidade do poder público na aquisição e fornecimento de medicamentos;
  5. redução dos preços praticados em relação aos medicamentos considerados prioritários.

E como tais eixos buscam, em princípio, a concretização de interesses públicos relevantes, tais como o direito à saúde e o fomento ao desenvolvimento tecnológico nacional, a política pública do CEIS e o mecanismo de PDPs possuem amparo constitucional e podem justificar, em casos concretos, restrições a outros interesses públicos fundamentais.

E qual é o papel do SUS?

A participação do SUS no CEIS também possui fundamento constitucional. O artigo 200 da CF, ao definir as competências do SUS, destaca a de “participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos” (inciso I) e, de “incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico”’ (inciso V)[7].

Ou seja, a CF define o SUS como ator relevante para a concretização de política pública federal de produção de medicamentos. E esse comando é refletido na Lei Federal 8.080/1990, que prevê no artigo 6º, inciso VI, dentre os objetivos do SUS, “a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção”.

Além disso, como o artigo 198[8] da CF institui, como exceção ao quadro regular de autonomia administrativa dos entes federativos, o sistema único e hierarquizado da saúde, o governo federal possui competência para estabelecer políticas públicas de saúde centralizadas, como, por exemplo, para a aquisição de medicamentos prioritários pelo SUS.

A Portaria do Ministério da Saúde 374, de 28 de fevereiro de 2008, instituiu o Programa Nacional de Fomento à Produção Pública e Inovação no âmbito do SUS. Essa portaria formalizou o envolvimento do SUS na política pública federal do CEIS, ao fundamento de que “a defasagem tecnológica verificada no país e, consequentemente, a enorme dependência de importações, configuram uma situação de vulnerabilidade para o SUS, que pode ser extremamente danosa para o bem estar da população”[9].

A principal racionalidade do sistema é utilizar estrategicamente o poder de compra do Estado na área da saúde em articulação com políticas de fomento ao desenvolvimento industrial para promover a substituição de importações de produtos e insumos de uso em saúde, priorizando os que possuem maior densidade de conhecimento e de inovação e que sejam considerados estratégicos para o SUS.

E como as PDPs funcionam?

As PDP requerem a participação de pelo menos um laboratório público de um lado (receptor da tecnologia) e um laboratório privado detentor da tecnologia do outro lado. É também possível a implementação de PDP tripartite, por meio da qual uma empresa estrangeira detentora da tecnologia a transfere para uma empresa privada nacional e também para um laboratório público. Em ambos os formatos (bipartite ou tripartite) é necessária a participação na PDP de um laboratório privado que fabrique o medicamento no Brasil.

Importante notar que o regime de PDP exige a participação de uma entidade privada nacional, a qual deverá implementar atividade de fabricação no Brasil. O elo nacional também se justifica em razão dos próprios objetivos de desenvolvimento nacional que fundamentam a política do CEIS como um todo.

A PDP como um todo está marcada pelo interesse público relevante de concretização do acesso às ações saúde e o fomento ao desenvolvimento tecnológico nacional, que fundamenta a política pública. Assim, as ações de transferência de tecnologia do parceiro privado para o parceiro público e, eventualmente, o fornecimento de medicamentos as fases iniciais de implementação a PDP têm fundamento público. E como consequência, entendemos que os contratos de PDP submetem-se ao regime de direito público.

E como funciona o novo marco jurídico das PDPs?

O novo marco jurídico das PDPs, definido pela Portaria do Ministério da Saúde 2.531/2014, busca garantir maior transparência à escolha dos parceiros, conteúdo mínimo aos projetos de PDP apresentados e maior controle sobre as parcerias celebradas.

O Ministério da Saúde definirá anualmente a lista de produtos considerados estratégicos para o SUS e que nortearão as propostas de projetos de PDPs para o ano seguinte. Os produtos estratégicos para o SUS, que forem objeto de PDPs, serão adquiridos por meio do sistema de compras centralizadas. Assim, o custo de oportunidade é bastante alto para quem não participar da PDP, pois poderá ficar de fora do mercado público.

O processo de escolha, aprovação e implementação de PDPs passará por quatro fases principais. A primeira fase inclui a submissão e análise da viabilidade da proposta de PDP e termina com a celebração do Termo de Compromisso entre o Ministério da Saúde e a instituição pública. A apresentação das propostas deve ocorrer durante o período de 1º de janeiro e 30 de abril de cada ano. As propostas para os mesmos produtos serão avaliadas conjuntamente. Além disso, os sujeitos participantes firmarão declaração conjunta de concordância com todos os termos da proposta de projeto de PDP, o que pressupõe negociação anterior entre os parceiros público e privado.

Durante a fase II, tem-se o início da implementação da PDP. Contudo, essa implementação não se confunde com a transferência de tecnologia, que somente ocorrerá a partir da fase III. A fase III tem início com o início da transferência de tecnologia e celebração do contrato de aquisição de produto estratégico entre o Ministério da Saúde e a instituição pública. Na quarta e última fase, ocorre a internalização da tecnologia.

A Portaria define diretrizes para a elaboração de propostas de projetos de PDPs e prevê o prazo máximo de dez anos para vigência da PDP. Não está claro se esse prazo refere-se à transferência de tecnologia e tem o início de sua contagem na fase III ou se começa ser contado somente com o primeiro fornecimento. Esse aspecto possui reflexos econômicos importantes e precisará ser esclarecido. 

Importante anotar que a Portaria, ao prever que a proposta de PDP aponte o preço de venda e a estimativa da capacidade de oferta, requer, entre outros requisitos, a definição de valores unitários anuais, escala decrescente de valores e a apresentação de um estudo com projeções de redução de preços compatíveis com novos patamares de mercado após expiração de patentes.

O sistema de tomada de decisões é baseado em um mecanismo binário que prevê a aprovação por Comissões Técnicas de Avaliação e um Comitê Deliberativo. Trata-se de uma análise ativa das propostas, que avalia a economicidade das propostas; o grau de integração produtiva em território nacional; sugere prazos, critérios e condicionantes; emite relatório. É possível a avaliação da factibilidade de que seja implementada mais de uma PDP para o mesmo produto e haverá critérios de desempate quando não for viável a celebração de múltiplas PDPs para o mesmo produto.

Nesse ponto, cabe chamar a atenção de que membros de outros ministérios também farão parte das Comissões Técnicas de Avaliação e que também está prevista a participação de atores externos. O Comitê Deliberativo pode até mesmo indicar a submissão da proposta de projeto de PDP a comissões de avaliação ad hoc.

Considerando que o Comitê Deliberativo deverá elaborar o seu regimento interno e o das Comissões Técnicas de Avaliação e que esses regimentos deverão ser aprovados por ato do Ministério da Saúde, é difícil estimar se o novo mecanismo de aprovação de PDPs já estará em funcionamento no início de 2015. As PDPs já em curso passarão por avaliação para se adaptar ao novo marco jurídico. Quanto aos projetos de novas PDPs ainda não formalizados, serão devolvidos para submissão ao novo processo de aprovação caso ainda não aprovados pelas Comissões Gestoras — SCTIE-MS.

Finalmente, cabe ressalvar que a natureza jurídica pública dos contratos celebrados entre as empresas detentoras da tecnologia a ser transferida e os laboratórios públicos (que são entidades integrantes da Administração Pública indireta) no âmbito das PDPs, faz com que tais contratos estejam submetidos a certos limites e prerrogativas concedidos pela CF e pela Lei 8.666/1993 à Administração Pública em suas relações contratuais. A possibilidade de redução dos volumes de produtos adquiridos pelo SUS e de revisão anual de preços faz com que a avaliação de oportunidade de celebração de uma PDP seja um exercício complexo e incerto para os atores privados, principalmente porque, de outra parte, existe a transferência de tecnologias prioritárias. Esse ponto não foi enfrentado pelo novo marco jurídico e os limites de supressão contratual precisarão ser questionados e avaliados caso a caso.


[1] Conforme indicado no editorial do jornal Valor Econômico, na edição de 12 de novembro de 2011.

[2] O CEIS foi desenhado pelo Decreto sem número, de 12 de maio de 2008, da Presidência da República, que criou o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde – GECIS, no âmbito do Ministério da Saúde.

[3] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

[4] Supremo Tribunal Federal. RE n. 393175. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. DJU”: 12.12.2006.

[5] “Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica. […]

§2º: A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional […]”.

[6] Constituição Federal. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

[…]

II – garantir o desenvolvimento nacional […]”.

[7] Constituição Federal. “Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

[…]

V – incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico”.

[8] “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III – participação da comunidade […]”.

[9] See considerando da Portaria do Ministério da Saúde 374, de 28.02.2008.

Autores

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    é advogada sênior em Direito Ambiental e Regulatório no escritório Veirano Advogados, com doutorado e mestrado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e mestrado pelo Colégio Europeu de Parma, na Itália.

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