Comércio exterior

Lex Mercatória evolui frente à globalização

Autor

  • Cristiano Rennó Sommer

    Cristiano Rennó Sommer é advogado da Décio Freire e Advogados Associados Mestre em Direito Internacional na Universidade de Saarbrücken/Europa Institüt na Alemanha Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos/MG especialista em Comércio Exterior pela UMA/MG e professor de Direito na FUMEC/MG.

8 de novembro de 2014, 9h50

1. O que é a Lex Mercatoria
Antes de passarmos ao cerne da questão proposta à presente discussão, necessário se faz demonstrar em que subsiste o objeto a ser analisado, qual seja, a Lex Mercatoria.

Pelo aspecto semântico do termo em análise, não há que ser traduzido, ipsis litteris, como lei do mercado, sob pena de confundir-se com as leis do mercado econômico, sendo que estas estão muito mais para um estudo fenomenológico do que para regras reguladoras do comércio internacional.

O conceito de Lex Mercatoria não é novo, tendo nascido no comércio da Europa medieval e se espalhado pelos comerciantes do mundo por mar e terra até o século XVII.

Tal sistema não foi imposto por qualquer autoridade centralizada ou referenciada por qualquer estado, tendo nascido de uma necessidade do próprio comércio que sempre impôs a evolução de regras privadas, bem como das leis internas dos Estados, haja vista sua determinação em evoluir, não aceitando obstáculos neste sentido.

Assim, a Lex Mercatoria nasceu a partir dos usos e dos costumes comerciais da Idade Média europeia, principalmente do comércio desenvolvido no mar mediterrâneo em que os próprios comerciantes que estabeleciam princípios e regras nas suas transações, buscando assim, uma maior garantia jurídica na efetividade das mesmas.

2. A nova Lex Mercatoria
Em que pesem as discussões doutrinárias sobre a evolução e continuidade da Lex Mercatoria, entendendo parte da doutrina que a Lex Mercatoria teria desaparecido com o surgimento do Estado Moderno e dos movimentos de codificação, tendo sido absorvido pelo Estado a competência para solucionar questões revestidas de estraneidade, principalmente, pela aplicação das regras do Direito Privado Internacional, e outra parte, entendendo que a Lex Mercatoria jamais deixou de existir, certo é que, com o fenômeno da globalização e com o crescente descrédito das soluções propostas pelos Estados, seja de cunho material ou processual, a Lex Mercatoria voltou a se fortalecer de forma a que a doutrina não criasse objeção quanto ao surgimento de uma nova lei.

De forma mais discreta, a Lex Mercatoria veio tomando espaço no comercio internacional da mesma forma que o procedimento arbitral se firmou no cenário internacional de forma indispensável, sendo que se pode afirmar que as duas se fortaleceram pelos mesmos motivos, qual seja, a busca pela solução de conflitos de forma mais dinâmica e uma maior independência dos institutos, via de regra, engessados dos estados.

Assim, o tradicional dinamismo do comércio não poderia ficar dependente da produção normativa dos Estados, principalmente no que diz respeito a questões que envolvessem mais de uma soberania e, portanto, a necessidade de um “sobredireito”: o direito internacional privado, o qual tem a finalidade de determinar qual a lei aplicável ao caso, assim como a competência para julgar um caso de cunho internacional.

Ao contrário, a Lex Mercatoria, por não se originar de um sistema jurídico interno, não encontraria obstáculos derivados de regras cogentes e pouco flexíveis destes referidos sistemas.

Assim, a nova Lex Mercatoria, por não se confundir com o direito do comércio internacional, se reveste de alto dinamismo, uma vez que seu nascedouro se perfaz através da usos e costumes da prática do comércio internacional.

No entanto, os usos e costumes na Lex mercatoria se materializam de forma diferente que o usual, tornando-se, de fato, uma regra aceita pelos comerciantes, não apenas com a finalidade de serem criadas regras, mas sugerindo-as, através de contratos-tipo ou de regras formadas por entidades internacionais tais como a CISG [sigla em inglês da Convenção de Viena para Compra e Venda Internacional de Mercadorias, a qual Brasil ratificou em 2013] e a UNIDROIT [Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado, na sigla em inglês].

Além destas, a Lex Mercatoria também encontra amparo e evolução nos laudos arbitrais, formando-se, através destes, verdadeiro repertório jurisprudencial arbitral de forma a auxiliar a interpretar casos novos nas relações internacionais, bem como adequar a aplicação destas regras apátridas à realidade atual das relações negociais internacionais.

3. Especializações da Lex Mercatoria

Com o seu ressurgimento e, de certa forma, com a aceitação do mercado internacional da Lex Mercatoria pelo seu evidente dinamismo, este passou a exercer e aplicar tais regras alternativas de forma cada vez mais especializada.
De acordo com Berthold Goldman, as operações de comércio internacional restariam divididas em três setores: a) as operações de compra e venda; b) as operações de crédito; e c) as operações de transporte.

Contudo, de forma ainda mais fragmentada que a divisão proposta por Goldmann, cada nicho de mercado acabou por absorver os ideais de tal conceito para criar regras próprias e, desta forma, dinamizar ainda mais as relações negociais internacionais.

Exemplo claro disso é o aparecimento da Lex petrolea, que passou a constituir uma série de regras aplicáveis ao comércio internacional do petróleo.

A Lex petrolea proporcionou aos atores do cenário negocial petrolífero a elaboração de contratos-tipos, tais como o contrato de concessão, de partilha, o acordo de participação e o contrato de serviço.

 Além disso, através da câmara arbitral da AIPN [Association of International Petroleum Negotiators, ou Associação Internacional de Negociadores de Petróleo, em tradução livre], tem se formado uma jurisprudência arbitral específica deste ramo de atuação.

Além da alcunhada Lex petrolea, vários foram os setores que desenvolveram regras específicas de seus ramos de atuação, tais como a IATA International Air Transport Association, que dinamiza o transporte de passageiros e de carga através do estabelecimento de regras privadas internacionais relativas à administração dos serviços para as companhias aéreas, a nomeação de agentes de carga, o regulamento do tráfego aéreo, assim como as regras para endosso de passagens e cargas.

Também pode se fazer referência ao London Corn Trade Association, atual GAFTA — Grain an Feed Trade Association, que dinamiza o comércio de grãos e alimentos, principalmente relativos a commodities.

4. Da conclusão
Conforme se pode notar, tomando-se como premissa a tradicional eficiência do comércio internacional e os irrevogáveis efeitos da globalização, torna-se evidente que as legislações internas dos países não conseguiriam acompanhar, nem de longe, a evolução das relações comerciais internacionais.

No entanto, em que pese o comércio internacional ainda ser disciplinado, em boa parte, pelo crédito e boa imagem de seus os atores, com o constante crescimento e expansão das relações internacionais conhecida por globalização, tais atores não poderiam mais manter a rotatividade de seu comercio garantida apenas com base na boa fé e confiança dos demais comerciantes.

Tal necessidade vem sendo suprida por tais regras que, independentemente do esforço dos Estados para regular tais relações e criar a devida segurança jurídica entre estes, seja através de seus poderes legiferantes tentando criar leis atuais sobre o comércio internacional ou dos próprios poderes judiciários com o fito de fazer cumprir tais regras, tem solucionado tais entraves através da produção de regras próprias e de aplicação das mesmas através das decisões arbitrais, tendo sido um grande avanço para a tal ocorrência o reconhecimento por estes Estados das decisões arbitrais internacionais.

Por fim, diante de tal aceitação e evolução da Lex Mercatoria, não fica difícil entender o porque de seu fracionamento em regras especializadas de mercado, uma vez que tais regras não necessitam passar pelo moroso e engessado sistema legislativo dos países e nem se submeter ao processo civil destes que são, da mesma forma, emperrados.

Referências bibliográficas

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. São Paulo: RT.
Black’s Law Dictionary, Pocket edition, West Group, 1996, verbete "Law merchant".
GOLDMAN, Berthold. “Frontières du droit et lex mercatoria”. In: Archives de Philosophie du Droit, 09 (Le droit subjectif en question), Paris: Sirey, 1964.
Clarissa Maria Beatriz Brandão de Carvalho Cardoso Alves 1 (UERJ), Carlos Augusto Menezes Marinho (UERJ), João Guilherme da Hora Vassallo (UERJ) – http://www.portalabpg.org.br/PDPetro/4/resumos/4PDPETRO_8_2_0143-3.pdf

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    Cristiano Rennó Sommer é advogado da Décio Freire e Advogados Associados, Mestre em Direito Internacional na Universidade de Saarbrücken/Europa Institüt na Alemanha, Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos/MG, especialista em Comércio Exterior pela UMA/MG e professor de Direito na FUMEC/MG.

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